NOTAS SOLTAS E RUÍDOS ESCRITOS

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Dolores Duran - Uma cantora de múltiplos tons

Dolores Duran irrompe o silêncio e anuncia: “Sinceridad”. A palavra ecoa sozinha, dá aval para um bordão de violão e abre passagem para um vigoroso arranjo de cordas. Adornado com piano e percussão o instrumental cresce gradualmente até entrar em declínio, descansando suave para a chegada da voz dolente e macia que dá vida ao bolero de Gastón Perez. O ano é 1955, o Rio de Janeiro é a capital federal e o país atravessa uma época de transição política após o suicídio de Getúlio Vargas. Nesse contexto, a música popular brasileira mergulha no samba-canção, onde o sentido da fossa absorvia o espírito de músicos e intérpretes.

Mas a abertura de Dolores viaja (1955), disco que abre a caixa Os anos dourados de Dolores Duran, já reverbera a versatilidade que marca sua trajetória. Sem afetações ou modismos que se dissolvem com o tempo, os oito CDs que compõem o box revelam uma artista inquieta, apaixonada, sincera e, sim, à frente do seu tempo. Ousada, no disco ela mistura o samba e o samba-canção com fox, bolero, valsa e baião. Com a mesma desenvoltura, passeia o seu canto do português ao francês, espanhol, alemão, italiano e inglês. Neste como nos CDs que seguem, Dolores exala o cosmopolitismo dos anos dourados. Vive a Copacabana de boates e nightclubs no seu esplendor, a sofisticação da Zona Sul em vias de abertura, buscando novos alicerces na mescla entre o requinte da produção internacional e a força do cancioneiro popular.

Crooner de ótima reputação, Dolores faz de Canta para você dançar (1957) uma coleção dos seus maiores hits, enquanto cantora da noite. Dançar aqui, é claro, ganha sinônimo de corpos colados em passos cadenciados, muito distante do que um álbum com mesmo título poderia sugerir nos dias de hoje. Com arranjos de Severino Filho, ela passeia por gêneros variados, em que se destacam Por causa de você, parceria com Tom Jobim; o lancinante samba-canção Quem foi, a bem-humorada Feiura não é nada, samba avançado assinado por Billy Blanco; a interpretação para o clássico Conceição, incensada por Cauby Peixoto um ano antes; além do blues Only you, eternizado pelos The Platters.

Computando os pedidos que lhe eram feitos em espetáculos, em Canta para você dançar nº 2 (1958) ela envereda pelas canções mais aplaudidas nos auditórios das rádios, nas boates, cinemas, clubes e festas particulares. No encarte original, Lúcio Rangel crava certeiro: “Dolores Duran consegue um milagre – canta todos os gêneros, em todas as línguas, os mais variados ritmos, e canta bem, admiravelmente bem”, sentencia. Entre faixas de sua autoria, onde temas como a solidão e o amor não correspondido dão o tom, ela também diverte o ouvinte com releituras de Geraldo Pereira, Vadico e Noel Rosa.

Entre o baião e a toada, Esse Norte é minha sorte (1959) cava as raízes do cancioneiro nordestino e caipira. Mais uma vez, a capacidade mutável e camaleônica de Dolores a guiam ao patamar de intéprete-atriz. Afinal, não é nada menos do que atuação a forma como encarna o sertanejo e o nordestino, seja pelo sotaque, entonação ou pela personalidade que assume ao dar voz a faixas como Prece de Vitalina, ou A fia de Chico Brito, também de Chico Anísio. Múltipla e talentosa, Dolores trilhava décadas atrás a tão em voga e onipresente globalização sonora que cantoras da atualidade apenas intentam, forjam ou simulam.

Na caixa, a compositora e letrista consagrada ganha destaque no duplo O negócio é amar. O trabalho de produção, pesquisa e garimpagem executado por Rodrigo Faour joga luz em 28 das 35 canções assinadas ao longo de oito anos de carreira – interrompida aos 29. Vítima de um problema coronariano congênito, não deixou de ser alertada por médicos sobre os riscos que corria ao trocar a noite pelo dia. Preferiu uma vida de excessos a uma conjunção de regras e cerceamentos que a levariam a um estilo de vida que não o seu. Não se pode dizer que viveu pouco, mas sim muito em pouco tempo. Também compôs muito nos quatro anos em que se dedicou aos dotes. De tudo que era diminuto ela fez o contrário, injetou amplitude e intensidade. E é por isso que pôde abrigar num coração debilitado, seja pela saúde ou por desilusões amorosas, um manancial de musicalidade. Sem purismos, mas com bom gosto, deu conta de gêneros e linguagens distintas e, talvez, opostas, até o dia em que o seu peito não pode mais marcar o compasso.

Nenhum comentário: