NOTAS SOLTAS E RUÍDOS ESCRITOS

domingo, 25 de maio de 2008

TOC - Vitor Araujo


Se Mallu Magalhães, aos 15 anos, se apóia em poucos acordes para tocar timidamente seu violãozinho tosco (como diz MM), o recifense Vitor Araújo, aos 18, faz o inverso, e aterrissa freneticamente seus dedos nas teclas de um piano meia-cauda. Apesar das diferenças estilísticas, estéticas e, por que não, de talento, ambos são responsáveis pela corrida mais instigante da música pop dos últimos segundos. Sim, vivemos uma época em que a disputa entre os dois prodígios alimenta as esperanças de um mercado fonográfico acossado.

No último domingo, a menina paulistana de voz doce, óculos de aro grosso e sem lentes, atraiu presidentes e diretores artísticos da Universal, EMI, Warner e DeckDisc para sua performance na pequena, mas charmosa, Cinemathèque Jam Club, em Botafogo. Ontem à noite, foi a vez do Allegro Bistrô da loja Modern Sound, em Copacabana, se tornar o palco perfeito para João Augusto, presidente da DeckDisc, pavonear-se à frente das 150 atentas pessoas que foram ao local conferir o lançamento de sua mais nova aposta, o pianista mezzo-auto-ditada, Vitor Araújo – apresentado pelo B em setembro de 2007.

– Apesar da situação crítica e de todas as especulações que circundam o mercado de discos do Brasil, estamos aqui hoje para mostrar que esta plataforma e este formato de apresentar música ainda não se esgotou. Aliás, se tudo estivesse acabado nem estaríamos aqui comemorando, em pleno Dia da Mentira, 10 anos de Deckdisc. Foi exatamente em um primeiro de abril que iniciamos nosso trabalho e continuamos até hoje mentindo por aí – brinca João, talvez sem notar o quanto sua própria piada o fulminava de verdades.

Sem dar bola para o mercado, Mallu e seu empresário parecem nada preocupados com o assédio desorientado das outrora grandes corporações de música e cogitam seguir na independência. Vitor segue o caminho contrário. Com papel assinado, lança pelas mãos de João Augusto o seu primeiro dualdisc – CD e DVD estampados em ambos os lados do disquinho metálico – ou como prefere João: “uma plataforma que o mercado ainda vai perceber o valor.” No entanto, pouco preocupado se CDs, DVDs e dualdiscs ainda preenchem o bolso do patrão e nem aí para as respostas que o mercado procura, Vitor aguardava, entediado, na escada da loja de discos o fim do discurso de João Augusto – que anunciava o seu mini festival de música, a ser realizado ao longo do mês de abril – para iniciar sua apresentação.

Finalmente chamado ao palco, após mais de meia-hora de atraso, o menino fez questão de mostrar sua satisfação em tocar pela primeira vez na cidade. Acanhado, mas sem embaraço, o rapaz expressava seu estranhamento em apresentar-se para uma platéia composta por pessoas de meia-idade que, sentadas, bebericavam e comiam antepastos diversos.

– É esquisito isso aqui, mas minha música é repleta de silêncios e os ruídos de vocês ajudam a compor. Afinal, tudo é música – opina.

Apesar de cansado, pelas inúmeras viagens, shows e entrevistas promocionais para a divulgação de seu “Toc – Ao vivo no Teatro Santa Isabel”, Vitor não perdeu o bom-humor e atacou o piano em uma performance carregada de energia adolescente, para as canções “Toc” e “Comptine d’un Autre Été” – composta por Yan Tiersen para a trilha sonora do premiado filme francês “O fabuloso destino de Amélie Poulain”.

– Olha, ainda estou meio atordoado com esta batida violenta. Acabei de chegar de São Paulo e não pude descansar. Fiz entrevista para caralho e comecei a ficar confuso. O pessoal me perguntava com quantos anos havia começado a tocar e eu respondia que desde os dez anos, depois falava que a partir dos 18. Citavam Radiohead como minha maior influência, ao invés disso dizia que eram os Beatles. Enfim, estou atordoado, mas o que sempre espero é poder entreter e prender a atenção do público. Gosto de passar leveza ao coração das pessoas. Afinal música também é amparo e a arte serve para isso – disse o músico, antes de iniciar sua interpretação para “Samba e amor”, tema de Chico Buarque, que assim como o Radiohead, é apontado como uma de suas maiores influências.

Aliás, um dos pontos altos de sua performance está na releitura de “Paranoid Android”, do Radiohead. Mesclando a essência melancólica do quinteto inglês e a estética erudita, o músico divide o arranjo da peça em quatro partes. Inicia com Beethoven, passa por invencionices próprias, valsas de Chopin até chegar aos prelúdios de Bach.

Apesar de seu trabalho ser calcado na música erudita, Vitor passeia musicalmente pelo jazz e pela música popular brasileira executando simbólica ou literalmente diversos e distintos temas. Polêmico, o moleque não se esconde atrás de sua música. Ao longo da apresentação, cada nota é previamente denunciada por uma série de espasmos, contrações musculares, trejeitos e maneirismos faciais acrobáticos que acompanham, na mesma sintonia, alguns de seus exageros interpretativos. A intensidade, o descanso e o respiro são registrados em seu corpo, basicamente coreografado por dedos e teclas hipnóticas e precisas. Seja flutuando em notas espaçadas, ou em momentos de maior agressividade, quando se debruça ao piano, suas mãos, apesar de ágeis, soam um tanto quanto pesadas e fazem de tudo para evidenciar emoção e dor.

– É legal perceber como os sentimentos perduram por séculos. Você pode sentir hoje a angústia que Villa-Lobos experimentava ao compor suas obras. O sentimento fica imortalizado, no ar o tempo que for necessário. Quando toco suas peças, interpreto o momento da angústia que Villa-Lobos sentia. Em uma época em que a racionalidade é evidente e somos racionalistas demais, prefiro agir duas vezes antes de pensar – disparou o menino antes de apresentar sua versão para a “Valsa da Dor”. – Para mim, a música é uma junção de sentimentos e sensações. Elas têm cores, cheiros, tatos, são lisas, ásperas, enfim, posso dizer que a “Valsa da dor” é bem nublada. Gosto de captar a sinestesia de Villa-Lobos.

Vitor utiliza muito bem o silêncio. Gera expectativa e apreensão em boa medida. Aliás, uma das coisas que mais o incomodam é a distância que os palcos impõem entre o artista e seu público.

– Gosto desta energia metafísica, como se todo mundo estivesse fazendo amor, mas não como uma orgia. Minha mãe se perguntava a quem eu teria puxado, pois não há nenhum artista na família. Disse-lhe que eu apenas faço música e ela cria dois filhos, uma arte muito mais complexa. Afinal, arte é aquilo que a gente faz com amor. Como dar um beijo na testa da namorada. Isso também é arte – afirma.

Tão bom quanto ao piano, com o microfone em mãos, Vitor arrancou boa resposta da platéia. Só faltam ao nosso Jamie Cullum curumim os dotes vocais que sua versão inglesa apresenta.

Nenhum comentário: