NOTAS SOLTAS E RUÍDOS ESCRITOS

domingo, 28 de fevereiro de 2010

Coldplay - Os bons moços no topo do mundo

Chris Martin pode ser considerado o rock star padrão dos anos 2000. Confuso, melancólico e inseguro – e bom moço também, é claro. Portanto, nada afeito à linhagem rebelde que a tradição do gênero talhou como forma dos anos 60 em diante. Martin, que se apresenta à frente do Coldplay neste domingo na Apoteose, prefere alinhar sua persona à cinematografia de Woody Allen. Estranho? Nem tanto. Ao longo da carreira, foram muitas as referências ao cineasta, além de depoimentos que poderiam sair diálogos entre os mais paranóicos personagens do diretor.

– Eu nunca escuto os meus discos, porque eles me fazem desmanchar em lágrimas e suar frio – disse certa vez.

Ao contrário do cantor, que se nega a escutar suas próprias canções, cerca de 40 mil cariocas estão em contagem regressiva para se espremer na passarela do samba em busca e se desmanchar em suor e lágrimas – mas de prazer – com os hits da banda. A Viva la vida tour, que cumpre uma de suas últimas pernas na América do Sul, é uma superprodução que acumula desde 2008 cerca de US$ 212 milhões, além de três milhões de espectadores em mais de 25 países.

Contando com uma megaestrutura de palco, a apresentação toma como base o repertório do quarto álbum dos ingleses, Viva la vida or death and all his friends. No repertório, as recentes Violet hill, Viva la vida, Lovers in Japan, Lost! e Strawberry swing dividem espaço com os maiores sucessos do grupo, como Clocks, Yellow, In my place, The scientist, Speed of sound, Fix you, entre outros. É mais um supershow internacional a monopolizar a atenção dos cariocas, que ainda terão em breve as presenças do Guns’n Roses, A-Ha, Franz Ferdinand e Simply Red.

A tão aguardada apresentação do Coldplay conta com aperitivos de primeira. Uma das maiores revelações do cenário alternativo atual, a banda Bat for Lashes entra no palco às 18h50. Criado em 2005, o projeto solo da cantora e multiinstrumentista Natasha Khan conta com dois álbuns de carreira e uma porção de indicações às maiores premiações da música britânica. Aos 31 anos, a morena nascida em Londres e descendente de paquistaneses aposta numa azeitada mistura de pop, folk e eletrônica. Indicada ao Mercury Prize pelo seu mais recente trabalho, Two suns, e ao Brit Awards, na categoria Melhor Artista Solo Feminino, Natasha explora uma série de dualidades em letras nada convencionais. Amor, ódio, dor, personalidades dúbias e conflitos existenciais recheiam o campo temático esculpido pela talentosa cantora.

Em seu novo álbum, que conta com a participação de integrantes do badalado trio nova iorquino Yeasayer, Natasha incorpora um alter ego chamado Pearl; uma femme fatale loura, autocentrada e destrutiva. Produzido por Dave Kosten, que também assina o seu álbum de estreia, Fur and gold (2006), Two suns é um álbum soturno, que remete ao trabalho de artistas como Kate Bush, Tori Amos e Goldfrapp, e tem no single Daniel seu maior trunfo.

Antes de Natasha Khan adentrar a Apoteose, os roqueiros do Vanguart abrem os trabalhos a partir das 18h. Considerados uma das mais promissoras revelações do cenário alternativo brasileiro, os garotos de Cuiabá atacam com canções diretas e dançantes, que bebem nas raízes da música americana, mais precisamente o blues e o folk.


Viva la vida



42



Há 10 anos, com Yellow

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Wilco e Mutemath

Wilco - The album: Neste oitavo disco de carreira o sexteto de Chicago passeia pelos gêneros que perfilou ao longo de seus 15 anos de carreira. Se há muito que a banda se distanciou da sonoridade eminentemente folk e country, Wilco (The album) é um disco pop, radio friendly, recheado de baladas. Melodista versátil e letrista afiado, o líder e compositor Jeff Tweedy joga o tempo todo com a percepção do ouvinte, assinando versos de carga emocional intensa e os camuflando com melodias doces e ensolaradas. Sem experimentalismos, suas 11 novas canções soam, boa parte do tempo, leves e assobiáveis.

Apenas vez por outra Tweedy empresta sua carga emocional conturbada para os arranjos, como na hipnótica e urgente Bull black nova, que arrasta o ouvinte para uma espiral de guitarras distorcidas e uma pungente e cíclica linha de baixo. Sem despertar grandes sobressaltos, o disco não carece de unidade, mas, sim, de ambição. Cantor de poucos recursos, Tweedy tem rendimento irregular, que pende ao desafino em algumas canções. Destaca-se a bela e quase pueril You and I, que leva a participação da diva indie Leslie Feist.

You and I



Mutemath - Armistice: Formado em New Orleans, o Mutemath aposta num rock de arena, grandioso e, talvez, um tanto exagerado em sua inerente inclinação ao mainstream e ao grande público. No segundo CD, o grupo soa como uma mistura entre The Killers, Muse, Jane’s Addiction e U2, navegando por batidas eletrônicas, cordas e guitarras espaciais. O resultado é um rock direto, guiado pela potente voz de Paul Meany e a bateria devastadora de Darren King. Apesar da grandiloquência, o Mutemath pode ser considerada uma das mais criativas bandas do cenário americano – não que isso diga muita coisa, é claro..

Backfire




Typical

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

The Roots - How i got over

Enquanto o novo álbum do The Roots segue no forno até outubro, segue rodando o clipe do novo single, How i got over. Serve como boa prévia e esperança de que o 11° disco seja melhor que o último, Rising down, e tão bom quanto o penúltimo, o irretocável e impressionante Game theory. Há muito o The Roots representa o que há de melhor no rap americano. Sonoridade orgânica executada por uma big band de primeiríssima.

How i got over:

Gil Scott-Heron - I'm new here

Um poeta negro que sonhava em apenas ser escritor. Mas que entre uma encruzilhada e outra, ao misturar ritmo e poesia, tornou-se o pai do rap como o conhecemos. Sigo lendo o primeiro romance de Mr. Gil Scott-Heron, Abutre. Brutal, sombrio e sexual, assim como as canções de seu tão aguardado novo disco, I'm new here, lançado este mês. Em 2007 Scott-Heron cumpria pena por posse de cocaína quando recebeu uma visita do produtor Richard Russell. O boss da XL Recordings (Radiohead, White Stripes) propôs liberdade total para a gravação de um novo trabalho. O resultado do que foi gravado entre 2007 e 2009, dentro e fora da cela, você deve ouvir aqui:






Sinta e veja o novo single, Me and the devil:


quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Alejandro Sanz e Jorge Drexler lançam trabalhos em busca de novas sonoridades

Durante um passeio de barco pelo litoral de Nova York, em meados do ano passado, Alejandro Sanz curtia o bom tempo rodeado de amigos. Entre eles, uma presença especial fazia daquela tarde ainda mais paradisíaca. Não era a primeira nem a última vez que ele se encontraria com a cantora americana Alicia Keys – que na semana passada gravou um clipe com Beyoncé no Rio – mas naquele instante despertava o conceito que embala seu oitavo disco de carreira, Paraiso express. Após se conhecerem nos bastidores de uma edição do Rock in Rio Lisboa, estabeleceram uma conexão imediata, mas Sanz não sabia até que ponto poderia levar adiante aquela empatia. A admiração era mútua, mas só alguns meses depois, durante o repentino encontro a bordo, eles construíram uma nova parceria.

– Nós nos encontramos nos bastidores, brincamos um com o outro e sentimos uma conexão. Então, alguns meses depois, durante esse encontro, eu estava tocando guitarra e começamos a improvisar.

Do primeiro encontro surgiu o esboço de uma nova canção, Looking for paradise, agora transformada no carro-chefe do novo trabalho de Sanz. Um dos maiores ganhadores do Grammy Latino, com 15 gramofones na estante, Sanz é um dos grandes fenômenos do mercado fonográfico espanhol, com cerca de 25 milhões de álbuns vendidos. Lançado no início do ano, Paraiso express já encabeça as principais paradas do México, Espanha e Estados Unidos. E o videoclipe do primeiro single, gravado com Alicia Keys, conta com mais de um milhão de exibições no YouTube. Extasiado com a parceria, ele recorda cada detalhe da construção de seu mais novo hit.

– Passou algum tempo até ela vir ao meu estúdio, em Miami. Lembro que começamos a tocar para relembrar a canção e Tommy Torres (produtor do disco) gostou bastante, mas quis mudar uma coisa ou outra na melodia – recorda. – Trabalhamos em cima das sugestões, mas a coisa não estava funcionando. Até que ela decidiu que deveríamos gravar da forma como havíamos feito no barco, em Nova York. A conexão estava ali. Alicia começou a escrever a letra em inglês e eu a minha parte, em espanhol. Ela é uma grande mulher, uma artista completa.

Produzido pelo porto-riquenho Torres e mixado por Bob Clearmountain (Rolling Stones, Bruce Springsteen, Paul McCartney), Paraiso express flerta com uma sonoridade próxima ao pop rock britânico. Se dá um passo à frente para conquistar novos fãs, não deixa de inserir as baladas românticas que talharam seu sucesso entre as rádios populares mundo afora.

– Percebo certa evolução em todos os meus discos. Busco sempre fazer algo diferente, sem repetir fórmulas – explica Sanz. – O que faço hoje cresce numa direção rock, mas sempre passa pelo flamenco e pelo pop. Paraiso... é um disco mais próximo da roupagem pop rock nos arranjos, um rock mais sinfônico, com orquestrações. Tentei alcançar esse tipo de sonoridade, que é muito poderosa e energética.

Por trás da tal energia que impulsiona a rouquidão indistinta da voz de Alejandro Sanz está um conceito ensolarado, que perpassa todas as suas novas canções. Bon vivant, o ícone espanhol e ídolo latino mostra que o tal passeio de barco serviu para muito mais do que refrescar as ideias.

– Ali surgiu um conceito. Falo sobre os pequenos paraísos que encontramos no dia a dia. Maravilhas que acontecem perto de nós, mas que não percebemos. Isso pode ser numa simples reunião familiar, ou numa noite de muito sexo, por exemplo.


Drexler mais orgânico

Assim como Alejandro Sanz, o músico uruguaio, mas radicado na Espanha, Jorge Drexler não é dado a repetições. Com mais de 10 álbuns na bagagem, ele agora acena com Amar la trama. Gravado num set de televisão, em vez de um estúdio convencional, Drexler reuniu nove músicos, dispostos em círculo num amplo salão, para registrar suas novas canções ao vivo. O músico, que iniciou a carreira com uma sonoridade aparentemente folk, repleta de instrumentos acústicos – e, anos depois, enveredou pela eletrônica – agora soa orgânico e mais quente, acompanhado de metais e percussão.

– Já havia me desenvolvido bastante como músico quando comecei a trabalhar e produzir com computadores, o que eu adoro fazer até hoje. Ao mesmo tempo, precisava mudar, não queria repetir a linguagem de álbuns anteriores, e sempre admirei o estilo de gravação antigo, adotado por gente como Frank Sinatra. O cantor soando numa grande sala, interagindo com os músicos...

No caso de Drexler, o músico interage também com uma pequena plateia, que foi reunida para aquecer ainda mais o set.

– É um público ausente na gravação final. Mas sinto há muito tempo que a música precisa ter um alvo. Sentia a falta dessa troca durante a gravação dos meus últimos trabalhos. Como numa peça de teatro, tudo se modifica com a presença do público. Queria esse estado de alerta e tensão entre os músicos. Não queria algo relaxado na comodidade de uma pequena sala. Além disso, sei que nós, músicos, temos uma grande tendência à sedução. Eu mudo completamente a maneira de tocar quando alguém me observa, e sabia que isso iria acontecer com todos os músicos.

Ao escutar o resultado, Drexler não escondeu o incômodo com “aquela sujeirinha de uma gravação captada ao vivo”. Aos poucos, porém, se acostumou com a nova sonoridade. E empolga-se em detalhar o que move as mudanças que embalam as várias fases da sua carreira.
– Procurava algo mais luminoso, quente, orgânico e vivo. Queria algo mais real, apesar de saber que a verdade não é um monopólio da naturalidade – filosofa. – Eu sigo golpeando e arriscando, mas quando eu sinto que já transitei demais por um estética decido mudar. Quando ouvi pela primeira vez fiquei em pânico, porque no computador eu edito, limpo e acerto cada detalhe. Numa sala, os microfones captam a ressonância dos outros instrumentos. Apesar dos erros, queria realmente largar o laboratório e o microscópio. E acabou sendo ótimo.

Ganhador do Oscar de Melhor Canção por Al otro lado del río, incluída na trilha sonora de Diários de motocicleta, de Walter Salles, Drexler acumula trabalhos enquanto cuida do lançamento.

– Compus uma nova canção para o novo filme de Andrucha Waddington, que é como se fosse um soneto.

Além disso, acaba de assinar a trilha sonora para o novo longa de James Ivory, The city of your final destination, com Anthony Hopkins no elenco.

– Sou fã de Ivory. É um dos meus diretores favoritos.

À maneira de um bom roteiro de cinema, Drexler trata Amar la trama como uma narrativa, e destaca a multiplicidade de significados de sua nova trama.

– Gosto de vogais porque elas nos despertam emoção. Além disso, trama é uma palavra polivalente, que pode sugerir uma confabulação, a sequência de um caminho, uma circunstância... Amar la trama é um conceito narrativo. Mais que o desenlace, eu quero desfrutar o trajeto.

E, se possível, com novos companheiros de música.

– Gostaria muito de compor com Marcelo Camelo e Rodrigo Amarante. Dê esse recado a eles.


Una canción me trajo hasta aquí

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Edu Lobo - Antigas canções por novas marés

Quase 10 anos afastam o último trabalho autoral assinado por Edu Lobo, Cambaio, deeste Tantas marés, editado agora pela Biscoito Fino. Durante esse tempo, severas tormentas chegaram a levar o condutor do barco a quase perder o prumo.

Como se vê, no entanto, Edu recuperou-se bem do aneurisma cerebral que ameaçou a sua vida e a continuação de sua sofisticada obra, há seis anos, e da fratura do cotovelo em setembro último, ao cair de uma escada.

Seguindo o fluxo que escoa do título, pode-se dizer que em Tantas maréso autor navega pelas ondas que o embalaram, ao longo de quase meio século de carreira, por diversas correntes da MPB. Baião, bossa nova e frevo, entre outras toadas transbordam de uma coleção de composições inéditas e algumas releituras.

Uma delas, Perambulando, soa como síntese do que o compositor e cantor apresenta: “Sempre encontro um velho amigo / Para falar sobre paixão / E meu peito nessa andança / Sem querer, resgata uma lembrança de canção”.

Sem poder tocar violão desde o último acidente, Edu, que só compõe com o auxílio do instrumento, deu carga à memória para reencontrar velhos amigos e extrair novas canções.

E é com Chico Buarque, Paulo César Pinheiro e Cacaso que ele constrói este novo repertório – seis faixas instrumentais criadas por ele no passado ganham letras de Pinhei/p>

ro, quatro parcerias antigas com Chico ganham a sua voz, e uma inédita com Cacaso fecha este arco.

Tantas marés é um mar de baladas e os temas dominantes não poderiam deixar de flutuar pela solidão, paixões, temporalidade e, sim, tristeza, por que não? Edu e seus parceiros, porém, não romantizam ou deixam que tal sentimento emoldure o trabalho. E apesar de uma nostalgia dominante, o álbum não se deixa sufocar por lágrimas.

A prova é acenada logo na abertura, com Dança do corrupião, um tortuoso baião, repleto de recortes rítmicos e com uma letra que desafia a dicção e revela o malabarismo vocal de Edu para versos como “Levanta o pé, vem / pula do chão / até pegar a divisão / cumé, hein? / é a pisada do baião”, assinados por Paulo César Pinheiro para a melodia traçada originalmente por Edu no disco Corrupião (1994). Em seguida, a dupla passeia por uma bossa de ar ranjos e desenho melódico jobinianos. Exala os anos 60 em cada esquina harmônica, contornadas sempre por cordas e piano. A embalagem deste arranjo assinado por Cristóvão Bastos serve como vestimenta à Primeira cantiga, também assinada por P.C. Pinheiro e com direito à participação da cantora Mônica Salmaso.

Perambulando, lançada no disco Meia-noite (1995), é um dos pontos altos da recente safra de letras de Pinheiro, enquanto Ode aos ratos vem da lavra mais nova de Chico Buarque, que a gravou em Carioca (2006). Sem o seu violão, mas muito bem acompanhado, Edu sai-se bem como cantor e ainda melhor como pesquisador de sua própria obra.

domingo, 7 de fevereiro de 2010

Lembranças cinematográficas de Luis Buñuel

“Precisamos começar a perder a memória, ainda que gradativamente, para nos darmos conta de que é essa memória que constitui a nossa vida. Uma vida sem memória não seria nada, assim como uma inteligência sem possibilidade de expressão não seria inteligência”. Com tal pensata, o cineasta Luis Buñuel (1900-1983) dá boas vindas ao leitor que se aventura a esmiuçar suas tortuosas lembranças na “semibiografia” Meu último suspiro, escrita em colaboração com o roteirista francês Jean-Claude Carrière. Invadida por uma profusão de armadilhas, invenções e devaneios, a memória de Buñuel, assim como a de todos nós, vacila e trapaceia contra a vigilância do diretor. Como num fluxo inconsciente, deixa escapar uma narrativa oral que valoriza e ergue à superfície suas reminiscências. Ao subsistirem à passagem do tempo, elevam-se à boca de forma inesperada e assumem condição de verdade histórica – ao menos pessoal, única e intransferível. Cineasta, e não historiador, deixa de lado as anotações. Desarmado, recorre ao escudeiro Carrière para traçar um painel de contornos surreais, uma composição de lapsos e luzes que deixa escorrer seus encantos: “O retrato que proponho é o meu, com minhas afirmações, hesitações, repetições e brancos, com minhas verdades e mentiras; para resumir: minha memória”.

Antes de tornar-se cineasta, Buñuel estudou música, engenharia agrícola e entomologia. Nascido na pequena Calanda, criou-se em Zaragoza, estudou em Madrid e foi um dos primeiros espanhóis a fixar residência na luminosa Paris dos anos 20. Desde que chegara, ia ao cinema até três vezes por dia. Arrebatava-se com filmes de Eisenstein, a quem viria a conhecer; entre eles, o Encouraçado Potemkin (1925) : “Ao saírmos estávamos dispostos a erguer barricadas, e a polícia teve que intervir”, recorda. Filmes de Pabst, Murnaus e, sobretudo, Fritz Lang o lançaram a um caminho sem volta: “Foi assistindo a A morte cansada (1921) que senti que queria fazer cinema. Alguma coisa me tocou profundamente, iluminando a minha vida”.

Fazer cinema? Espanhol, crítico bissexto e sem nada que representasse bons contatos, seu primeiro emprego foi como auxiliar de Jean Epstein, para Mauprat (1926), que o contratou para “varrer o chão, fazer compras, qualquer coisa”. Suas angústias como cineasta iniciante rendem detalhadas recriações de sonhos. Num deles, perde a memória ante o subir das cortinas num palco de teatro. Em outros, se aflige com um retorno ao serviço militar, em Madri; assombra-se com a aparição de fantasmas, revira-se em pesadelos com o pai morto, além de outros como o desespero pela falta de dinheiro para pagar contas: “Este é um dos que me perseguiram mais obstinadamente. Ainda me persegue”. E o mais perturbador e constante: ao chegar numa estação desconhecida, salta do trem para comprar algo, mas este não espera o seu retorno. O pavor de sentir-se sozinho na plataforma e sem os seus pertences fazia acordar aos berros quem estivesse próximo, como muitas vezes esteve Jean-Claude Carrière. “Como contar sua vida sem falar da parte subterrânea, imaginativa, irreal ?”, pergunta-se. Vivências, sonhos e devaneios são alimentos que enriquecem sua biografia e que, ao longo da vida, serviram de combustível a muitas cenas de longas como O discreto charme da burguesia, Viridiana, entre outros.

– Minha motivação era manter Buñuel trabalhando. Ele já estava muito velho para dirigir um filme, e estava completamente entediado com si próprio, no México.

Ao longo de 18 anos de convivência e muitas conversas, entre um trabalho e outro, Carrière colheu um vasto repertório de escritos.

– Eu o convenci a escrever um livro que poderia ser como um portrait, um “libro-retrato”. Para levar adiante, eu escrevi, sozinho, no México, um dos capítulos do livro, Os prazeres deste mundo. E, apesar de ele não gostar de falar sobre si mesmo, parece que ficou convencido. A partir daí, trabalhamos juntos, como num novo roteiro.

Antes de unir-se a Buñuel, Carrière havia trabalhado com Pierre Etaix, em filmes de comédia e documentários sobre a vida sexual de animais. Em 1963, Buñuel procurava por um roteirista francês em início de carreira para o seu próximo filme, O diário de uma camareira (1964). E foi em meio aos agitos do Festival de Cannes, que Carrière foi apresentado ao cineasta.

– Uma semana depois, o produtor do longa, Serge Silberman, me levou para a Espanha. Eu era um iniciante. Nós almoçamos juntos e conversamos sobre o projeto. Ele era um homem fisicamente impressionante, mas extremamente gentil e engraçado – recorda Carrière.

Ele conta que os primeiros contatos com o cineasta foram fáceis, apesar de, entre uma sai justa e outra, ter aprendido, de tempos em tempos, a dizer não ao chefe.

– O grande perigo era concordar com ele a toda hora e nunca propor nada, ser um “Mister Yes”. Levei algumas semanas para perceber isso – conta Carrière.

Excitado com o panorama desvelado por Buñuel, aproveitou a chance para sedimentar uma parceria que durou cerca de 20 anos, com nove roteiros escritos e seis transformados em filmes. Entre os quais, além de O diário..., A bela da tarde (1967), A Via Láctea (1969), O charme discreto da burguesia (1972), O fantasma da liberdade (1974), até o último, Esse obscuro objeto do desejo (1977).

– Não posso eleger um que sintetize o nosso trabalho, mas A Via Láctea é um filme que dividimos inteiramente. Já Esse obscuro objeto do desejo mexeu muito comigo. Provavelmente porque é o último que realizamos.

Mais que um roteirista, Carrière compartilhava e impulsionava a excêntrica imaginação de Buñuel. Jogava o seu jogo, e dava corda.

– De certa forma, era até fácil lidar com ele. Acho que a nossa relação foi se desenvolvendo até nos tornarmos realmente amigos. Eu era parte da família, mas o trabalho nunca deixou de ser bastante longo e, é claro, levado a sério – garante. – Uma vez, nós chegamos a trabalhar por duas semanas inteiras, mas sem achar nada que valesse à pena. Até que decidimos voltar para casa. Para se ter uma ideia, quando fizemos O charme discreto da burguesia, chegamos a escrever cinco diferentes versões para o roteiro. Sozinho, ou em conjunto, em algum lugar remoto, sempre no México ou na Espanha.

Carrière reconhece a profunda influência do cineasta, mas revela não dimensionar até que ponto seus roteiros exerceram poder semelhante.

– Eu realmente o encorajava a filmar, mas não faço ideia do que ele achava. Ele apenas dizia que gostava da minha imaginação e senso de humor. E até hoje, quando tenho que tomar uma decisão delicada, me pergunto: “O que Buñuel faria?”

Contradições do homem e a coerência do cineasta


Meu último suspiro narra as férteis experiências de um espanhol nascido na pequena Calanda, onde a velocidade dos acontecimentos remetia à Idade Média. Buñuel engendra o leitor numa travessia que percorre um século de grandes turbulências políticas e fervilhantes agitações artísticas. Do primeiro ao último suspiro, detalha um arco temporal que ganha tinta filosófica logo nas primeiras páginas e um arremate nas linhas finais: “Tive a sorte de passar a minha infância na Idade Média, época dolorosa e sofisticada... Dolorosa em sua vida material. Sofisticada em sua vida espiritual. Justamente o contrário de hoje”.

Diretor de obras-primas como Veridiana (1961, com o qual conquistou a Palma de Ouro em Cannes), Buñuel relembra, entre capítulos como “Os prazeres deste mundo”, “Sonhos e devaneios”, “O surrealismo (1929-1933)”, “A Guerra Civil Espanhola (1936-1939)”, “Ateu graças a Deus”, entre outros, detalhes de suas produções, a começar por Um cão andaluz (1928), primeiro filme surrealista feito em parceria com Salvador Dalí, entre outros como Os esquecidos (1950) e Nazarin (1958), rodados no longo período em que viveu no México. Dono de uma forte e complexa personalidade, o diretor presenteia Carrière com frases lapidares, agudas, sarcásticas e muito bem humoradas, acerca de sua vida boêmia, sua paixão pelo boxe e pelos prazeres da vida – incluindo passagens despudoradas e polêmicas, como o afastamento do amigo Garcia Lorca e as violentas brigas com Gala, mulher de Salvador Dalí.

Ateu graças a Deus

– Ele foi o primeiro espanhol a se instalar em Paris e a ingressar no grupo surrealista; por muitas razões, inclusive morais, é claro. A partir de então, convidou Dalí a entrar no grupo. Já Lorca nunca fez parte, mas Buñuel tinha por ele uma grande veneração, até o fim da vida.

Católico tornado ateu, considerado por muitos um iconoclasta, Buñuel era, ao mesmo tempo, realista, surrealista, marxista, anarquista, místico, anticlerical, sádico, moralista... Um emaranhado de paradoxos e contradições que regiam a mente de um homem inconformado com a decadência e a hipocrisia da sociedade. Educado sob a rigidez do catolicismo, cresceu desafiando tabus, pecados e desejos lascivos, questionando milagres e dogmas, reconhecendo suas primeiras obsessões, por armas ou sexuais. Muitas delas ampliadas na tela, captadas por Carrière e transformadas em literatura confessional de primeira.

– Ele tinha uma personalidade complexa e contraditória. E é por isso que foi Buñuel. Ateu numa atmosfera católica. Surrealista, mas sem nenhum gosto pela violência. Teoricamente anarquista, mas vivendo como um modesto burguês.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Oscar 2010: a fantasia de 'Avatar' contra a crueza de 'Guerra ao terror'

Realizada terça-feira, em Los Angeles, a cerimônia de apresentação dos indicados à 82ª edição do Oscar catapulta desde já uma rede internacional de apostas e pitacos de cinéfilos espalhados pelo globo. No fim das contas, porém, não foram tantas as surpresas. A tão esperada disputa entre o cineasta James Cameron (Avatar) e sua ex-mulher Kathryn Bigelow (Guerra ao terror) se confirmou como a grande batalha da noite de entrega das estatuetas, em 7 de março.

A festa do Oscar deste ano, que será conduzida por Steve Martin e Alec Baldwin, conta com um único diferencial. Pela primeira vez em 66 anos, 10 filmes disputarão o principal prêmio, o de Melhor Filme, votado por cerca de 5,8 mil membros da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood. O número maior de indicados pretende ampliar a gama de concorrentes, com blockbusters populares disputando ao lado de longas independentes, mas elogiados pela crítica.

É exatamente o panorama que põe em lados opostos Avatar e Guerra ao terror – o primeiro, uma ficção científica milionária; e o segundo, uma produção realista de baixo orçamento. Os dois longas lideram a corrida pelo maior número de estatuetas. O épico 3D criado de Cameron concorre em nove categorias, assim como o filme de feições independentes de Bigelow. Entre os concorrentes a Melhor Filme se destacam Bastardos inglórios, de Quentin Tarantino, que disputa em oito categorias; Amor sem escalas, dirigido por Jason Reitman e protagonizado por George Clooney, que recebeu seis indicações; e Preciosa e Up – Altas aventuras, ambos também com seis indicações.

Maior bilheteria da história do cinema mundial, com arrecadação de US$ 2 bilhões, Cameron entra em campo sabendo que não poderá superar os louros colhidos por Titanic (1997) – indicado em 14 categorias e contemplado com 11 estatuetas. Lançado em DVD no Brasil, o filme de Bigelow ganha as salas brasileiras a partir desta sexta-feira. A reviravolta se dá por conta dos 23 prêmios que o longa acumula desde sua passagem pelo Festival de Veneza, em 2008. No último domingo, a produção, realizada com U$ 11 milhões, ganhou o prêmio de melhor filme da Liga dos Produtores da América, o que pode ser um bom prenúncio para o Oscar. Nos últimos 20 anos, em 13 ocasiões o filme escolhido pela associação venceu também o Oscar. Descrito por Bigelow como “um filminho de guerra difícil, rodado no verão do Oriente Médio”, Guerra ao terror fez da diretora a primeira mulher a receber o prêmio do Directors Guild of America (DGA), o que aumenta as suas chances de ser a primeira representante feminina a levar um Oscar na categoria mais disputada. Ela é a quarta mulher a ser indicada a Melhor Direção. Antes dela, Sofia Coppola, por Encontros e desencontros (2003); Jane Campion, por O piano (1993); e Lina Wertmuller, por Pascoalino Sete belezas (1976) foram indicadas, mas não ganharam.

Diretor de Preciosa, Lee Daniels tornou-se o segundo cineasta negro a ser indicado. Estrelada por Daniel Day-Lewis, a superprodução Nine ficou de fora da competição principal, assim como o novo longa de Clint Eastwood, Invictus. No ano passado, o diretor também assistiu ao descarte de Gran Torino na corrida principal. Eastwood contenta-se com as indicações de Morgan Freeman (Melhor Ator) e Matt Damon (Ator Coadjuvante). Freeman, que interpreta o ex-presidente Nelson Mandela, tenta repetir o feito de cinco anos atrás, quando abocanhou, como ator coadjuvante, o Oscar por Menina de ouro. Agora ele concorre com Colin Firth, George Clooney, Jeremy Renner e Jeff Bridges, que, em sua quarta indicação, é apontado como um dos favoritos depois de ganhar o Globo de Ouro por seu personagem em Crazy heart. Na categoria Melhor Atriz, Sandra Bullock recebe sua primeira indicação ao Oscar, por Um sonho possível, e concorre com veteranas como Meryl Streep, por Julie & Julia (a 15ª indicação da atriz). Já entre as coadjuvantes, a inclusão de Maggie Gyllenhaal, por Crazy heart, e a ausência de Julianne Moore, por A single man, foram as surpresas. Sem representantes brasileiros, o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro será decidido entre Ajami (Israel), Os segredos dos seus olhos (Argentina), La teta assustada (Peru), Un prophete (França) e A fita branca (Alemanha), o grande favorito da noite.


Façam suas apostas:

Melhor filme:

"Avatar"
"Um sonho possível"
"Distrito 9"
"Educação"
"Guerra ao terror"
"Bastardos inglórios"
"Preciosa"
"Um homem sério"
"Up – Altas aventuras"
"Amor sem escalas"

Melhor direção:


James Cameron, “Avatar"
Kathryn Bigelow, “Guerra ao terror”
Quentin Tarantino, “Bastardos inglórios”
Lee Daniels, “Preciosa”
Jason Reitman, “Amor sem escalas”

Melhor ator:


Jeff Bridges, “Coração louco”
George Clooney, “Amor sem escalas”
Colin Firth, “A single man”
Morgan Freeman, “Invictus”
Jeremy Renner, “Guerra ao terror”

Melhor ator coadjuvante:


Matt Damon, “Invictus”
Woody Harrelson, “The messenger”
Christopher Plummer, “The last station”
Stanley Tucci, “Um olhar do paraíso”
Christoph Waltz, “Bastardos inglórios”

Melhor atriz:


Sandra Bullock, "Um sonho possível"
Helen Mirren, “The last station”
Carey Mulligan, “Educação”
Gabourey Sidibe, “Preciosa”
Meryl Streep, “Julie & Julia"

Melhor atriz coadjuvante:


Penélope Cruz, “Nine”
Vera Farmiga, “Amor sem escalas”
Maggie Gyllenhaal, “Coração louco”
Anna Kendrick, “Amor sem escalas”
Mo’Nique, “Preciosa”

Melhor animação:


“Coraline”
“O fantástico Sr. Raposo”
“A princesa e o sapo”
“O segredo de Kells”
“Up – Altas aventuras”

Melhor filme estrangeiro:


“Ajami”
“El secreto de sus ojos”
“The milk of sorrow”
“Un prophète”
“A fita branca”

Melhor documentário:


“Burma VJ”
“The cove”
“Food, Inc.”
“The most dangerous man in America: Daniel Ellsberg and the Pentagon papers”
“Which way home”

Melhor trilha sonora:


“Avatar”
“O fantástico Sr. Raposo”
“Guerra ao terror”
“Sherlock Holmes”
“Up – Altas aventuras”

Melhor canção:


“Almost there”, “A princesa e o sapo”
“Down in New Orleans”, “A princesa e o sapo”
“Loin de Paname”, “Paris 36”
“Take it all”, “Nine”
“The weary kind”, “Crazy heart”

Melhor roteiro original:


“Guerra ao terror”
“Bastardos inglórios”
“The messenger”
“Um homem sério”
“Up – Altas aventuras”

Melhor roteiro adaptado:


“Distrito 9”
“Educação”
“In the loop”
“Preciosa”
“Amor sem escalas”

Melhor curta-metragem:


“The door”
“Instead of Abracadabra”
“Kavi”
“Miracle fish”
“The new tenants”


terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Raul Seixas: metamorfoses de um maluco no auge

No fim dos anos 60 ele já dava o que falar à frente de Raulzito e Os Panteras – combo que acompanhava os maiores nomes da Jovem Guarda. E foi a convite de um deles, Jerry Adriani, que o baiano de Salvador descarregava, de vez, sua energia mutante e abusada no Rio de Janeiro. Por aqui, enquanto atuava como compositor, produtor e até empresário, assinava contratos, carimbava seu nome em fichas técnicas e divulgava as canções que o levaram a preencher seus dois primeiros lançamentos, Raulzito e Os Panteras (1968) e Sociedade da Grã-Ordem Kavernista apresenta sessão das 10 (1971). Fracassos de público e crítica, ambos serviram de combustível para a explosiva alquimia que viria a seguir. Em 1973, Seixas iniciava sua fase áurea sob a chancela de uma nova gravadora, a Philips. Entre 1973 e 1977, pôs na rua seis antológicos álbuns. Fundamentais na linha evolutiva do rock brasileiro, no que tange à mistura de gêneros e ao lirismo ferino, debochado e inteligente da parceria com Paulo Coelho, estas pérolas agora são reunidas no Box Raul Seixas, 10.000 anos à frente.

Esganiçando a voz em Good rockin'tonight (Roy Brown), numa gravação caseira feita aos 9 anos, Seixas prepara e introduz o ouvinte ao caldeirão de loucura e metamorfoses sonoras que conduzem Krig-há, bandolo! (1973). No primeiro álbum desta série, o cantor enfileira uma série de clássicos do seu repertório. Desde o rock-macumba Mosca na sopa, passando pelos coros à Beatles de Metamorfose ambulante, às bem-humoradas Al Capone e Ouro de tolo, Seixas sacode o comodismo de uma época que mergulhava na inércia, no vazio e no baixo astral da ressaca pós-tropicalista.

Conciso e certeiro, Krig-há, bandolo! é um mapa da multifacetada personalidade artística que guia todas as suas produções seguintes. Entre o brega e o requinte, entre guitarras elétricas e percussões regionais, acena com os ingredientes e a receita pronta que seria saboreada em Gita (1974). O trabalho seguinte consolida a parceira com Paulo Coelho. Enquanto no disco anterior, Seixas assina sozinho a maior parte dos hits, neste segundo, as icônicas Gita e Sociedade alternativa levam os traços da dupla. Contagiados pela ideia de uma sociedade baseada nos preceitos do bruxo inglês Aleister Crowley e sob a luminosa inspiração do livro Bhagavad-Gita, Seixas e Coelho colhem os louros e os dissabores de um trabalho provocativo e de grande sucesso comercial. A ousadia dos compositores não passou batida pela população e, muito menos, pelos militares, é claro. Exilados em Nova York, retornam ao Brasil pouco tempo depois – e ainda mais viscerais. A combustão mística e poética estofada por um existencialismo mambembe serve como escopo para Novo Aeon (1975) – mais um manifesto a favor das liberdades individuais. Ainda em pleno regime militar, não sossega ou cessa de destilar o oposto do que disse antes. Enquanto nutrem a épica balada Tente outra vez com os versos “Tenha fé em Deus, tenha fé na vida”, aceleram na satânica Rock do diabo, com “O diabo é o pai do rock / Enquanto Freud explica / O diabo dá os toques”.

Assim como os álbuns anteriores, a reedição de Há 10 mil anos atrás conta, após a faixa-título, com outro clássico, Maluco beleza, pinçado de O dia em que a Terra parou – editado pela Warner e fora da coletânea.

A caixa traz ainda Raul rock Seixas (1977) e 30 anos de Rock (1985), ambos repletos de covers para clássicos do rock internacional, de Chuck Berry a Little Richards, e nacional, como Roberto e Erasmo Carlos. Vinte e um anos após a sua morte, o lançamento é um acerto de contas com as múltiplas influências de um ícone atravessado, desde a infância, pela irreverência de Elvis Presley e a potência de Luiz Gonzaga.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Após 'Lula, o filho do Brasil', novos projetos abordam presidentes

Desde 1915, quando D.W. Griffith assinou O nascimento de uma nação, até 2011, quando Steven Spielberg leva às telas Lincoln – ambos tangenciam a figura de Abraham Lincoln (1809-1865) – uma infinidade de séries de TV, telefilmes, cinebiografias, longas de ficção (científica, dramas e ação) e até comédias elege como personagem central de suas tramas o chefe maior do estado americano. A enciclopédia virtual dos cinéfilos, o Internet Movie Database (IMDb) assegura – mais de 650 produções audiovisuais americanas renderam-se ao poder da Casa Branca. No Brasil, o cenário é o oposto. Em vias de mudança, o cinema político ainda encontra dificuldades. E com parcas produções, ainda se arrasta nas truncadas engrenagens de seu carro-chefe, Lula, o filho do Brasil, que completa um mês de circuito segunda-feira.

Exibido em mais de 350 salas espalhadas pelo país, até a última semana o longa de Fábio Barreto contabilizou 767 mil espectadores, com renda acumulada de R$ 6,5 milhões. Maior sucesso da bilheteria da chamada retomada, Se eu fosse você 2 atraiu 560 mil espectadores na semana de abertura, enquanto o longa de Barreto sobre a trajetória do atual presidente acumulou pouco mais de 100 mil espectadores – menos até que um de seus inspiradores, 2 filhos de Francisco (2005), com 266 mil espectadores na primeira semana.

Com tais rendimentos confrontados à média arrecadada por outras produções nacionais, não se pode dizer que os números sinalizem um fracasso. Porém, projetado e embalado como um blockbuster, a decepção não deixa de ser evidente. Antes de chegar às telas, o produtor Luiz Carlos Barreto projetava público de 5 milhões de espectadores para o longa.

Mesmo com as incertezas do mercado cinematográfico – e as dúvidas sobre a aceitação do público em relação ao tema – o “gênero” tenta decolar e já enquadra para os próximos meses produções envolvendo nomes como Getúlio Vargas, Jânio Quadros, Tancredo Neves, Fernando Collor e Fernado Henrique Cardoso. Autor de novelas, o roteirista Lauro César Muniz é o piloto de um dos mais ambiciosos projetos envolvendo cinema e política. De suas mãos nasce, até 2011, um longa dedicado a Getúlio Vargas. Como mote, cerca-se das três semanas que antecedem o suicídio que mitificou a figura do presidente a partir do fatídico 24 de agosto de 1954. Muniz acaba de entregar ao produtor Daniel Filho um primeiro tratamento para Dr. Getúlio (título provisório).

– Ficamos muito afastados do tema por causa da ditadura. Existia um grupo de cineastas, assim como outros artistas, impossibilitados de tocar no assunto. Foram quase 30 anos de silêncio. Agora ocorre uma euforia em torno do filme do Lula, um personagem super popular. E isso estimula os produtores a pensar em filmes do gênero – acredita Muniz. – Acho que os sete anos de governo Lula geraram um interessa cada vez maior da população sobre política. Ele foi sabiamente blindado de todos os escândalos envolvendo a corrupção.

O projeto do teledramaturgo parte do atentado ocorrido na Rua Tonelero (no qual morreu o major Rubem Vaz; o crime desencadeou os eventos que levariam ao suicídio de Vargas) e enfatiza as reações dos empregados do palácio do Catete e da população nos arredores do bairro.

“Suicídio foi um ato político”

– Não ficaremos presos à história real. Terá ficção. Getúlio foi um ditador, mas era uma personalidade fabulosa e sua história é uma tragédia nacional fantástica. Tudo o que acontece a partir do atentado até a sua morte é muito forte. Ele tornou-se um mártir. Seu suicídio foi um ato político.

Premiado pelos longas Jango (1984) e Os anos JK - Uma trajetória política (1980), o cineasta Silvio Tendler investe seus esforços em mais uma produção política, mas sob a embalagem do gênero documental. Há mais de 20 anos, ele acumula um arsenal de fitas de áudio e vídeos do ex-presidente Tancredo Neves. Tancredo, a travessia tem previsão de lançamento para abril de 2010 – mês que marca os 25 da morte da sua morte, em 1985. No registro, Tendler destrincha os bastidores da transição de poder e mostra que, de lá para cá, pouca coisa mudou.

– A política é um filão de cinema, e sempre esteve de braços cruzados com ele. Um dos maiores clássicos do cinema mundial é sobre um jornalista que se candidata à presidência, Cidadão Kane. No Brasil, o documentário que sempre namorou a política, enquanto a ficção tem problemas mais complexos com direito de imagens e pressão dos familiares – observa Tendler.

O documentarista acredita que houve um erro de avaliação no lançamento de Lula, o filho do Brasil.

– Acharam que cinema se induz à base de mídia, mas não é bem assim. Não adianta comprar com 2 filhos de Francisco, que é musical. Ainda assim, um público de 800 mil é muita gente, quase um milhão. Para o momento do cinema político brasileiro, é um bom resultado.

Se bem-sucedidas minisséries de TV, como JK (2006) e Agosto (1993) , despertaram a atenção de milhões de espectadores, o aparato cinematográfico apenas começa a erguer a grua sobre o filão. Exemplo recente, o diretor Zelito Viana não obteve êxito ao transportar para o cinema 24 horas de um dia de Juscelino Kubitschek. Bela noite para voar (2009) acumulou parcos 30 mil espectadores. Diretor do longa, Zelito Viana diz que a lacuna de filmes políticos se estende a outras searas, mas por um motivo comum:

– Falta dinheiro para fazer um filme sobre futebol e sobre personagens da cultura, como Carlos Gomes, por exemplo – compara Viana. – No campo político, não temos filmes sobre Getúlio e até Dom Pedro II, que é uma figura importantísima para o Brasil.

Irmão de Fábio Barreto, Bruno Barreto mira sua câmera na direção do ex-presidente Fernando Collor, num longa baseado no livro Notícias do Planalto (1999), do jornalista Mário Sérgio Conti. Oponente de Lula durante as eleições de 1989, Collor terá sua trajetória vasculhada, desde as ligações de seu avô Lindolfo Collor com Vargas até o impeachment que o tirou do poder, em 1992. Mais adiante, o diretor Paulo Filho busca viabilizar um longa sobre Jânio Quadros, enquanto que, para 2011, o documentário Rompendo o silêncio segue os passos de FHC.