NOTAS SOLTAS E RUÍDOS ESCRITOS

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Sou + Nós = Camelo

Pode-se dizer bem e muito mal do existencialismo-relativista ou da persona pseudoeremita que Marcelo Camelo, ao longo dos anos, construiu. Avesso à imprensa (mal) e à exposição de sua vida como celebridade pop (bem), no entanto, quando se trata de seu talento como compositor, restam poucas dúvidas ou aversões à afirmativa de que ele é um dos mais talentosos nomes surgidos no país a partir da década de 90 – na seara do pop-rock, é o melhor. Assim como não é difícil notar e admitir que suas canções navegam fluidas entre melodias e ritmos que partem do rock, cruzam o pop, a MPB, o samba tradicional até atingir as raízes da música popular brasileira, sejam estas as marchinhas carnavalescas ou a tradição do cancioneiro nordestino.

Desde que se lançou como fenômeno pop, com "Anna Julia", Camelo fez de seus dez anos de carreira, ao lado dos Los Hermanos, um passeio arqueológico e imersivo pela nossa música. Desde 1998 para cá, porém, seu outrora pequeno e recôndito séquito de ardorosos fãs tornou-se uma legião, quase seita, assim como seu reconhecimento artístico passou a navegar não apenas à frente das suas criações com o quarteto, como também pelas canções gravadas por Maria Rita, Roberta Sá, Ney Matogrosso, além de seu mais recente parceiro musical, o bossanovista Marcos Valle.

O fruto de todo essa bagagem é explicitado agora em um álbum despojado e sem amarras como esse seu primeiro trabalho solo, “Sou”. Nele, Camelo demonstra que sua trajetória, comprometida com a riqueza de versos e melodias, atinge seu ponto de maturação pessoal, mas não retrata como um todo o apanhado de sua mais inspirada produção autoral – atingida no terceiro álbum dos Hermanos, "Ventura".

É curioso, mas não paradoxal, notar que é justamente na hora de desabrochar que Camelo volta-se para dentro. "Sou" é um álbum feito "de" e "para" Marcelo Camelo. Os registros, intencionais ou não, denunciam uma vontade de cantar canções ao modo como vieram à tona, sem esforço, sem grito, sussurradas e balbuciadas ao ponto do inaudível. Ao mesmo tempo em que decide se expor – é claro, à sua maneira – ele se defende à frente do microfone. "Sou" não apenas ilustra o trabalho mais honesto às suas particularidades como também resguarda uma intenção de se mostrar através do outro.

A proposital feiúra, estranheza e o desmazelo de sua foto de divulgação gritam toda uma forçosa simplicidade: Marcelo é tão normal ou estranho como todos nós. É como se monologasse: "É, sou normal, esquisitão, na minha... Também acordo com a cara inchada, feia e de saco cheio. Coloco minha camisa surrada e vou dando de ombros nos portais da casa até pisar descalço o chão gelado da cozinha". No entanto, como é músico e dono de talento acima da média, além de tirar umas remelas, ele dedilha, sonado, seu violão de nylon como quem não quer nada. E assim, com inabalável e solitária preguiça matinal, que Camelo parece fagulhar versos e extrair as melodias que compõem seu painel primitivo de canções particulares.

Sua emblemática descompostura é trunfo inconscientemente despejado à crítica. Afinal, ao ouvir “Sou” há que se atentar para a produção um tanto quanto descuidada, com maior destaque à colocação da voz. Ao longo do álbum, muitas das suas linhas vocais se embaralham, versos se perdem em meio a nuvens instrumentais carregadas, e seu registro estranhamente enfraquecido, se comparado aos seus trabalhos anteriores, é posto, pela mixagem, muito abaixo do aceitável.

As canções:

“Téo e a gaivota” abre o novo trabalho de Marcelo Camelo com uma linha de guitarra melancólica que se repete por quase um minuto antes que o músico pronuncie seus primeiros versos sobre as bobagens que se passam na TV. A letra anuncia um de seus temas centrais: a solidão. Esta, sentida com mais intensidade pelo autor por conta do formato e do processo criativo do álbum, a princípio pensado como um registro em voz e violão.

A faixa seguinte, “Tudo Passa”, assim como o título sugere, escorre sem deixar saudade. Uma canção-poema de versos e melodias efêmeros e auto-explicativos que aterrisa em “Passeando”, mais uma elucubração instrumental delineada pelas guitarras de Camelo e pelos multi instrumentos da banda paulistana Hurtmold, liderada pelo músico Maurício Takara.

Com “Doce Solidão”, quarta faixa do álbum, Camelo enfim se aproxima daquilo que poderia ser uma faixa dos Los Hermanos. Não pela repetição de métricas ou arranjos, mas, sim, por conta do apelo melódico imediato. Sua musa inspiradora, a "solidão de todos nós" é pano de fundo para delicados assovios e versos bem traçados, como "Posso estar só, mas sou de todo mundo" e "Solidão, foge que eu te encontro, que eu já tenho asas".

A canção é o ponto de partida para o encontro de Camelo com sua doce e ensolarada linhagem. “Janta”, parceria de Camelo com a menina-moça Mallu Magalhães sustenta a boa pegada, com Camelo fazendo sua primeira parte em português, e Mallu a sua, em inglês. É quando se encerra a primeira metade das 10 canções disponibilizadas para audição, marcadamente sedimentada pela temática da transitoriedade e da solidão.

A partir daí, chegamos em “Mais tarde”, possivelmente a canção mais alinhada ao pop-rock que o consagrou como artista. É daí, também, que “Sou” transforma-se em “Nós”, da capa-poema de Rodrigo Linhares, onde Camelo mostra-se menos introspectivo e mais dançante ao som de referências regionais da música popular brasileira. Caso de “Menina Bordada”, com acento rítmico-melódico nordestino, e “Liberdade”, que conta com a participação especial da sanfona de Dominguinhos. Assim como ganha corpo o clima contagiante desvelado na marchinha carnavalesca“Copacabana” e nas nuances praieiras da caymiana “Vida doce”.

"Liberdade":






"Téo e a gaivota":



segunda-feira, 1 de setembro de 2008

O desafinado












Após assisitr à sessão das 15h50 para "Os desafinados", no último domingo, saí do Unibanco Arteplex, em Botafogo, com um único pensamento afixado na consciência: a mais nova incursão de Walter Lima Jr. no universo dos longas-metragens é, no mínimo, entediante. E as cenas finais... das mais piegas e constrangedoras já vistas.

Planejado para estrear no primeiro semestre de 2006, "Os desafinados" não emperrou à toa. E se a desculpa divulgada à época era a falta de verbas para a finalização da fita, cerca de R$ 7,5 milhões, após o lançamento, a impressão é que "a esfarrapada" oferecida não estava de acordo com o que o filme mais carece: revisão e mudanças drásticas no roteiro, na montagem, nos diálogos, eliminação de planos-clichês e, o principal, reavaliação do conjunto da obra a ser apresentada como um musical.

Impressiona como uma história, mais do que contada, dissecada e recriada milhares de vezes pelo inconsciente coletivo pôde ser encenada em tão baixo nível de sensibilidade. Qualquer brasileiro antenado ao mínimo na história da bossa nova, e sua chegada aos Estados Unidos via João Gilberto e companhia, observa (incrédulo) e questiona-se (inconformado) como tal desenho pôde ser completamente descolorido, desconstruído, destituído de significados e, o pior, desromantizado por um diretor que optou pelo tema justamente pela sua empatia e afetividade em relação ao objeto a ser filmado.

A artificialidade, no entanto, não é concluída apenas ao final da cascata de créditos. Emana desde os primeiros planos e segundos a sensação que algo de muito superficial e nada cativante está para vir. Ao final, o resultado ao qual o espectador assiste é um arremedo desconcertado de uma novela, desejosa de novas possibilidades e pontos de vista, se encerrar no vazio, sem emoção alguma a ser transmitida pelas longas duas horas de duração. E olha que estamos falando daqueles que seriam dois dos mais marcantes acontecimentos sociais e culturais do país: a implantação da ditadura militar e o nascimento da bossa nova no Brasil e no mundo.

Mas Walter Lima Jr. parece esquecer, ou prefere não privilegiar, o valor do contexto e das oportunidades dramáticas que tem em mãos. A partir de suas reminiscências, ele aponta sua câmera em uma busca incessante mas malograda de capturar a construção de afetos e sensibilidades entre um grupo de jovens amigos, apaixonados pela arte e pela vida. O problema da perspectiva escolhida para "Os desafinados", no entanto, é que tudo o que o diretor apresenta como intenção nos remete, imediatamente, ao título da obra. Seja a relação dos tais músicos com a arte que supostamente planejam dedicar à vida – exposta sem qualquer intensidade –, a performance de cada um para com seu instrumento – dubladas de forma grotesca, com exceção do músico Jair de Oliveira –, as questões existenciais e as escolhas que por ventura pudessem confundir e gerar conflitos entre os jovens. Essas, apenas algumas das passagens em que o desafino entre intenção do diretor e resultado emotivo a ser captado berra, grita e se descabela na sala escura.

O desatino de Walter consegue ainda o improvável. É quando ele decide ignorar as melhores possibilidades de conflito que a história naturalmente engendra e empurra para dentro da câmera. Ao invés de engolir e digerir momentos explicitamente propensos à tensão, ele se mantém cristalizado desviando-se das mais claras situações-crise, como a que Davi (Ângelo Paes Leme) deixa de encurralar Joaquim (Rodrigo Santoro), quando este último, em um surto de responsabilidade familiar, decide voltar para casa. Como se os meses de penúria e amargor do grupo, que recebia naquele momento, pela primeira vez, uma proposta de trabalho, não fossem dignos de sofrimento e revolta dos seus parceiros.

Walter também passa – com um beijo na boca – a borracha na decepção de Glória (Cláudia Abreu) quando esta descobre que o seu novo amante, Joaquim, a quem abrigou junto a todos os amigos em casa, tem mulher, Luiza (Alessandra Negrini), e espera filhos no Brasil. O diretor faz vista grossa, ainda, para a possibilidade pungente de ciúmes e disputas femininas entre as duas, Quando, já no Brasil, a intérprete do grupo, Glória, grava em estúdio a canção "Mente" em um tête-à-tête desafiador para esposa traída – sem que a última esboçasse qualquer encrespar de pêlos ou choque de nervos.

O ápice do medo de confrontos assinado por Walter fica evidente quando ele censura o início da desilusão do cineasta Dico (Selton Mello). Único personagem realmente comprometido com alguma forma de arte, a dor do cineasta por ter seu filme totalmente tesourado pelos agentes do Dops é também posta em xeque pelo diretor, que não se faz de rogado em anestesiar o inquieto personagem com um prêmio ganho em Moscou. Enquanto, no Brasil, Dico continua sem dinheiro, aprisionado artisticamente, com a mãe à beira da morte e, além de tudo, sendo caçado pelo regime.

De refugo em refugo, Walter opta por um filmar paranóide em que põe panos quentes assim que faíscas vislumbram tornar-se chama – o que não traz vida e emoção sentida às cenas. O resultado desta sucessão de escolhas desajustadas é uma esquizocinematografia, em que o diretor, por medo da previsibilidade do tema, tenta escapar, aos trancos e barrancos por uma trama rasa e banal, daquilo que o filme, por essência, é ou sugere: o desvelar romântico-poético dos primeiros passos da bossa nova. A bossa, "essa coisinha de inho, barquinho, jeitinho" como escracha Selton Mello, fica realmente diminuída e perdida em meio ao emaranhado de micro-acontecimentos (fugazes) que nunca se completam ou são finalizados coerentemente por Walter.

O filme, porém, tem seus bons momentos. Salvam-se as viscerais intervenções de Selton Mello, que com seu carisma, gestual e tiradas bem-humoradas rouba cenas a cada aparição. Além, é claro, das cenas dramáticas encenadas por Santoro, assim como o clima de excitação dos jovens músicos antes e durante a estadia nos Estados Unidos. O músico Jair de Oliveira, como Gera, também não faz feio. E Cláudia Abreu, enigmática e sedutora, faz das cenas de amor com Santoro, de seu banho de banheira no meio da sala e de seu desespero com a repressão do regime cenas que saltam aos olhos. Enquanto que Ângelo Paes Leme, ganhador do prêmio de ator coadjuvante em Paulínea, e Alessandra Negrini não surpreendem.

No fim das contas, porém, elogiar um filme como "Os desafinados" é talvez impensável não só para os amantes da bossa nova, mas também para qualquer ser humano que dá valor à sutileza, coesão de argumentos e comprometimento artístico. Em recente entrevista ao JB Online, Walter Lima afirmou que a obra é ponto culminante da sua maturidade como homem de cinema. Se a declaração não passa de atitude egóica e defensiva ante o descarrego da crítica para com sua obra, é de se lamentar que o cineasta tencione a acreditar que “Os desafinados” é de algum modo marcante para sua carreira de premiado cineasta, ou superior a outras mais inspiradas contribuições cinematográficas.

Por fim, todas as elucubrações até aqui descritas imbricam em uma única afirmativa: “Os desafinados” é uma obra “musical” das mais burocráticas e anti-emotivas. O paradoxo – um filme seco e retalhado que se propõe a tratar de música e amizade – gera, ao menos, uma fina e cruel ironia. É quando lembramos que a oportuna tirada de Selton Mello: "É na merda que a gente cresce!" – quando os músicos do quarteto lamentam não terem sido escolhidos para a apresentação no Carnegie Hall, em Nova York – pode servir como alento ao diretor. Como diz o pessoal de teatro: "Merda, Walter!"

* Ainda esta semana:
O maravilhoso documentário "O mistério do samba", dirigido por Carol Jabor e Lula Buarque de Holanda.

E mais:
O primeiro vôo solo de Marcelo Camelo (Los Hermanos), "Sou".