Após assisitr à sessão das 15h50 para "Os desafinados", no último domingo, saí do Unibanco Arteplex, em Botafogo, com um único pensamento afixado na consciência: a mais nova incursão de Walter Lima Jr. no universo dos longas-metragens é, no mínimo, entediante. E as cenas finais... das mais piegas e constrangedoras já vistas.
Planejado para estrear no primeiro semestre de 2006, "Os desafinados" não emperrou à toa. E se a desculpa divulgada à época era a falta de verbas para a finalização da fita, cerca de R$ 7,5 milhões, após o lançamento, a impressão é que "a esfarrapada" oferecida não estava de acordo com o que o filme mais carece: revisão e mudanças drásticas no roteiro, na montagem, nos diálogos, eliminação de planos-clichês e, o principal, reavaliação do conjunto da obra a ser apresentada como um musical.
Impressiona como uma história, mais do que contada, dissecada e recriada milhares de vezes pelo inconsciente coletivo pôde ser encenada em tão baixo nível de sensibilidade. Qualquer brasileiro antenado ao mínimo na história da bossa nova, e sua chegada aos Estados Unidos via João Gilberto e companhia, observa (incrédulo) e questiona-se (inconformado) como tal desenho pôde ser completamente descolorido, desconstruído, destituído de significados e, o pior, desromantizado por um diretor que optou pelo tema justamente pela sua empatia e afetividade em relação ao objeto a ser filmado.
A artificialidade, no entanto, não é concluída apenas ao final da cascata de créditos. Emana desde os primeiros planos e segundos a sensação que algo de muito superficial e nada cativante está para vir. Ao final, o resultado ao qual o espectador assiste é um arremedo desconcertado de uma novela, desejosa de novas possibilidades e pontos de vista, se encerrar no vazio, sem emoção alguma a ser transmitida pelas longas duas horas de duração. E olha que estamos falando daqueles que seriam dois dos mais marcantes acontecimentos sociais e culturais do país: a implantação da ditadura militar e o nascimento da bossa nova no Brasil e no mundo.
Mas Walter Lima Jr. parece esquecer, ou prefere não privilegiar, o valor do contexto e das oportunidades dramáticas que tem em mãos. A partir de suas reminiscências, ele aponta sua câmera em uma busca incessante mas malograda de capturar a construção de afetos e sensibilidades entre um grupo de jovens amigos, apaixonados pela arte e pela vida. O problema da perspectiva escolhida para "Os desafinados", no entanto, é que tudo o que o diretor apresenta como intenção nos remete, imediatamente, ao título da obra. Seja a relação dos tais músicos com a arte que supostamente planejam dedicar à vida – exposta sem qualquer intensidade –, a performance de cada um para com seu instrumento – dubladas de forma grotesca, com exceção do músico Jair de Oliveira –, as questões existenciais e as escolhas que por ventura pudessem confundir e gerar conflitos entre os jovens. Essas, apenas algumas das passagens em que o desafino entre intenção do diretor e resultado emotivo a ser captado berra, grita e se descabela na sala escura.
O desatino de Walter consegue ainda o improvável. É quando ele decide ignorar as melhores possibilidades de conflito que a história naturalmente engendra e empurra para dentro da câmera. Ao invés de engolir e digerir momentos explicitamente propensos à tensão, ele se mantém cristalizado desviando-se das mais claras situações-crise, como a que Davi (Ângelo Paes Leme) deixa de encurralar Joaquim (Rodrigo Santoro), quando este último, em um surto de responsabilidade familiar, decide voltar para casa. Como se os meses de penúria e amargor do grupo, que recebia naquele momento, pela primeira vez, uma proposta de trabalho, não fossem dignos de sofrimento e revolta dos seus parceiros.
Walter também passa – com um beijo na boca – a borracha na decepção de Glória (Cláudia Abreu) quando esta descobre que o seu novo amante, Joaquim, a quem abrigou junto a todos os amigos em casa, tem mulher, Luiza (Alessandra Negrini), e espera filhos no Brasil. O diretor faz vista grossa, ainda, para a possibilidade pungente de ciúmes e disputas femininas entre as duas, Quando, já no Brasil, a intérprete do grupo, Glória, grava em estúdio a canção "Mente" em um tête-à-tête desafiador para esposa traída – sem que a última esboçasse qualquer encrespar de pêlos ou choque de nervos.
O ápice do medo de confrontos assinado por Walter fica evidente quando ele censura o início da desilusão do cineasta Dico (Selton Mello). Único personagem realmente comprometido com alguma forma de arte, a dor do cineasta por ter seu filme totalmente tesourado pelos agentes do Dops é também posta em xeque pelo diretor, que não se faz de rogado em anestesiar o inquieto personagem com um prêmio ganho em Moscou. Enquanto, no Brasil, Dico continua sem dinheiro, aprisionado artisticamente, com a mãe à beira da morte e, além de tudo, sendo caçado pelo regime.
De refugo em refugo, Walter opta por um filmar paranóide em que põe panos quentes assim que faíscas vislumbram tornar-se chama – o que não traz vida e emoção sentida às cenas. O resultado desta sucessão de escolhas desajustadas é uma esquizocinematografia, em que o diretor, por medo da previsibilidade do tema, tenta escapar, aos trancos e barrancos por uma trama rasa e banal, daquilo que o filme, por essência, é ou sugere: o desvelar romântico-poético dos primeiros passos da bossa nova. A bossa, "essa coisinha de inho, barquinho, jeitinho" como escracha Selton Mello, fica realmente diminuída e perdida em meio ao emaranhado de micro-acontecimentos (fugazes) que nunca se completam ou são finalizados coerentemente por Walter.
O filme, porém, tem seus bons momentos. Salvam-se as viscerais intervenções de Selton Mello, que com seu carisma, gestual e tiradas bem-humoradas rouba cenas a cada aparição. Além, é claro, das cenas dramáticas encenadas por Santoro, assim como o clima de excitação dos jovens músicos antes e durante a estadia nos Estados Unidos. O músico Jair de Oliveira, como Gera, também não faz feio. E Cláudia Abreu, enigmática e sedutora, faz das cenas de amor com Santoro, de seu banho de banheira no meio da sala e de seu desespero com a repressão do regime cenas que saltam aos olhos. Enquanto que Ângelo Paes Leme, ganhador do prêmio de ator coadjuvante em Paulínea, e Alessandra Negrini não surpreendem.
No fim das contas, porém, elogiar um filme como "Os desafinados" é talvez impensável não só para os amantes da bossa nova, mas também para qualquer ser humano que dá valor à sutileza, coesão de argumentos e comprometimento artístico. Em recente entrevista ao JB Online, Walter Lima afirmou que a obra é ponto culminante da sua maturidade como homem de cinema. Se a declaração não passa de atitude egóica e defensiva ante o descarrego da crítica para com sua obra, é de se lamentar que o cineasta tencione a acreditar que “Os desafinados” é de algum modo marcante para sua carreira de premiado cineasta, ou superior a outras mais inspiradas contribuições cinematográficas.
Por fim, todas as elucubrações até aqui descritas imbricam em uma única afirmativa: “Os desafinados” é uma obra “musical” das mais burocráticas e anti-emotivas. O paradoxo – um filme seco e retalhado que se propõe a tratar de música e amizade – gera, ao menos, uma fina e cruel ironia. É quando lembramos que a oportuna tirada de Selton Mello: "É na merda que a gente cresce!" – quando os músicos do quarteto lamentam não terem sido escolhidos para a apresentação no Carnegie Hall, em Nova York – pode servir como alento ao diretor. Como diz o pessoal de teatro: "Merda, Walter!"
* Ainda esta semana:
O maravilhoso documentário "O mistério do samba", dirigido por Carol Jabor e Lula Buarque de Holanda.
E mais:
O primeiro vôo solo de Marcelo Camelo (Los Hermanos), "Sou".
O primeiro vôo solo de Marcelo Camelo (Los Hermanos), "Sou".
3 comentários:
Críticas fortes. Verei o filme no fim de semana e vamos abrir um debate "interblogal".
abraço,
marcelo
Bom texto. Se continuar assim, vai ser canonizado. Está na hora de assumir uma cadeira nas mesas de debate daqueles canais abaixo do 19. Médio abraço.
Ansiosa super pra ver a película!
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