NOTAS SOLTAS E RUÍDOS ESCRITOS

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Alice in Chains, Muse, Sabrina Starke, Jet e Willie Nelson

Desde a morte de Layne Staley, por overdose, em 2002, o guitarrista e cofundador do Alice in Chains Jerry Cantrell tenta manter acesa a centelha criativa da banda. Após o último CD de estúdio, Alice in Chains (1995), Cantrell lançou dois álbuns solos, Boggy depot (1998) e Degradation trip (2002), em que presta tributo ao amigo. Três anos mais tarde, juntou-se ao baixista Mike Inez e ao baterista Sean Kinney para um show beneficente, que culminou no retorno do grupo aos palcos e, mais tarde, na contratação do vocalista William DuVall. Desta nova formação, surge este quinto trabalho, Black gives way to blue. Dos quatro pilares do grunge, o AIC segue fundo em seu mergulho pelos ingredientes mais “deprês” do movimento, notadamente seus densos riffs de guitarra, melodias lúgubres e versos desolados. Ao contrário do que o título indica, escuridão e tristeza caminham juntas em faixas que versam sobre morte, dor, fantasmas psíquicos e suicídio, como em Your decision e Last of my kind. Claras referências a Staley ecoam do início ao fim, como na derradeira faixa-título, entoada por Cantrell e adornada pelo piano de Elton John. De técnica precisa e timbre muito próximo ao do ex-líder, DuVall emula, quase à perfeição, os maneirismos vocais de Staley. Contando com os notáveis vocais de apoio ou solo de Cantrell, o AIC acerta em Looking in a view, mas passa longe de atingir a urgência e a profundidade de hits como Would? e Man in the box.

Looking in a view



Muse - The Resistence

Black holes and revelations (2006) já sinalizava a jornada que agora aporta em The resistance, quinto álbum do aclamado trio inglês. Nele, assumem de vez, e com êxito, a megalomania sinfônica que o trabalho anterior apenas vislumbrava. Também ventilando rocks dançantes, como Uprising e Undiscled desires, The resistance mergulha mesmo – e fundo – em referências clássicas para esculpir faixas como United states of Eurasia, que inclui trechos de uma peça de Chopin; I belong to you e Exogenesis, uma sinfonia pop cindida em três partes.

Uprising



Sabrina Starke - Yellow brick road

Nascida no Suriname e criada em Roterdã, Sabrina Starke surge sob a chancela da Blue Note, num álbum que reverbera o neosoul de tintas jazzísticas catapultado por Amy Winehouse e seguido por tantas outras. Com um pé no pop e outro em referências sessentistas, Starke tornou-se hit na Holanda a bordo do single Do for love. Nesta estreia, acerta a mão em boa parte das 14 composições próprias, explorando bem seus límpidos agudos em faixas como Foolish e Keep it simple.

Do for love



The Jet - Shaka rock

Desde que Are you gonna be my girl escancarou as portas do novo rock ao Jet, a bordo de Get born (2003), a fonte secou. Enquanto Shine on (2006) emulava, sem sucesso, as baladas certeiras do debute, Shaka rock (2009) aposta, do início ao fim, no vigor de guitarras distorcidas e refrões gritados. O trabalho se resume a um amontoado insosso de clichês e riffs banais, com direito a palmas e coros infantis. Serve para abaixar ainda mais a crista dos irmãos Nic e Chris Chester, que acertam a mão apenas em Black hearts e Beat on repeat.

Killed in action



Willie Nelson - American classic

Ícone do country americano, Willie Nelson põe o par de botas de lado, se apruma num terno negro, laça a gravata, mas não se desfaz da cabeleira para reverenciar o cancioneiro americano. Esta é a primeira vez que o artista visita standards desde que lançou Stardust (1978). Desfilando entre blues e baladas de acento jazzístico, Nelson põe-se no centro de um sofisticado piano bar, em vez de um cabaré ou saloon do Meio-Oeste. Acerta em Fly to the moon e nas parcerias com Diana Krall, If i had you, e Norah Jones, Baby, it's cold outside.


quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Procura-se Orfeu da Conceição

Era 1942. Caía a noite e Vinicius de Moraes acabara de chegar à casa do pintor Carlos Leão, ao pé do Morro do Cavalão, em Niterói. Ao fitar a estante do anfitrião deparou-se com um libreto da ópera Orfeu e Eurídice, de Gluck. Não titubeou. Deslizou os dedos sobre o objeto e o pinçou da coleção. Chafurdou na poltrona e, numa sentada, devorou suas linhas. Aproximava-se o Carnaval. Da janela ao lado, o morro em polvorosa emendava uma batucada que avançava os ponteiros do relógio. Passava da meia-noite. E o poetinha lá – imóvel. Naquela única madrugada, completamente absorto, destrinchou um rascunho até chegar o amanhecer. Às primeiras hora do dia dava à luz o primeiro ato de Orfeu da Conceição.

“Orfeu sempre me interessou por causa do negócio do poeta músico, do poeta total, né? E, depois, por causa da relação sublime do amor dele por Eurídice. As duas ideias se fundiram. Eu senti o morro negro numa série daqueles elementos. As paixões, a música, a poesia...”, relatou o poeta em depoimento ao MIS, em 1967.

Cinquenta e três anos após a estreia de Orfeu da Conceição num Teatro Municipal apinhado com a nata da intelectualidade carioca, em 1956, o produtor Gil Lopes está submerso em seu novo projeto. Define cada detalhe de uma nova montagem para a ópera greco-carioca cunhada pelo poeta e adornada pelas composições de Tom Jobim – marco do primeiro encontro da eterna parceria. A partir de 2010, palcos de 10 capitais brasileiras ganham o presente. Cotado para assumir o protagonista, Lázaro Ramos não pôde atender ao convite, devido à agenda repleta. Com a direção de Aderbal Freire-Filho, o cartaz da montagem afixa, até agora, uma única mensagem: “Procura-se Orfeu”.

– Conversamos bastante, mas infelizmente não conseguimos conciliar – diz Lopes.

E quem será Eurídice?

– Ela depende quase que exclusivamente de quem será Orfeu... – despista Freire-Filho.

Afinada, só há duas semanas a dupla pôde celebrar a aprovação integral do Ministério da Cultura para o projeto. Com a injeção de ânimo, Lopes trabalha para captar recursos, que estão disponíveis via Lei Rouanet. Desde a sua mítica estreia, “a mais célebre tragédia carioca não é montada seguindo à risca as orientações firmadas pela dramaturgia original de Vinicius”, diz Lopes.

– Montamos clássicos mundiais e esquecemos que Orfeu, o nosso grande baluarte, não é encenado desde 1956. A nossa geração não conhece Orfeu – afirma. – O país precisa se rever através do mito. Hoje vivo para montá-lo, num desejo obstinado. Não vejo nada mais oportuno e urgente do que revermos a poética da peça. É o que de melhor criamos na música e no teatro. Precisamos recobrar essa inspiração. Por trás da obra, está todo o conhecimento de Vinicius sobre o Rio, o morro e o Carnaval. Temos que celebrar a nossa memória e usufruir da obra que esses dois nos legaram, esse mito que nos constitui absolutamente.

Há quem, todavia, conteste a versão. Protagonista da encenação original, com cenários de Oscar Niemeyer e direção de Leo Jusi, Haroldo Costa defende suas duas montagens realizadas em 1995 e 1997, protagonizadas por Norton Nascimento e Kadu Carneiro.

– Foram montagens fiéis. É claro que a atmosfera em que os atores representam gira numa visão diferente, que era a minha como diretor. É um texto tão rico que, agora, Aderbal, com todo o seu talento, dará grandes proporções – recorda Costa. – Na época da primeira montagem, Vinicius reuniu um time memorável para esse grande acontecimento cultural, talvez o marco fundador da bossa nova. Espero que o impacto se repita.

Entusiasmado com a possibilidade, Aderbal Freire-Filho ratifica a tarimba de Vinicius de Moraes como um grande dramaturgo.

– Orfeu é o mundo. Ao mesmo tempo humano e marginal, ele representa a combinação do mito com as peculiaridades da cultura brasileira. Seja na a música que ainda hoje interessa o mundo inteiro, assim como nos nossos costumes, na mistura de raças. É a conjunção dos traços que nos diferenciam.

Obra influenciou até a mãe de Barack Obama

“Uma noite, enquanto folheava o jornal, os olhos de minha mãe se iluminaram com o anúncio do filme Orfeu negro (1959) – longa de Marcel Camus, baseado na peça de Vinicius de Moraes e premiado com o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e com a Palma de Ouro em Cannes – que estava em cartaz no centro da cidade. Ela insistiu que fôssemos vê-lo naquela noite... Subitamente percebi que a representação dos jovens negros, que eu via agora na tela... era reflexão das fantasias simples que haviam sido proibidas a uma garota de classe média branca do Kansas... Minha mãe era aquela menina do filme, cheio de belas pessoas negras na cabeça, seduzida pela atenção de meu pai”. O relato acima é do atual presidente dos EUA, Barack Obama, e consta em sua biografia A origem dos meus sonhos.

– O Brasil conhece pouco o Brasil. Quase ninguém sabe dessa historia aponta o produtor Gil Lopes. – O presidente dos EUA, filho de uma americana branca que se encantou pela cultura negra ao ver Orfeu, que representa um Brasil livre, a democracia em sua plenitude, o desejo de potência que nos alimenta. É o marco de um monumental legado artístico. O cinema do mundo e do Brasil se apoderou e reverberou sua potencialidade nas telas. Já passa da hora de o teatro revivê-lo.

Após o convite de Lopes, Aderbal Freire-Filho colocou-se a redescobrir o mito e toda sua potência política e cultural.

– Não vi Orfeu..., mas senti todo os ecos. Hoje temos o negro cada vez mais presente em todos os segmentos sociais. Vinicius prenunciou esse avanço. Em 1956, era um diplomata e não tinha nenhum negro como companheiro de trabalho. O teatro afro ainda era muito incipiente, apenas com algumas tentativas experimentais de Abdias do Nascimento. Mas Vinicius reposicionou nossa arte.

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Wild Beasts: o ataque das bestas selvagens

Em 2002, Hayden Thorpe e Ben Little eram só dois moleques de 15 anos que aproveitavam o tempo fora da Queen Katherine School para começar uma banda. Criados na pequena e conservadora cidade de Kendal, queriam — como a maioria dos adolescentes do lugar — chocar os pais, colegas e quem mais viesse pela frente. E foi nesse espírito que batizaram o duo que tinham juntos de Fauve — termo francês que designa “bestas selvagens”. A cada ensaio, Hayden estrebuchava em gritos que tateavam cumplicidade com as angústias e inseguranças arremessadas pelos urros de Kurt Cobain. Apenas dois anos mais tarde, o cantor entendeu um sutil truque do destino, algo que o faria opor-se diametralmente às peculiaridades vocais do seu ídolo grunge: seus afeminados falsetos causavam reações tão fortes de estranhamento e magnetismo quanto os brados roucos e lancinantes de Cobain.

– Dos 14 aos 16 eu tentava desesperadamente soar como Kurt, bem ao estilo adolescente irritado e explodindo em testosterona que eu era. Achava que havia algo de errado comigo por ter uma voz mais suave e afeminada – recorda o líder e principal compositor do quarteto inglês Wild Beasts, Hayden Thorpe, em entrevista ao Jornal do Brasil.

Sentado à frente de um laptop, numa mesa do seu café favorito, em Leeds, o músico de 22 anos lembra que o desconforto e o medo em assumir sua voz o dominou até a descoberta de artistas como Leonard Cohen e The Smiths. Foi só aí que compreendeu que as palavras poderiam ser tão ameaçadoras quanto a mais violenta das ações.

– A minha voz permitia que eu envolvesse letras agressivas e as disfarçasse, como um cavalo de Tróia. Descobri a minha arma. Dizer coisa horríveis da forma mais bela possível era o meu modo de gritar “fuck you”. Era a minha rebelião.

Lançado em 2007, o primeiro álbum do quarteto, Limbo, panto já prenunciava suas particularidades sonoras, que lembram nomes como Elbow e Antony and the Johnsons. E é justo por força de seus agudos, e das vozes encorpadas de Tom Fleming (baixo) e Chris Talbot (bateria), que o segundo trabalho do grupo, Two dancers, tornou-se um fenômeno de crítica desde o lançamento, no mês passado.

– É um disco humano, com personalidade e caráter. Decidimos deixar que o acaso e os acidentes guiassem a sonoridade explica o músico. – É um álbum de tempo e espaço, um produto daquele ambiente. Acredito que as pessoas queiram sentir a presença dos artistas, em vez de um disfarce perfeito.

À primeira vista, a tríade vocal é o que os distingue das centenas de bandas que pululam o cenário indie inglês da atualidade. Mas não só. A cada verso atinado por Thorpe, impressiona a variedade e a complexidade dos questionamentos, sentimentos e desejos que se agitam na cabeça do compositor. Lançando mão de metáforas, simbolismos e poesia refinada, o grupo expõe um mundo de amores perdidos e lares despedaçados, numa montanha russa que reflete seu estado mental ao longo da última turnê , época em que deu talho às canções de Two dancers.

– A estrada é uma espécie de hiper-realidade, uma estranha condição de existência em que você passa a experimentar a vida num misto de estafa e lucidez. É um turbilhão de sentimentos que te leva a um perigoso nível de adrenalina. Tentamos condensar a beleza e a fragilidade desse complexo estado mental.

Referências explícitas a órgãos sexuais e cenas de orgias compõem o arsenal lírico e libidinoso do grupo. À flor da pele, mas longe de intenções meramente apelativas, Thorpe expressa o desejo de perturbar o puritanismo vigente – inglês ou não. Como alvo, a banda mira nos velhos tabus que ainda encontram guarida nos “liberados” anos 2000.

– O álcool e a vulnerabilidade das turnês aguçam a sensibilidade. Quando estamos sóbrios ou caretas não percebemos o que se passa com tanta clareza. As construções da nossa sociedade, que reprimem nossos desejos instintivos de sexo e violência, vão abaixo. E aí podemos dar vazão ao que nossos corpos desejam. Esse sentimento de crueza sexual e fome se infiltraram definitivamente no nosso trabalho. E é para isso que as canções, os poemas e arte servem. Revelam o que não podemos dizer no dia a dia. Se comunicam com todos nós da forma mais honesta possível.

Two dancers é esculpido por canções que tracejam dinâmicas próprias. Não que isso determine uma falta de conexão entre as faixas que se seguem. Muito porque o conceito estético e temático que permeia o álbum mantém-se, do início ao fim, intacto. Abre-se ao ouvinte uma espécie de ópera pop, em que interpretações dramáticas dão vida a personagens, com suas emoções, humores e intensidades. Dificilmente apreciado em todas as suas nuances numa primeira audição, Two dancers desvela sutis e instigantes paradoxos. O maior deles talvez seja a maturidade com que seus jovens componentes encaram o universo pop da sua geração.

– O pop tem essa qualidade mágica de ser um gênero sem limites, que não se fixa a um determinado tipo de ouvinte. E é por isso que colocamos em nossas canções todas as influências que nos tocam sem medo algum. O pop não requer grande inteligência. Sobrevive do nosso dom de interpretar e imaginar as coisas do mundo.

NYT: “Grandes ambições e músicas brilhantes”

Já na primeira passagem por Nova York, os ingleses do Wild Beasts conseguiram captar a atenção do jornal New York Times, que elogiou o grupo num texto recente. “Os Wild Beasts encaixam grandes ambições em sucintas e brilhantes músicas”, disse o diário, admirando a “mistura de inteligência e reflexos, invenção e destruição” da banda. Eles chegam a comparar o vocal melodramático de Hayden Thorpe aos de Morrissey e Bono – a semelhança com U2 vai também para a parte instrumental – e classificam as letras como “igualmente elegantes e feias”, como na música Hooting and howling. O som que as acompanha é definido pelo New York Times como camadas de esquisitices e complexidades musicais.

E não é só o jornal nova-iorquino que vem despejando elogios à banda. O semanário inglês NME (New Musical Express) admirou a “alquimia artística” do grupo, que faz o estranho parecer normal. “Em um ano de segundos álbuns não muito difíceis aparece o mais surpreendente de todos”, diz o veículo sobre o Two dancers. Eles destacam ainda a coesão do CD – quando “na era dos downloads”, a ideia de álbum não é mais tão importante: “Este é um disco no qual pular uma música parece sacrilégio”.

O site Pitchfork, conhecido pela exigência e arrogância nas críticas, deu a nota 8,4 para Two dancers. E destaca o falsete usado pelo vocalista Hayden Thorpe, “um som que apesar de tender à risada e ceticismo (...) ainda é uma arma altamente eficiente na guerra sem fim contra o indie cauteloso e sério”. O site ainda classifica a música This is our lot como um “hino para a era”, o tipo de música que os fãs que esperam o “retorno do rock” do Radiohead queriam que a banda soasse.

Apesar do elogioso retorno da crítica, Thorpe não se sente confortável com a vulnerabilidade de sua condição de elogiado ou humilhado. Referências freudianas, versos sobre narcisismo e obsessão refletem um leque de defesas contra a opinião alheia.

– É uma constante de estresse. Acho que o narcisismo age como um mecanismo de defesa. Você apenas precisa ser bravo o bastante para refletir ao final de cada dia e se questionar o que tem a perder.

Num mundo em que as portas da web permitem que o mais renomado especialista ou o mais afoito adolescente destrinchem opiniões, unanimidade tornou-se um termo utópico. Mas bem que o Wild Beasts chega perto.

– O que é positivo dessa repercussão é perceber que os críticos nos deram o mérito da dúvida. Certamente os fizemos confrontar ideias pré-concebidas. A vida pública da nossa banda situa-se num patamar diferente da nossa existência como um grupo de garotos que apenas ama se reunir para tocar e compor.

Hooting & howling:




All the king's men:

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

L&PM lança coletânea de textos autobiográficos de Bukowski

Barba amarelada e por fazer, cabelo ensebado atracado ao couro, calça bege e camisa marrom surrada, cigarro de palha ardendo em brasa, densas baforadas ao vento e, é claro, o aroma etílico externando por um corpo encharcado em álcool. É assim que, em 1978, o velho Buk – santo padroeiro dos poetas bêbados e tarados – adentra o estúdio de TV em que o apresentador Bernard Pivot lidera o prestigiado Apostrophes – programa francês de televisão que reunia, entre as décadas de 70 e 80, personagens graúdos da literatura mundial. Após talagadas incessantes de vinho branco, Buk vê-se desprovido da mínima condição de atinar qualquer meia-sílaba de coerência. A cada pergunta, reserva-se ao silêncio, ou resmungos vindouros de seu ácido calabouço gástrico. O âncora intercede a seu favor. Diz que ele pode ir... “Sim, já está dispensado”, diz. Mas Buk está pregado à cadeira. Ao primeiro esforço para se levantar, cambaleia, apóia-se na cabeça de um, dá de ombros num segundo e se agarra à mão de um terceiro que, contrariado, o ajuda a se recompor. Enfim, deixa o lugar, apinhado de célebres cabeças pensantes, como Gaston Ferdiére, renomado psiquiatra de Antonin Artaud.

– A completa inviabilidade social de Bukowski está expressa nesse vídeo – decreta Ivan Pinheiro, editor e fundador da L&PM.

De tão fascinado pelo autor, Pinheiro o detalhou com esmero numa ilustração que serva como capa ao lançamento que a editora gaúcha põe à baila, a partir da Bienal: o monumental compêndio de memórias, contos, trechos de romances e, sim, poemas Bukowski: textos autobiográficos – editado em 480 páginas por John Martin, responsável pela publicação dos primeiros escritos do autor. Organizado cronologicamente – não pela data de publicação, mas pelo período da vida do autor retratado em cada fragmento da obra – o catatau esculpe a carranca macilenta, taciturna e porosa de Buk, o devasso que, dessa vez, tem suas entranhas meticulosamente devassadas, desde as reminiscências da primeira infância, representada pelo alter ego Henry Chinaski, até as desmistificadoras, sarcásticas e hilárias reflexões de um septuagenário.

– John Martin é um mega alucinado por Bukowski – conta Pinheiro. – Fez um trabalho insano de pesquisa por todas as suas publicações para identificar o que era ou não referência da sua biografia, apesar de a maior parte de seus livros refletir traços das suas vivências. É uma colagem cronológica impressionante. Inclusive com uma série de poemas, que não são tão conhecidos, mas de altíssimo nível.

Nascido Heinrich Karl Bukowski na devastada Alemanha pós Primeira Guerra, em 1920, imigrou aos dois e tornou-se um dos maiores poetas e ficcionistas dos Estados Unidos – país em que sobreviveu e morreu, em 1994, vítima de pneumonia em decorrência de uma leucemia. Mas o resumo da trágica ópera do velho safado – já projetada nas telas em longas como Barfly (1981), estrelado por Mickey Rourke, e entre outros detalhados escritos biográficos – foi tudo menos simples como sugerem as linhas acima.

Maldito, mártir dos losers, desvalidos, borderliners, entre outros marginalizados de plantão – mesmo que a contragosto – arrastou-se pela sarjeta, passou fome, mas não pediu esmola. Deixou-se absorver pela latrinas de alquebrados prostíbulos, moquifos empoeirados e botecos de quinta categoria nas esquinas desertas da corrosiva e soturna madrugada de Los Angeles. Até o fim, meteu chumbo grosso nos outros – seu esporte favorito – mas sem livrar a própria cara.

– Era apenas um escroto que escrevia pra cacete. E olhou a escrotidão do mundo como nenhum outro – define Pinheiro. – É o cara que revela o lado sombrio da Califórnia, toda a gama de fodidos esfarrapados que se arrasam na sociedade de consumo, mas sem ser panfletário. Tratou da solidão, que é o estado em que ficamos depois de toda essa movimentação industrial e bélica do século passado.

Determinar faixa etária ou público leitor para Bukowski é tarefa tão traiçoeira quanto os descaminhos que o velho errante traçava. Para adolescentes entediados a adultos em plena crise da meia idade, Buk não é remédio – mas alento. Pinheiro o trata como um grande formador de leitores. De texto fluido e objetivo, diálogos ágeis e espirituosos, o autor espreme suas vísceras, ou as espinhas do imortal Henry Chinaski, para expelir um substrato de irreverência e loucura – indispensável a qualquer jovem que se perde.

– Ele escreve o que queremos ler nessa idade. Mas hoje tenho 57 e, após 35 anos, continuo com o mesmo prazer em editá-lo.

Tradutor de Mulheres (1984), o escritor Reinaldo Moraes – autor de tintas (vá lá) bukowiskianas (ir)responsável por Tanto faz e o recente Pornopopéia – argumenta que o old Buk não tem bula.

– Pode-se ler quando se é jovem ou velho. Só morto é que não dá, suponho. Mas bêbado e drogado também dá.

Há seis meses, Moraes atracou-se com Shakespeare never did this, registro autobiográfico no estilo diário amalucado que o outsider traçou numa viagem à Europa, acompanhado por Linda, sua então namorada. Trata-se de uma crônica ilustrada por fotos de porres homéricos, emendados entre passeios, leituras, entrevistas, viagens de trem, avião, barco, quartos de hotéis e bares.

– O curioso é que o Buk tinha 58 em 1976, mesma idade que eu na altura. Uma delícia. No final, me pilhei triste ao lembrar que o dirty old man estava morto. Ninguém como ele pra dar solenes, pornográficas e divertidas bananas pro tal do mundo administrado.

O escritor Marcelo Mirisola – que, ao lado de Moraes, comanda hoje, às 15h30, uma mesa na Bienal – polemiza e enterra a questão:

– O engraçado é que ninguém faz essa relação custo-benefício quando se trata de um Kafka. O que ocorre é que Bukowski é muita areia pro caminhãozinho de um país caipira cuja “acadimia de letras” ostenta gente como Marco Maciel e Paulo Coelho.

Publicado tardiamente, só aos 50 passou a dedicar-se essencialmente à escrita. Aceitou os US$ 100 mensais ofertados por John Martin, editor da Black Sparrow Press, e, enfim, desvencilhou-se da burocrática labuta como oficial dos Correios. A partir daí, despontou como sucesso de público na Itália dos anos 70. Ivan Pinheiro, que circulou pelo país no início das décadas de 1970 e 1980, recorda que até então o autor era negligenciado pelos franceses, assim como por seu país natal, a Alemanha, e, é claro, solenemente ignorado pela a América que o insultou ao longo de toda a sua extremada e periclitante existência.

– Era início da década de 80 e um burburinho já tomava conta da Itália. Vou à feira de Frankfurt desde 1976 e lembro que nessa época ninguém apostava um tostão. Eu já era editor e me interessei em ler um livro dele pela primeira vez, o Erections, ejaculations, exhibitions, and general tales of ordinary madness (1972).

Traduzido para o português como o Fabulário geral do delírio cotidiano, este é o segundo volume de uma coletânea de short stories e poemas editada pela L&PM, iniciada com Crônica de um amor louco (1984). Esta reunião de contos, que serviu como inspiração para o longa Tales of ordinary madness (1981), dirigido pelo italiano Marco Ferreri, foi a primeira aquisição de um catálogo que hoje computa 15 títulos. Em Textos autobiográficos, além de fragmentos destes dois volumes, se agitam nas páginas trechos marcantes de Cartas na rua, Mulheres, Factótum, Numa fria, Ao sul de lugar nenhum, Hollywood e Misto-quente.

– Fabulário foi editado após uma disputa com a Brasiliense, que àquela época era muito poderosa e havia publicado Cartas na rua e Mulheres – recorda Pinheiro. – Eles vieram com esses dois títulos, e nós demos o troco com Fabulário..., que é muito melhor. Consegui comprar graças à ajuda do meu amigo e grande poeta beat Lawrence Ferlinghetti, dono da City Lights. Ele detinha os direitos da obra e nos ajudou a dar uma bola nas costas dos caras. Na época era assim mesmo, uma batalha. Mas de cavalheiros. Assim como eles lançaram o On the road, do Kerouac, e nós demos a rasteira com o Livro dos sonhos e depois fizemos o nosso golaço com o Uivo, do Ginsberg, entre uma série de outros poetas beats.

Afinal, beat ou não beat, azeda a questão... Pinheiro defende que o autor representa a última lufada de ar fresco, ou bolorento, de uma geração que incendiou a consciência da América com os pensamentos libertários arremessados pelos ensandecidas poemas de Carl Salomon, Gregory Corso, Gary Snider, Lawerence Ferlinghetti e pelas mentes da lendária santa trindade beatnik, composta por Burroughs, Ginsberg e Kerouac. Enquanto os românticos predecessores hasteavam trêmulas flâmulas contra a sociedade industrializada e capitalista fincada no American Way of Life, o velho Buk, você sabe, não tava nem aí pra casa do chapéu...

– Os beats propunham transformações e mudanças objetivas, em meio ao auge do American Way of Life... Apesar de uma luta invencível, eles definitivamente criaram uma estética que repercutiu e influenciou a contracultura e a arte pop – explica Pinheiro. – Bukowski é um subproduto tardio dessa geração. Veio na esteira de John Fante. Era um cara que não fazia pregações, não tava nem aí para a influência do jazz, do bebop ou rock’n’roll...

Bukowski é um autor emblemático. E, assim como os beats, ajudou a lapidar uma estampa, identidade ou feição editorial para a L&PM. Se não chega a um best-seller, não deixa de vender – e bem. Cerca de 200 mil exemplares já foram catapultados de prateleiras físicas e virtuais para o colo de milhares de leitores.


– Nem discuto a qualidade de cada um dos textos... O que é muito normal... Caso da Gallimard, que publicou obras menores de Proust, uma, inclusive, que era uma merda. Seria um cabotino se afirmasse que é o autor de maior retorno comercial, embora tenha uma excelente performance. E cresce a cada ano, vende muito mais do que um tempo atrás. Além de tudo, Bukowski tem a ver com a nossa história. Representa o espírito de transgressão que deu origem à editora, criada por dois moleques de 20 e poucos interessados em publicar livros.

Frases:

“Passar fome não cria artista nenhum. Eu realmente passei fome pela minha arte, para ter 24 horas do dia para poder sentar em frente ao papel e escrever. Eu abri mão de comida e de tudo. Eu era um maluco dedicado. Mas o problema a ser visto é que um maluco dedicado precisa saber fazer o que propõe. Dedicação sem talento é algo dispensável, sem sentido. Mas o problema é que todo mundo acha que tem talento... É complicado... E como você pode saber que tem? Você nunca sabe. É um tiro no escuro. E aí se não dá certo você se torna um cara civilizado, se casa, tem filhos, passa o natal em família... Eu me mataria. Eu não aturo uma vida em família, uma vida de empregado, ou algo parecido. Se não fosse a escrita, talvez me suicidaria. Feliz natal, feliz aniversário são as mais doentias das doenças. Então eu segurei a onda, tive alguma sorte, as pessoas gostaram...”.

“As pessoas casam, como se o casamento fosse uma vitória. As pessoas têm filhos, como se tê-los fosse uma conquista. São coisas que a maioria das pessoas tem que fazer, porque elas não têm nada mais para fazer de suas vidas. Não tem nenhuma glória, estima ou fogo... É algo muito muito supeficial... E a Terra está cheia deles”.

“Eu apenas não gosto de pessoas, apenas gosto de mim mesmo. Há algo de errado comigo. Eu não sei o que é, mas não vou tentar curar. Tudo o que eu quero é tudo o que eu sou”.

“Deus não é normal, a natureza não é delicada, ela não quer nem saber. Mas eu me importo. Se eu vejo uma coisa matando à outra, eu não gosto”.

“Eu não sou ícone, não sou um líder, apenas tomo meu vinho e aposto em cavalos. Não tenho mais nada a dizer. Quanto menos eu digo melhor eu me sinto. Não é sempre que devemos ter algo a dizer ou fazer. As pessoas não conseguem se livrar desse ciclo: acordar, trabalhar e dormir. Quando estou deprimido, simplesmente durmo durante três a quatro dias, bebo alguma coisa, e depois saio renovado”.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Um banquete em cena no CCBB

Uma oportunidade rara. Montagens consagradas pela crítica e público, criadas por seis das mais renomadas companhias de teatro do país, e, é claro, encenadas por prestigiados diretores. Uma verdadeira odisséia teatral toma conta, a partir de hoje e até o dia 12 de outubro, das salas de teatro do Centro Cultural Banco do Brasil. Ao todo, 12 espetáculos compõem a mostra CCBB no teatro – 20 anos de companhias, uma retrospectiva especial que marca o início das comemorações do aniversário do centro. Durante quase um mês, os grupos Armazém Companhia de Teatro, Cia. Dos Atores, Grupo Galpão, Amok Teatro, Cia. Teatro Autônomo e Grupo Sobrevento se apoiam em textos próprios e de consagrados dramaturgos como Shakespeare, Bertolt Brecht, Samuel Beckett, Antonin Artaud, entre outros. Cada um apresenta dois espetáculos pinçados do repertório próprio – alguns ainda inéditos.

– O acolhimento do projeto é reflexo da importância que o CCBB dá ao trabalho das companhias. Será uma overdose com com mais de 30 apresentações. Na verdade, o grande homenageado é o público – destaca o produtor Sergio Saboya. – Sempre trabalhei para conseguir reunir companhias de renome num único projeto. Fizemos um levantamento entre as dezenas de companhias que já passaram pelo CCBB e elegemos as peças que poderiam ser montadas, dada a disponibilidade dos atores e do repertório. São textos, diretores e grupos que dispensam comentários. Nomes de peso.

Na primeira semana, o grupo paulista Sobrevento aporta com o inédito Orlando furioso – quarta e quinta, às 20h. Baseado no texto homônimo de Ludovico Ariosto, o espetáculo narra a história de amor que levou o maior paladino da França à loucura. Dirigido por Luiz André Cherubini, a montagem conta com quatro atores-manipuladores que movimentam bonecos por vergalhões de ferro. Também dirigido pelo grupo, de sexta a domingo, o infantil Mozart moments dá conta de trechos curiosos da vida do compositor: brigas com a mulher e as confusões em que se meteu até a sua morte.

– Orlando furioso é um espetáculo adulto, que revela o nosso crescimento, com a modificação e a evolução de técnicas do teatro de animação, que desenvolvemos desde Mozart moments – conta o diretor. – E é um orgulho reapresentar essa peça que, em 1991, legitimou o nosso grupo como profissional, numa montagem no CCBB. Tínhamos apenas cinco anos de existência, mas já trazíamos inovações, como manipuladores aparentes que contracenavam com os bonecos. É um prazer completar esse arco.

Na semana que vem, o Amok Teatro põe em cena, entre os dias 23 e 25, Cartas de Rodez. O texto é uma seleção das cartas do dramaturgo francês Antonin Artaud destinadas ao psiquiatra Ferdière, durante o período em que esteve internado num manicômio, de 1943 a 1946. Em seguida, nos dias 26 e 27, O dragão parte de depoimentos reais sobre conflitos entre palestinos e israelenses para tratar dos horrores da guerra.

Dirigida por Enrique Diaz, Ensaio.Hamlet marca a passagem da Cia. dos Atores. Dirigida por Diaz, atualmente em cartaz com a celebrada In on it, a peça se debruça sobre o universo da mais célebre obra shakespeareana, numa autópsia que investiga experiências vividas tanto pelos personagens como pelos atores em cena. Nos dias seguintes, 2 e 4 de outubro, Bait man, escrita por Gerlad Thomas, aprofunda uma análise sobre o homem contemporâneo, desvelando medos, desejos e ambições.

– É um prazer voltar com a peça ao Rio. Mudamos, por sugestão do Gerald, de Bate man para Bait man. Tem mais a ver com o meu personagem, que é um homem-isca, atrai as coisas boas e ruins que acontecem no mundo, inclusive a própria violência que o envolve – explica o ator Marcelo Olinto.

A partir do dia 6, a Cia. Teatro Autônomo encena Deve haver algum sentido em mim que basta. Já nos dias 7 e 8, o Grupo Galpão toma conta da Praça dos Correios com Um homem é um homem, peca escrita por Bertolt Brecht entre 1926 e 1956, ano de sua morte. A obra mistura elementos de cabaré, circo, teatro de rua, música e teatro épico para narrar a transformação do estivador Galy Gay numa máquina de guerra. Nas mesmas datas, a Armazém Companhia de Teatro encena o clássico Esperando Godot, de Samuel Beckett. Nos dia 9 e 10, o combo mineiro de teatro de rua monta seu mais recente trabalho, Till, de Luís Alberto de Abreu. A peça é construída a partir do personagem popular alemão Till Eulenspiegel. Fechando a programação, nos dias 10, 11 e 12, a Cia. Teatro Autônomo encena Nu de mim mesmo, enquanto o Armazém presta tributo a Nelson Rodrigues, com a montagem de Toda nudez será castigada.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

O grito muda de tom em 'Backspacer'

Após uma meteórica passagem pela Praça da Apoteose, em 2005, prestes a lançar Pearl Jam (2006) – disco que registra uma banda afiada em composições de alto nível – Eddie Vedder e seus quatro parceiros de palco voltam a acertar a mão em seus respectivos instrumentos. De bate-pronto, recebem os fãs com a incendiária Gonna see my friend, faixa de abertura para o aguardado Backspacer que, no Brasil, será lançado pela Universal. Seus primeiros versos, linhas de guitarra e grunhidos arregaçados expulsos por Vedder reverberam uma fúria e uma crueza que remetem ao frescor e a vitalidade da outrora banda iniciante, que se pôs no mapa com o lendário Ten (1991) e se consagrou com o sucesso dos álbuns seguintes. Coincidência ou não, Backspacer leva a assinatura do produtor Brendan O’Brien, responsável pela “tetralogia” que sucedeu o debute, composta por Vs. (1993), Vitalogy (1994), No code (1996) e Yield (1998).

Com todas as faixas guiadas pelas letras de Vedder, os créditos para a terceira canção do disco, o single The fixer, dão o tom do que o PJ começou a tramar nas sessões demo realizadas desde o início de 2008. Escrita em parceria com o baterista Matt Cameron e os guitarristas Mike McCready e Stone Gossard, a bomba de 2m57s revela o caráter colaborativo de Backspacer. Das 11 faixas que o esculpem, cinco levam o talho exclusivo de Vedder, quatro de Gossard, duas por McCready e Cameron e uma pelo baixista Jeff Ament: a impactante Got some, que narra as desventuras de um traficante que negocia a sua mais poderosa droga – uma canção de rock.

Com temas que variam em dois a três minutos de duração, o nono trabalho da banda não patina em gorduras em seus 36m33s. Muito pelo contrário, conduz o ouvinte a uma jornada seca, intensa, rápida e visceral, que libera e expele de suas letras uma espécie de leveza, talvez nunca antes ouvida nos trabalhos precedentes do quinteto. Não há espaço para o lúgubre, para o ar depressivo. Cada grito lancinante catapultado por Vedder assume caráter oposto. Em vez da dor, angústia e sofreguidão estampados em seus trabalhos iniciais, sugerem redenção, alívio, ou até liberdade.

Em entrevistas, o cantor chegou a dar sinais de que a eleição de Obama o ajudou a encarar o mundo de outra forma, e que suas canções, pela primeira vez, refletem um estado de catarse gerado pela esperança e não pela desilusão. Não que o universo do Pearl Jam, os EUA e o mundo agora reinassem em completa e reconfortante paz zen-budista. Nada disso. Mas despida de intenções e mensagens politicas deliberadas, o grupo finalmente concentra-se no que há de mais essencial em toda a sua trajetória: manufaturar melodias e refrões que em poucas audições possam saquear definitivamente a atenção dos mais distraídos ou incrédulos ouvintes.

Após marcar o terreno com um início frenético, guiado por quatro petardos arremessados um atrás do outro, com o desfecho acenado pela elétrica Johnny guitar, o álbum aquieta-se. A balada Just breathe re tém melodias e arranjos de intenção folk, que poderiam integrar a trilha sonora assinada por Vedder para o longa-metragem Na natureza selvagem, dirigido por Sean Penn. E soa, assim como The end, que encerra o álbum, como uma pungente canção de amor. Daí para frente, Backspacer se sustenta mesclando pontos altos como Amongst the waves e outros não tão inspirados, como Supersonic, que serve-se de uma levada ligeiramente punk para falar sobre o amor pela música, e Speed of sound, único momento em que, enfim, certa tristeza ressoa.

Justo no ano em que se completam duas décadas do lançamento de Bleach (1989), primeiro álbum do Nirvana, a banda “rival” do movimento grunge que eclodiu em Seattle parece oferecer um cardápio tão ou mais sortido aos fãs. Além de Backspacer, em março, Ten ganhou relançamento em quatro diferentes edições, todas remasterizadas e mixadas por Brendan O’Brien, com direito a extras como um DVD para oMTV Unplugged de 1992 e um LP da performance realizada pelo grupo também em 1992, no Magnuson Park, em Seattle. Todas as novidades servem como prévia ao relançamento de todo o catálogo da banda, além de um longa dedicado à história do grupo, a ser dirigido por Cameron Crowe, planejado para chegar ao circuito em 2011, quando completa-se o ciclo de 20 anos desde a explosão do Pearl Jam.

The Fixer, dirigido por Cameron Crowe:




terça-feira, 15 de setembro de 2009

David Lynch, Danger Mouse & Sparklehorse: mistura surreal

Dono de uma filmografia de tintas surrealistas e oníricas, nada seria mais apropriado
ao cineasta David Lynch que, em sua primeira incursão ao universo da música, ele se
unisse a um rato e a um cavalo em forma de gente. Talvez tenha sido exatamente pelos
contornos fantásticos dessa aventura que o diretor aceitou o desafio proposto pelo
produtor Brian Burton, vulgo Danger Mouse (Gnarls Barkley, Beck, Gorillaz), e o músico Sparklehorse, codinome para Mark Linkous. A princípio, Lynch seria o responsável pela arte gráfica da parceira entre os dois músicos: um material que conta com ilustrações, montagens e um livro com 100 fotografias inéditas que compõem uma narrativa visual das canções.

O cineasta, contudo, se empolgou. Decidiu compor, escrever letras, cantar e batizar o projeto com uma faixa de sua autoria, Dark night of the soul – disponível em streaming no site National Public Radio (www.npr.org). O inusitado, porém, ainda haveria de bater à porta do estúdio. Por conta de uma pendenga legal com a EMI, o disco jamais pode ser lançado oficialmente. Apesar de não entrar em detalhes, o selo confirma a disputa judicial. Alega, em nota oficial, que “continua fazendo todos os esforços para resolver a situação diretamente com Brian Burton. Enquanto isso, precisamos reservar nossos direitos”. Porém, desde o lançamento do projeto – em julho, numa exposição realizada na Kohn Gallery (Califórnia) – até hoje, o destino do trabalho parece estar fadado a traçar os ocultos caminhos da internet. Após vazar em dispositivos de troca de arquivos como torrent e em programas P2P, o “grupo” tratou de oferecer uma saída inventiva para o impasse. No site oficial, decanta a mensagem: “Devido a uma disputa legal com a EMI, Danger Mouse não pode lançá-lo, com medo de ser processado”. Versões com pôster ou livro são acompanhadas por um CD-R vazio. Todas as cópias são marcadas com os dizeres: “Por razões legais, este CD não contém músicas. Use-o como quiser”.

– Ficamos preocupados de o material ficar arquivado. Talvez as pessoas jamais pudessem ouvi-lo – explica Linkous. – Eu sempre amei a embalagem em forma de livro de trabalhos do grupo Boards of Canada, como Geogaddi. Lynch nos pediu todas as letras do disco. E a coisa nasceu daí, mas o custo fez com que fizéssemos uma edição limitada de 5 mil cópias. Realmente não sei se isso será resolvido. É um problema entre a gravadora e o Danger. Minha relação com a EMI terminou quando a indústria da música veio abaixo. É triste, porque se trata de um grande projeto.

Põe grande nisso. Dark Night of the soul reúne um time estelar com os maiores ícones do rock americano. Definitivamente cruza gerações, num coquetel que parte dos anos 60 e 70, com Iggy Pop, atravessa a geração indie dos anos 90, com Frank Black (Pixies) e Wayne Coyne (Flaming Lips), até bater o novo rock dos anos 2000, representado pelo líder dos Strokes, Julian Casablancas.

– Sou fã de Iggy Pop desde o primeiro disco, The Stooges (1969), assim como do trabalho do Frank Black, especialmente os seus discos solo. E, é claro, o primeiro disco dos Strokes é um clássico. Eram nomes com os quais eu sonhava, mas que Brian (Danger Mouse) magicamente materializou.

Jimi Hendrix do laptop

Artistas incensados pelo universo indie, como Gruff Rhys (Super Furry Animals), Jason Lytle (Grandaddy), James Mercer (The Shins), Nina Person, Suzanne Vega e Vic Chestnut também participam. Povoam com seus vocais, melodias doces, adornadas por arranjos sinuosos e minimalistas, mas de feições pop.

– Amo Super Furry Animals. Eles têm uma influência marcante dos Beatles, mas não gratuita. Acredito que Jason Lytle é mais que um elo da nossa geração. E o Vic é simplesmente o cara mais inteligente que eu conheço.

Linkous define Danger Mouse como o Jimi Hendrix do laptop, “exceto pelo fato de que ele não tacar fogo” em seu instrumento de trabalho. Descreve o encontro com o parceiro como um truque do acaso. Deprimido e envolto num hiato criativo após o lançamento de It’s a wonderful life(2001), ele havia perdido o interesse pela música. Obcecado pela sonoridade dos últimos anos dos Beatles, mais precisamente 1965/66, deparou-se com The grey album (2004), projeto que consagrou Danger Mouse por mesclar os arranjos do White album dos Beatles aos vocais do rapper Jay-Z, pinçados do seu The black album (2003).

– Trocamos contatos e em poucos dias começamos a trabalhar. Desta vez, ele me falou: “Eu não queria te dizer até que tivesse certeza, mas David Lynch concordou em fazer a arte do nosso disco”. Depois ele veio com um papo de que iria cantar... Então peguei meu Optigan, fiz um take no estúdio e mandei para ele, que colocou letras, cantou e mandou de volta três dias depois.

Prestes a finalizar a mixagem, Lynch trouxe a cartada final: O cineasta, que inicialmente faria a parte gráfica do projeto, compôs e até cantou.

– Ele veio com uma ideia que se tornou a faixa-título, Dark night of the soul. É uma piada... O disco traz uma série de elementos soturnos, mas foi gravado em Los Angeles, em dias completamente ensolarados.

Fã da filmografia de Lynch, Linkous observa uma influência direta da obra do cineasta em seus discos. Surrealistas, suas letras são um emaranhado de citações que não chegam a construir uma narrativa linear ou um sentido estritamente objetivo. Na maior parte das vezes, conduz o ouvinte a estímulos visuais. O músico acredita que a arte está nas variadas possibilidades de organizar esses estímulos.

– Talvez seja como uma imagem obscura de um quadro. Mesmo que seja vaga ou surreal afeta a nossa cabeça – analisa. – Lynch tem um estilo parecido com o Hitchcock: as cenas que não são mostradas inspiram nosso cérebro a imaginar coisas muito piores. Mas o que importa é que eu sempre tive reações viscerais a seus filmes. E ainda hoje não acredito que me tornei amigo de um cara que sempre foi um herói para mim.

Um homem escondido sob a máscara de um cavalo

Considerado um dos mais inventivos artistas do cenário alternativo americano, Mark Linkous, que posa para fotos vestindo uma máscara equina, é uma figura obscura, com um histórico depressivo. Após gravar o aclamado début Vivadixiesubmarinetransmissionplot (1995) e excursionar com o Radiohead, o músico sofreu uma overdose num hotel de Londres, por abuso de antidepressivos, heroína e álcool. Internado numa clínica de reabilitação, depois de passar por uma cirurgia que quase lhe custou as duas pernas, dedicou canções de seu álbum seguinte, Good morning spider (1998), às enfermeiras que lhe atenderam no hospital de Paddington. A experiência de sentir a morte de perto pareceu convencê-lo de que era preciso experimentar. Desde então, a liberdade e a constância com que troca seus parceiros no
Sparklehorse é a mesma com a qual recicla a sua música, recheando seus trabalhos com preciosos colaboradores. Em 2001, contou com a lenda Tom Waits, além de reunir PJ
Harvey, Bob Rupe, Vic Chesnutt, Nina Persson e o produtor Dave Fridmann (Flaming Lips e MGMT) para It’s a wonderful life (2001) – um de seus mais elogiados álbuns. Cinco anos mais tarde, Dreamt for light years in the belly of a mountain (2006) marca o encontro com Danger Mouse, Christian Fennesz e Steven Drozd.

– Conheci as pessoas em turnês, como Thom Yorke e Polly Harvey, entre muitos outros que eu admirava e que se tornaram amigos. John Cale me convidou para tocar em dois shows em homenagem a Nico, por exemplo – gaba-se Linkous. – Na maioria das vezes, são artistas mais famosos que eu. E foi por acaso que Tom Waits apareceu na minha vida. Meu empresário soube, por alguém próximo a ele, que seus filhos tinham roubado um LP de Vivadixie... do toca-discos dele. Mandei um novo, com uma carta. Ele me ligou, começamos a conversar e eu pensei num pseudo blues sujo, quebrado, meio hip hop, com um groove que eu não conseguia colocar voz. E aí ele me trouxe de volta Dog door.

Para o mês que vem, o músico põe na rua um novo álbum colaborativo, em dupla com Christian Fennesz, e faz shows na Europa.

– Gosto de ter uma banda para cada projeto. Meu próximo disco vai ser gravado parcialmente ao vivo. Quero juntar uns amigos no estúdio do Steve Albini e captar essa coisa inexplicável que rola no ar.


Ouça: http://www.npr.org/templates/story/story.php?storyId=104129585

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Felipe Vidal encena ‘Sutura’, polêmico texto do autor britânico Anthony Neilson

A literatura não é mais a arte-mãe. Nem o próprio teatro é referência central. Cinema, quadrinhos, videoclipes e música pop explodem da construção dramatúrgica. E é como se a encenação se transformasse num show ao vivo, de uma banda de rock: visceral, impactante, que insere o público e o faz interagir com o que ocorre sobre o palco. A definição refere-se ao In-yer-face theatre, teatro provocativo surgido a partir da década de 90, na Inglaterra, cujos expoentes são Sarah Kane, Mark Ravenhill e Anthony Neilson. É dessa multiplicidade de influências, todas incrustadas na dramaturgia através de fragmentos de letras de música ou cortes eminentemente cinematográficos, que nasce o interesse pelo teatro que Felipe Vidal, 35, acostumou-se a por em cena. Após montar Purificado (2002), primeiro texto de Sarah Kane apresentado no país; O mundo maravilhoso de Dissocia (2007), de Anthony Neilson; e trazer aos palcos o celebrado Rock’n’roll (2009), de Tom Stoppard, o diretor volta a investigar Neilson, com o espetáculo Sutura, em cartaz no Oi Futuro.

– O que me interessa e me aproxima ao teatro desses autores é entender o funcionamento da construção dramatúrgica, a maneira como ela provoca uma relação natural e intensa com a plateia – explica Vidal. – Neilson faz uma arte de impacto, estabelece sensações muito fortes. Não se relaciona apenas intelectualmente com o espectador, ele nos agarra pelo estômago. Não conta só uma história, troca experiências.

Relação vista como jogo


A sensação é de que as palavras, pouco a pouco, inserem esse espectador na peça. Um teatro que busca, acima de tudo, interação.

– É fruto de uma geração que cresceu absorvendo estímulos variados, um amplo cruzamento de referências. Buscamos interagir. A literatura e o teatro não são mais os oráculos. Neilson faz peças conectadas ao cinema.

Na adaptação de Vidal, Sutura narra os encontros e desencontros causados pela impossibilidade de comunicação entre um homem uma mulher. No primeiro ato, passado no apartamento do casal, os dois se encontram para reavaliar o futuro e os (des)caminhos de um tempestuoso relacionamento, que é abalado por uma gravidez repentina. Com o palco dividido por um fino voil, o segundo ato, localizado num decadente conjugado, apresenta o início de uma série de fantasias e desconcertantes jogos sexuais. Aos poucos, a radicalização e a intensidade do que ocorre em cada um dos lados passa a desvendar a conexão de uma mesma história. A ponto de a cortina, literalmente, cair.

– Um lado passa a explicar o outro e vice-versa. É como uma quadra esportiva: o voil é como uma rede que funciona como símbolo deste outro lugar no tempo, da visão um pouco velada que temos do passado ou futuro. O texto trata de como nos posicionamos num relacionamento. A partir de uma situação simples, Neilson traça uma obra complexa.

Ao iniciar uma pesquisa sobre dramaturgos contemporâneos no início dos anos 2000, Vidal deparou-se com os escritos de Sarah Kane. Lançada pelo The Royal Court Theatre em 1995, com a peça Blasted, a dramaturga construiu uma carreira tão curta e intensa como sua vida. Em 1999, aos 28 anos, cometeu suicídio. Deixou a pesquisadores como Vidal quatro peças de tirar o fôlego, em que mescla amor, drogas, cenas de incesto, horrores de guerras, devastações e mutilações humanas.

– Fiz a curadoria de leituras para um evento e tentei trazer gente de fora, como o crítico Aleks Sierz, que havia escrito um livro chamado In-yer-face theatre. Ele dedica capítulos exclusivos a três autores: Kane, Ravenhill e Neilson, que era o único que eu não conhecia. Entrei em contato com o Sierz e ele enviou o livro, perguntando se eu não gostaria de traduzir. A partir daí, conheci os textos e decidi montar.

Diretor do longa The debt collector, Neilson teve O maravilhoso mundo de Dissocia (2004) comparado ao cinema de David Lynch. Nela, submerge à loucura de uma personagem com desordem dissociativa. Já em Sutura, cunhada em 2002, faz referências a Auschwitz e investiga relações carnais e jogos sexuais.

– Esses textos estrearam no Royal Court, uma espécie de celeiro de onde surgem temáticas e pesquisas muito arrojadas.

Para o ano que vem, Felipe carrega na manga uma nova montagem. E, é claro, outro dramaturgo inglês será revelado.

– Martin Crimp é montado no mundo todo, menos aqui. Atentados contra a vida dela será minha nova empreitada de pesquisa.

domingo, 13 de setembro de 2009

Uma atriz entre o talento, o acaso e a perseverança

Escudada por uma assessora, ela desce calmamente os degraus curvos que dão acesso ao fundo do restaurante Garcia & Rodrigues, no Leblon. Vestindo um tailleur de linho branco sobre uma blusa listrada, calça e sapatos negros, cabelos devidamente aprumados e óculos de armação clássica que adornam seus vivos olhos, Fernanda Montenegro esbanja elegância. Não só pelo traje impecável, ou pela postura esguia, firme, ereta. De poucos gestos, fala cadenciada num ritmo preciso, sem pressa de atinar respostas à ponta da língua. Interpreta a todo o momento o que é novo em seu próprio pensamento. Age ao sabor do acaso. E é justo por isso que, 60 anos após se debruçar sobre O segundo sexo, de Simone de Beauvoir, teve a oportunidade de montar um texto baseado em sua autora predileta, Viver sem tempos mortos. Passados seis meses desde a primeira encenação do monólogo, no Sesc São Gonçalo, a atriz percorreu palcos da Baixada Fluminense, aterrissou em São Paulo e aportou na capital carioca, onde por dois meses colheu louros em sessões esgotadas no Oi Futuro, no Flamengo. A partir desta quinta-feira ela inaugura a Sala 2 do Fashion Mall. Com direção de Felipe Hirsch, empresta contorno dramatúrgico aos fragmentos de cartas e apontamentos autobiográficos que recheiam uma compilação pessoal de pensamentos da autora francesa. No palco, assim como na entrevista a seguir, ela trava uma despojada e modesta aproximação com a inesgotável obra da escritora, pensadora e ensaísta que revolucionou a visão do feminino. Discreta, após os cliques, poses e gestos comandados pelo fotógrafo, finalmente se deixa levar por suas paixões – e desabafa: “Não me acho fotogênica, mas vou vivendo. A gente nunca gosta da gente, essa que é a verdade, né? É tal a vaidade e a ambição sobre si mesmo que a gente nunca está feliz”.

Que impressão a literatura de Simone de Beauvoir lhe causou desde a primeira vez?

Eu devia ter 19 anos quando li O segundo sexo. Foi uma espécie de uma mão na qual você se agarra para te dar uma diretriz e uma consciência de que você é um ser humano, de que você deve construir a sua vida, de que é preciso ter liberdade para as suas opções. Não que até ali não tivéssemos mulheres libertárias, mas ela organizou sistematicamente uma visão do pensamento da mulher. A tônica era a liberdade. A mulher não era o outro. A igualdade compreendia a diferença. E isso foi muito forte para uma jovem que queria o teatro.

A senhora ainda não fazia teatro?

Era o fim da década de 40. Eu estava no rádio, tinha acabado de estrear no teatro, uma profissão sem futuro, envolta em preconceitos, sobretudo no ponto de vista comportamental. Era uma zona de libidinagem. Simone não criou uma revolução dentro de mim no sentido de pegar em armas, mas vi que eu tinha todo o direito, na calma e firmeza da minha vontade de abraçar a vida que eu queria e a vocação que que achava ter.

E por que, só agora, decidiu montar um texto baseado em seus escritos?

É interessante... 60 anos depois, quis o acaso e as circunstâncias que eu retomasse essa mulher, que teve sua imagem deturpada, foi chamada de fria, esquemática e assexuada. Quando, na verdade, era erotizada, se entregou às paixões, experimentou a vida e fez desta a prática da sua própria teoria. Agora, forma-se um arco a jovem que eu fui.

Além de Simone de Beauvoir, que outras autoras deixaram um legado para o comportamento da mulher moderna?

Clarice Lispector, Hilda Hilst e Marguerite Duras foram mulheres que pensaram grande com seus talentos e inspirações. Fizeram das suas vidas experimento para suas teorias e vontades. Formam uma galeria extraordinária de sensibilização. Um tipo de literatura ou de comportamento que nos ajudam a viver, como um ombro para encostar a cabeça.

Até que ponto, mesmo que inconscientemente, a relação de Sartre e Simone influenciou seu casamento?

A influência foi essa consciência de que você tem direito à sua liberdade. A existir como ser humano. Do ponto de vista comportamental, porém, não temos nada. A não ser, talvez, o sentido dessa cumplicidade de um par que se une durante 60 anos, independentemente do comportamento sexual. Existiu entre eles uma adesão acima de tudo, dos piores desencontros da vida. É há algo que nos fornece uma ponte a uma zona que é justamente o mistério do ser humano. E o Fernando Torres foi um companheiro e um mestre. Era muito direto, objetivo e, no teatro, sabia sempre quem estava ou não blefando em cima do palco.

O que significa viver sem tempos mortos?

É não se deixar morrer, não se deixar apagar. Mas também não fazer disso uma espécie de batalha contra um moinho de ventos, se bem que, às vezes é, preciso ir até contra os moinhos... É ir atrás das suas utopias. Como Simone, eu vivi isso desde a juventude. Uma hora vem o resultado, são 60 anos de palco.

Longe da juventude, prestes a completar 80 anos, como encara a vida, a finitude, a passagem do tempo e a morte?

Não é agradável. Não é barato. Não é consolador. Mas é. Então, a cada dia que eu acordo, pego a minha vida e a ponho em campo. Mas você sabe que você não vai mais viver os anos que passaram. É até engraçado notar certas coisas. No seguro saúde, quando o cônjuge vai embora, você tem direito a cinco anos de carência. Esse prazo existe porque o tempo de sobrevivência de quem fica não passa disso. Fizeram uma estatística e chegaram a essa conclusão. É humor negro, mas é verdade. Ainda ando, falo, sou independente, tenho amigos, saio de casa, estou dando conta da minha vocação, e o público ainda briga na porta dos teatros para assistir a um espetáculo nada cortejador, como se fosse uma deliciosa comediota.
Com a idade, o passado toma o lugar do futuro?

O meu futuro é hoje. E ele é alimentado pelo meu passado. Não o carrego como um fardo, como algo que foi ótimo e hoje não é.

E há planos para o futuro?

Em 2010, volto a fazer uma novela do Silvio de Abreu, com direção da Denise Saraceni. Vai ser muito prazeroso reencontrar velhos companheiros. Além disso, tenho um convite do Teatro Nacional do Porto para fazer A amante inglesa, de Marguerite Duras. E, lá no futuro, o novo filme do meu filho, Cláudio Torres, A sogra.

Qual o seu maior medo?

Perder a independência física, a memória e a locomoção. Hoje se vive mais do que em qualquer época. O mecanismo humano se gasta, mas continuamos vivos. Então é o desgaste dessa máquina que chega a um ponto de interferência total. Isso é duro demais. Mas eu não trabalho a morbidez desse pensamento, embora não o ignore. Não costuro essa camisa de força.

De que forma o teatro lhe ajuda? Qual é o maior desafio?

É minha análise. Está tudo lá. O desafio é dar conta de um vestibular diário. Mas é uma prova pública, não particular. O cinema e a TV não têm esse risco do salto mortal sem rede de segurança. Por razões eletrônicas e industriais, tem sempre uma salvação. Se você errou, faz de novo. No teatro, quem colabora com você fica do lado de fora. Quem vai à linha de frente da batalha, pega na baioneta, sai da trincheira para enfrentar a infantaria é o ator.

No início, foi difícil lidar com a exposição que a arte requer?

Você não faz teatro diante do espelho. Eu insisto há muitos anos. Se as pessoas não me conhecessem, seria uma tristeza.

Quando era nova, chegou a temer o fracasso? Ou de não poder viver da sua arte?

Dos 60 anos que vivi com o Fernando, nos viramos durante 20 numa economia paupérrima. Mesmo com nome na praça e trabalhando em diversas jornadas. Mas isso nunca foi problema. A partir de certa hora, veio o resultado, principalmente através da evolução da TV. Ela deixou de ser experimental e abriu campos de trabalho, aí começamos a respirar, mas continuamos fazendo teatro. Se hoje vivo bem, não foi porque caiu do céu. Às vezes trabalhávamos 20 horas por dia, a vida toda foi assim.

O que interessa é o que se ama, não o que se ganha...

Aqueles verdes tempos foram ótimos. Cinco anos em São Paulo abrigados em pensões modestas...

E já tinham filhos?

Ainda não. Eles vieram nos anos 60, ainda com a crise política, dentro do Golpe de 1964...

E como foi criá-los e viver de teatro em plena ditadura?

Os teatros eram invadidos. O povo com medo de sair às ruas. Sofremos a falta de liberdade de expressão, o que para o teatro é mortal. Havia duas censuras, a do texto e a do espetáculo. Às vezes, passávamos na do texto, mas tivemos uns cinco espetáculos cancelados que geraram uma agonia econômica e mental sufocantes. De um dia para o outro, todo mundo ficava a ver navios por causa da caneta de um censor.

O que a faz ser considerada a primeira-dama do teatro brasileiro?

É até constrangedor quando me destacam de uma geração ou grupo de trabalho. Isso é fantasia. Tenho uma vocação, acho que sou uma atriz dedicada. Agi, perseverei e persevero durante toda a vida.

sábado, 12 de setembro de 2009

Literatura de Caio Fernando Abreu inspira documentário

Fruto dos conturbados anos 60 e 70, o escritor gaúcho Caio Fernando Abreu (1948-1996) aprontou muitas e boas em seus 47 anos de escrita e paixão. Enfrentou e sobreviveu à barra pesada da repressão militar, época em que foi preso três vezes; e experimentou os sabores e dissabores de quem se deixa levar pelos excessos e pela excitação da liberdade sexual que desabrochou e foi catapultada pelo flower power. Radicado em São Paulo durante a maior parte da sua vida profissional, em que atuou como jornalista, cronista, romancista, entre outras facetas, manobrou nas ondas lisérgicas do movimento hippie e se jogou de cabeça na noite negra e concreta dos punks. Fez de tudo. Viveu como se não houvesse amanhã. Vítima de Aids, morreu cedo. Justo na época em que seus livros ganhavam projeção internacional e fincavam seu nome como ícone de uma juventude libertária. Trajetória de filme que, após ganhar versão impressa talhada intimamente pela amiga e escritora Paula Dip, finalmente ruma às telas, em documentário que marca a estreia de Candé Salles na direção.

– Encontrei a Paula no lançamento do livro e ela fez o convite para fazermos o documentário. Ela já havia resgatado imagens de acervo familiar e captado alguns depoimentos de amigos, como Maria Adelaide Amaral, Luiz Arthur Nunes, Joyce Pascowtich e Graça Medeiros – lembra Salles, que acertou com a Conspiração Filmes a produção do longa. – Ela estudou o quanto eu conhecia e admirava o Caio. E imediatamente mergulhei novamente em todos os livros. Pesquisamos entrevistas de TV em que ele fala sobre a doença, o planeta e literatura, descobri um filme sensacional em Super-8, de 1975, rodado quando ele morava em Londres, e em que ele atua. Outro totalmente inédito, na França, em que ele filma passagens narradas por alguns textos, mostra seus passeios pelos parques, sua condição de estrangeiro. Agora é hora de pegar a câmera e sair entrevistando gente como o Gilberto Gawronski, Marcos Breda, Bruna Lombardi, Vânia Toledo, e muito mais. A minha pretensão é a de conseguir fazer um documentário doce, simples, bonito e poético, como ele.

Arrebatadora como a aparição de Cazuza e Renato Russo no cenário musical brasileiro, a literatura visceral de Caio Fernando Abreu abriu um clarão de possibilidades na literatura nacional contemporânea – com especial impacto entre os jovens. Em vez de amplificadores, microfones e guitarras distorcidas, lançou mão, literalmente, de um arsenal de impressões, sensações, sentimentos e questionamentos atemporais que fagulhavam em sua mente irrequieta, atravessava seu corpo até sair pelos poros. Ou melhor, por dedos que batucavam, em ritmo frenético, numa velha e surrada máquina de escrever – seu instrumento de ação. Ao mesmo tempo em que reverberavam os versos cunhados pelos ídolos roqueiros, a década de 1980 fez explodir obras do quilate de Morangos mofados, Triângulo das águas e Os dragões não conhecem o paraíso, que cravam, até hoje, seu nome no imaginário de uma geração que põe abaixo uma de suas marcantes frases: “Queria tanto que alguém me amasse por alguma coisa que escrevi”.

– O motor desse documentário é fazer com que os jovens de hoje se interessem e tenham mais informações sobre ele. É impressionante ver o quanto essa garotada está interessada na obra do Caio. Pessoas que não conviveram, não o viram na TV, nem o leram no jornal... Queremos homenageá-lo. Essa moçada precisa ler esse grande escritor brasileiro, as editoras têm que se interessar em reeditar. Quanto mais se fala, mais atenção. É só acessar o YouTube ou os blogs para ver a quantidade de garotos que escrevem ou que montam seus textos.

Candé foi um desses. Produtor de teatro, cinema, diretor de casting e de programas de TV, como As pegadoras, da emissora à cabo Multishow, aos 12 anos ele iniciou sua incursão ao universo artístico. Fez o Tablado e, logo depois, já deu o ponta pé em suas primeiras produções. Aos 17, surge com Bailei na curva, texto que serviu como début ao ator Felipe Camargo como diretor teatral. Após a temporada, indicado pela amiga Gabriela de Chevalier, debruçou sobre o clássico Morangos mofados. “Metido a se meter nas coisas”, como diz, se uniu aos amigos-atores Maurício Branco e Natália Lage para montar A beira do mar aberto – colagem de textos pinçados de seis contos sobre a solidão. Aprovada pelo autor, entrou em cartaz em Fortaleza, dirigida por Gawronski, no último ano da sua vida.

– Seus textos eram o que eu queria ler. Comprei todos os livros, me viciei completamente e comecei a presentear os meus amigos. Costurei os textos para a peça e pedi autorização para a maluquice. Ele amou, ficou impressionado porque eu era muito novo. Na estreia, passamos uma semana juntos e eu fiquei louco, mais apaixonado do que eu já era. Ele era engraçado, sensível e muito observador. Apesar de doente, em nenhum momento deixou de fazer nada, ir à piscina, sair para jantar e fumar. Seu vício.

Após o primeiro encontro, passaram a se falar por telefone, trocar planos, intimidades e ideias sobre teatro, literatura, astrologia, entre outros interesses.

– Éramos amigos. Ligava apenas para ouvir a sua voz, aquela coisa de fã – conta. – Foi uma identificação forte gerada pela capacidade de descrever e exemplificar sentimentos e sensações que eu nunca havia visto. Sempre li muito, mas ele tocava no meu coração e na minha ferida. Foi o primeiro escritor que me fez chorar, que me fez ver o mundo de outra forma. Como a Paula diz, eu tive a honra de conviver com ele. Poucos da minha geração tiveram o prazer de ter sido tocado por ele na minha formação como ser humano e homem.

Íntimos por mais de 20 anos, tendo trabalhado juntos em redações de revistas e jornais, a autora de Para sempre teu, Caio F., Paula Dip – que participa da mesa Escrever Sobre Escritores, na 15ª Bienal do Livro, com início no dia 10 de setembro – não estava no país durante os últimos dois anos de vida do autor. Se comunicavam por telefone ou cartas, as quais Caio escrevia diariamente para os amigos.

– Sofri a morte do Caio 10 anos depois, quando me deparei com suas imagens de arquivo. Espero que o filme emocione.

Inserida como personagem de seu próprio livro, ela mergulhou fundo em lembranças.

– Cativava amizades com cartas e diários que escrevia sem parar. 24 horas era pouco. Adorava cuidar do jardim, ouvir música, tomar chá, apreciar bons vinhos e sair para dançar, quando tinha grana. Nunca juntou, não quis ficar rico.

O autor, que rejeitava o rótulo de literatura gay, respeitava, acima de tudo, sua individualidade.

– Era sexualmente livre, namorava homens e mulheres, fazia o suas vontades, algo que vejo nos jovens. Tinha altos e baixos. Precisava da solidão, a mesma a qual se debatia. Escreveu sobre a vida, a morte e a superficialidade das relações. Procurou a vida toda por um grande amor que, talvez, nunca tenha acontecido. Sua grande companheira era a literatura.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Dimiter Gotscheff atualiza Shakespeare com 'Hamlet-máquina'

Desde a sua morte, aos 66 anos, a obra do diretor, dramaturgo e poeta Heine Müller (1929-1995) não para de ganhar dimensão. Enquanto multiplica-se o número de montagens por conta dos 80 anos de seu nascimento, celebrados em 2009, ele tem seu trabalho renovado pelo interesse de jovens montadores e é tido por teóricos contemporâneos como o maior nome do teatro alemão desde Bertolt Bretch (1898-1956). Um velho – e importante – companheiro, no entanto, é hoje o maior responsável pela circulação de seus textos mundo afora. Discípulo, parceiro de palco e um dos mais profícuos montadores da obra do autor, com mais de 15 textos encenados, o búlgaro Dimiter Gotscheff apresenta terça e quarta, no Espaço Sesc, o aclamado Hamlet-máquina (Hamletmachine).

– Cada vez que trabalho com seus textos, descubro um universo de possibilidades. A obra de Müller é inesgotável – atesta Gotscheff, em entrevista ao Jornal do Brasil. – Conheci-o em 1964 e foi a primeira vez que tive acesso a um trabalho de sua autoria. Desde então, ele está presente na minha vida e no meu trabalho. Apesar de já ter encenado uma série de textos, ainda não terminei de montar todos os que eu gostaria. Me sinto honrado por ele ter existido e participado da minha vida, mas o que realmente aprendi com ele foi beber uísque.

Diretor permanente do Deutsches Theater Berlim, onde começou a carreira como aluno e colega de Benno Besson, Gotscheff desenvolveu para sua minitemporada brasileira uma versão especial para o escrito – um comentário radical e atualizado sobre a mais célebre tragédia shakespeariana. Passado no fim do regime comunista na Alemanha Oriental, o texto, garante o diretor, tem sua densidade e alcance intactos, mesmo após o fim da polaridade que dividia o mundo durante o período da Guerra Fria.

– Os textos de Müller apontam para o futuro. Ele mesmo dizia que seu trabalho era um diálogo com os mortos. E por esse motivo são absolutamente válidos e importantes para a realidade de hoje – afirma o diretor. – Não é porque o comunismo ou o socialismo real acabaram que o seu texto perde pegada contemporânea. A utopia é parte integrante da escrita de Müller, assim como é elemento fundamental do meu trabalho como diretor.

Estruturada em cinco cenas que espelham o nosso tempo e a tragédia de Shakespeare, Hamlet-máquina sinaliza as catástrofes da história e da cultura ocidental e reflete sobre a crise do pensamento artístico e intelectual nos dias de hoje. Dividido entre o desejo de se transformar numa máquina sem dor ou pensamentos e a necessidade de se tornar um historiador desse tempo, o protagonista, interpretado por Gotscheff, contracena com mais dois personagens, vividos por Paula Cohen e Gero Camilo.

Hamlet-máquina trata do fim de um sistema. E nele, o ator que interpreta Hamlet, no caso eu mesmo, se acaba junto e dentro do sistema. A frase central que simboliza a visão de Müller é “A esperança não se concretizou”. Hamlet a anuncia em seu momento mais trágico, e serve como um emblema para o mundo em que vivemos. Infelizmente, a esperança não se concretizou.

Interessado pela crítica poética de Müller, mais do que pelos desdobramentos políticos do dia a dia, Gotscheff concorda que a grave crise financeira ocorrida no último ano, uma das maiores da história, serviu muito pouco para a mudança da mentalidade ocidental e do momento cultural, histórico e social que atravessamos.

– Sou interessado pela complexidade como Müller analisa e atualiza os textos clássicos. Ele dizia que o fim do socialismo real não era uma tragédia, mas sim que o pensamento velho e conservador tenha vencido. E é o que o torna atual quando fala de utopias sociais. Vivemos num tempo de alienações. O que é muito grave para nós. Na peça, é justamente o buraco negro que se abre diante de Hamlet.

Teatro de atores

Em suas montagens, Gotscheff segue à risca a filosofia do teatro pobre, que dispensa os recursos atmosféricos dos grandes cenários e figurinos. Concentrado em desvendar a alma humana, esteve à frente dos teatros municipais de Colônia, Düsseldorf, Hamburgo e Berlim, e foi descrito pelo ator Dieter Prochnow como “o único diretor que realmente ama seus atores”.

– Fico completamente concentrado neles. Meu teatro está ali. Cenário, figurinos e recursos técnicos ficam em segundo plano.

Reduzido à essência, a concentração nos atores reflete um espetáculo espartano que contrasta e se distingue da poesia selvagem e irônica tão comum no teatro de hoje, mesmo o alemão.

– A dramaturgia contemporânea alemã me impressiona muito pouco – diz. – Müller é ainda mais do que suficiente. Só trabalho com bons textos, ou seja, desafiadores. Aí pode ser um clássico ou um contemporâneo, tanto faz.

A franqueza explica a versatilidade do encenador, que já montou obras variadas, como A luta do negro e dos cães, de Bernard-Marie Koltès; Ivanov, de Anton Tchecov; Tartufo, de Molière; A morte de um caixeiro viajante, de Arthur Miller; além de uma adaptação de Müller para Os persas, de Ésquilo; – apresentada ano passado no Brasil – assim como para Titus Andronicus, de Shakespeare, apresentada recentemente em Berlim.

– Shakespeare teria ficado feliz com o texto de Müller, que também é um gigante. E tenho a certeza de que ele teria se revirado na tumba, mas feliz, se visse a minha encenação – diverte-se. – Essa versão para Titus... é politicamente muito atual. Fala da queda do reino romano, engolido pela periferia. Não é o que estamos vivendo e discutindo nos dias de hoje? A fome do terceiro mundo e a voracidade do mercado. A fome é o ponto central que deve ser atacado.

Autor de "Sonho de outono", Jon Fosse renega rótulo de difícil

Nascido em Haugesund, na Noruega, o dramaturgo Jon Fosse, 50 anos, é avesso a entrevistas. Classificado como o maior autor norueguês desde Ibsen (1828-1906), curiosamente há pouco mais de uma década ele se dedica ao teatro, tendo seus textos traduzidos em 40 línguas e montados por nomes como Jacques Lassale e Thomas Ostermeier. Em Sonho de outono (1999), texto que ganha versão dirigida por Emílio de Mello a partir desta sexta-feira, no Centro Cultural Correios, o autor investiga a dificuldade de relacionamento entre um homem, seus pais e duas mulheres, a partir de situações vividas num cemitério. Com diálogos simples e enigmáticos, ditos no limite entre o realismo e o absurdo, ele revela ao Jornal do Brasil, os temas de sua predileção: “Os antigos, como o amor, a morte e o oceano”.

Em 2007, foi montada no Brasil a uma versão de 'Um dia, no verão'. À época, uma das atrizes disse que foi difícil encontrar o tom porque o senhor oferece poucas informações sobre os personagens. Eles não têm nome, idade, local de origem... Considera suas peças difíceis?

- Não. A peça é tão simples quanto difícil, assim como é a vida. Mas a atriz está certa, em dada medida. Eu não escrevo personagens de um jeito convencional. As pessoas da minha peça se tornam personagens quando os atores entram em cena. Meus textos retratam as dimensões emocionais entre as pessoas.

Como lida com as adaptações para os seus textos? Você chegou a participar da montagem de 'Sonho de outono'?
- Eu prefiro apenas fazer o meu trabalho, que é escrever, e deixar que os outros se encarreguem da porção teatral. E assim como preciso decidir todas as questões dos meus textos, deixo que os diretores decidam o que pertence à teatralidade. Por outro lado, há tantas produções das minhas peças que, mesmo se eu quisesse controlá-las, seria impossível. Eu prefiro não cooperar com os diretores.

Os dois textos foram lançados em 1999. Até que ponto eles lidam com o mesmo assunto?

- Os dois textos são sobre o amor, sobre se apaixonar e perder o amor. As duas falam sobre a solidão. Mas enquanto Um dia... também versa sobre amizade, Sonho... aborda as relações familiares, principalmente entre uma mãe e um filho.

Em 'Sonho...' temos um homem com dificuldades de se relacionar. É uma reflexão sobre falta de comunicação ou de integração entre as pessoas?

- Eu nunca explico os meus escritos. O que eu tenho a dizer está nas montagens.

Qual o propósito por trás da escolha de um cemitério como pano de fundo? Aprender a lidar com a morte como um segredo para a vida?

- Ao menos, é isso que podemos aprender com a literatura e com o teatro: aprender a morrer. Quanto ao cemitério, pareceu adequado à história. Mas é claro que não é obrigatório levá-lo ao palco.

O que lhe motivou a traçar essa história?

- Sou um escritor. Eu escrevo. É o meu estilo de vida. Sempre tento escrever da forma mais verdadeira e bela possível. E a cada novo trabalho um universo diferente é criado.

Ibsen é considerado o mais importante dramaturgo norueguês. E é seu mais famoso e associado predecessor. Como o avalia?

- Ibsen é um gênio. Nenhum outro escritor jamais descreveu as forças destrutivas da vida da forma como ele as destrinchou.

Até que ponto Ibsen lhe serviu de influência?

- Como um norueguês interessado em literatura, é claro que eu conheço seus textos muito bem. Mas é difícil de dizer. Ele não é exatamente uma influência tão direta, é algo mais geral. Também porque ele pertence à restrita seara dos maiores dramaturgos do mundo.

É um carma pesado esse tipo de comparação?

- Não. Mas geralmente soa injusto tanto para ele quanto para mim.

Você chegou ao teatro bem tarde. Havia certa relutância em escrever peças?

- Eu me interessava por literatura, não teatro. Depois eu notei que o que eu estava procurando na minha literatura, e na minha escrita, estava presente numa grande peça.

Você estreou nos palcos com 'E nunca nos separarão', em 1994. Com mais de uma década no teatro, como analisa a evolução do seu trabalho?

- É difícil julgar meu próprio impacto. Mas eu tenho produzido muito. E meus textos são traduzidos para mais de 40 línguas.

Você atravessou praticamente todos os gêneros literários. Há fascínio especial por algum?

- Sou mais famoso como dramaturgo. Mas, basicamente, sou um poeta em tudo o que escrevo, seja um poema, uma peça ou um romance. A melhor definição é dada por Lorca: uma peça é um poema posto de pé.

Até que ponto Jon Fosse está inserido em seus textos?

- Até certo ponto. Mas para mim, escrever é ouvir, e eu não sou um autor autobiográfico. Eu nunca uso minhas experiências pessoais diretas nos meus escritos. Se fizesse isso, escreveria mal. Escrevo sobre as estruturas emocionais da vida.

Como tenta conciliar ritmo da linguagem às dimensões poéticas, metafóricas e visuais?

- É uma espécie de escuta, como disse. Não tento fazer nada, porque se você tenta não consegue alcançar. Apenas temos que fazer.

Como vê a literatura norueguesa contemporânea? Que autores destacaria? E por quê?

- Temos muitos bons escritores e muitos ruins. Nos últimos anos a literatura policial tomou o lugar antes ocupado pela literatura séria. É uma pena. Dag Solstad é o nosso melhor romancista contemporâneo. Assim como Olav H. Hauge é o nosso melhor poeta, mas que já morreu há uns 10 anos.

Certa vez, você escreveu: “Mas quem sou eu, então? Quem supostamente seria Jon Fosse?” Questão perturbadora para qualquer um e que, talvez, tem relação com a seminal questão de Shakespeare: “Ser ou não ser, eis a questão”. Como se relaciona com Shakespeare?

- É um gigante, talvez grande demais para mim. Eu me sinto próximo de Racine. A forma em Shakespeare é um aberta, enquanto em Racine é mais estrita e fechada. Sou um escritor do tipo de Racine.

Poderia detalhar como outras formas de arte influenciam o seu processo criativo? Parece que a música é elemento primordial na sua vida...

- Quando mais novo, eu era músico. Mas há muitos anos eu parei de tocar. Ainda sinto a minha escrita mais próxima do tocar que do ato de falar ou do escrever jornalístico ou acadêmico. Também amo pintura, e a minha escrita também se assemelha a retratos. Se você, como artista, muda alguma coisa aqui e ali, é preciso alterar as coisas em muitos outros lugares. Tudo está conectado numa precisão louca. É assim a grande arte. É assim a grande dramaturgia.