Era 1942. Caía a noite e Vinicius de Moraes acabara de chegar à casa do pintor Carlos Leão, ao pé do Morro do Cavalão, em Niterói. Ao fitar a estante do anfitrião deparou-se com um libreto da ópera Orfeu e Eurídice, de Gluck. Não titubeou. Deslizou os dedos sobre o objeto e o pinçou da coleção. Chafurdou na poltrona e, numa sentada, devorou suas linhas. Aproximava-se o Carnaval. Da janela ao lado, o morro em polvorosa emendava uma batucada que avançava os ponteiros do relógio. Passava da meia-noite. E o poetinha lá – imóvel. Naquela única madrugada, completamente absorto, destrinchou um rascunho até chegar o amanhecer. Às primeiras hora do dia dava à luz o primeiro ato de Orfeu da Conceição.
“Orfeu sempre me interessou por causa do negócio do poeta músico, do poeta total, né? E, depois, por causa da relação sublime do amor dele por Eurídice. As duas ideias se fundiram. Eu senti o morro negro numa série daqueles elementos. As paixões, a música, a poesia...”, relatou o poeta em depoimento ao MIS, em 1967.
Cinquenta e três anos após a estreia de Orfeu da Conceição num Teatro Municipal apinhado com a nata da intelectualidade carioca, em 1956, o produtor Gil Lopes está submerso em seu novo projeto. Define cada detalhe de uma nova montagem para a ópera greco-carioca cunhada pelo poeta e adornada pelas composições de Tom Jobim – marco do primeiro encontro da eterna parceria. A partir de 2010, palcos de 10 capitais brasileiras ganham o presente. Cotado para assumir o protagonista, Lázaro Ramos não pôde atender ao convite, devido à agenda repleta. Com a direção de Aderbal Freire-Filho, o cartaz da montagem afixa, até agora, uma única mensagem: “Procura-se Orfeu”.
– Conversamos bastante, mas infelizmente não conseguimos conciliar – diz Lopes.
E quem será Eurídice?
– Ela depende quase que exclusivamente de quem será Orfeu... – despista Freire-Filho.
Afinada, só há duas semanas a dupla pôde celebrar a aprovação integral do Ministério da Cultura para o projeto. Com a injeção de ânimo, Lopes trabalha para captar recursos, que estão disponíveis via Lei Rouanet. Desde a sua mítica estreia, “a mais célebre tragédia carioca não é montada seguindo à risca as orientações firmadas pela dramaturgia original de Vinicius”, diz Lopes.
– Montamos clássicos mundiais e esquecemos que Orfeu, o nosso grande baluarte, não é encenado desde 1956. A nossa geração não conhece Orfeu – afirma. – O país precisa se rever através do mito. Hoje vivo para montá-lo, num desejo obstinado. Não vejo nada mais oportuno e urgente do que revermos a poética da peça. É o que de melhor criamos na música e no teatro. Precisamos recobrar essa inspiração. Por trás da obra, está todo o conhecimento de Vinicius sobre o Rio, o morro e o Carnaval. Temos que celebrar a nossa memória e usufruir da obra que esses dois nos legaram, esse mito que nos constitui absolutamente.
Há quem, todavia, conteste a versão. Protagonista da encenação original, com cenários de Oscar Niemeyer e direção de Leo Jusi, Haroldo Costa defende suas duas montagens realizadas em 1995 e 1997, protagonizadas por Norton Nascimento e Kadu Carneiro.
– Foram montagens fiéis. É claro que a atmosfera em que os atores representam gira numa visão diferente, que era a minha como diretor. É um texto tão rico que, agora, Aderbal, com todo o seu talento, dará grandes proporções – recorda Costa. – Na época da primeira montagem, Vinicius reuniu um time memorável para esse grande acontecimento cultural, talvez o marco fundador da bossa nova. Espero que o impacto se repita.
Entusiasmado com a possibilidade, Aderbal Freire-Filho ratifica a tarimba de Vinicius de Moraes como um grande dramaturgo.
– Orfeu é o mundo. Ao mesmo tempo humano e marginal, ele representa a combinação do mito com as peculiaridades da cultura brasileira. Seja na a música que ainda hoje interessa o mundo inteiro, assim como nos nossos costumes, na mistura de raças. É a conjunção dos traços que nos diferenciam.
Obra influenciou até a mãe de Barack Obama
“Uma noite, enquanto folheava o jornal, os olhos de minha mãe se iluminaram com o anúncio do filme Orfeu negro (1959) – longa de Marcel Camus, baseado na peça de Vinicius de Moraes e premiado com o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e com a Palma de Ouro em Cannes – que estava em cartaz no centro da cidade. Ela insistiu que fôssemos vê-lo naquela noite... Subitamente percebi que a representação dos jovens negros, que eu via agora na tela... era reflexão das fantasias simples que haviam sido proibidas a uma garota de classe média branca do Kansas... Minha mãe era aquela menina do filme, cheio de belas pessoas negras na cabeça, seduzida pela atenção de meu pai”. O relato acima é do atual presidente dos EUA, Barack Obama, e consta em sua biografia A origem dos meus sonhos.
– O Brasil conhece pouco o Brasil. Quase ninguém sabe dessa historia aponta o produtor Gil Lopes. – O presidente dos EUA, filho de uma americana branca que se encantou pela cultura negra ao ver Orfeu, que representa um Brasil livre, a democracia em sua plenitude, o desejo de potência que nos alimenta. É o marco de um monumental legado artístico. O cinema do mundo e do Brasil se apoderou e reverberou sua potencialidade nas telas. Já passa da hora de o teatro revivê-lo.
Após o convite de Lopes, Aderbal Freire-Filho colocou-se a redescobrir o mito e toda sua potência política e cultural.
– Não vi Orfeu..., mas senti todo os ecos. Hoje temos o negro cada vez mais presente em todos os segmentos sociais. Vinicius prenunciou esse avanço. Em 1956, era um diplomata e não tinha nenhum negro como companheiro de trabalho. O teatro afro ainda era muito incipiente, apenas com algumas tentativas experimentais de Abdias do Nascimento. Mas Vinicius reposicionou nossa arte.
NOTAS SOLTAS E RUÍDOS ESCRITOS
quarta-feira, 23 de setembro de 2009
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