NOTAS SOLTAS E RUÍDOS ESCRITOS

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

O despertar da primavera: Tesão à flor da pele

Hormônios à flor da pele. Excitação expulsa nos poros. Aos ares, gritos, urros, sorrisos nervosos – falatório geral. Jovens de 15 a 25 anos com cabeça à mil em sentimentos, questionamentos, expectativas... E tesão. O palco vibra. E é como se fosse reflexo físico da ebulição que corre no interior de cada um dos 19 atores-cantores do elenco. Tanto frenesi não se explica apenas pelo tic-tac impiedoso que suga os últimos minutos ante à estreia. Sob o invólucro de temas picantes e polêmicos que tangem incesto, suicídio, violência doméstica, homossexualidade, gravidez na adolescência e masturbação, a releitura de Charles Möeller e Cláudio Botelho para o musical O despertar da primavera (que ocupa o Teatro Villa-Lobos a partir desta sexta) é um arsenal estimulante de referências adolescentes incendiada por uma sonoridade rock‘n’roll.

– No fundo acreditamos que um cara jovem pode sair de casa e, em vez de ir só para as suas baladas e raves, se interesse em assistir um Wedekind cantado. Isso é fundamental para o nosso futuro – afirma o diretor Charles Möeller. – Como artistas, chegamos a um ponto da nossa carreira em que temos o dever de formar novas e melhores plateias. Quando você está ligado à arte, com num musical, a experiência sensorial é tão impactante, a música, o cenário, o figurino e a poesia têm um poder tão forte que eu duvido que alguém possa pensar em assaltar e afundar sua vida.

O despertar já nasceu polêmica. A peça original se passa na Alemanha do fim do século 19, narrando o romance entre Melchior (vivido agora por Pierre Baitelli) e Wendla (Malu Rodrigues). A tradicional família dela não aprova o rapaz, um rebelde por natureza. Em torno dos amantes que descobrem o amor e a barra pesada de confrontar os mais velhos, outros jovens se juntam em um painel de personagens que questionam dogmas religiosos e comportamentais e o conservadorismo da sociedade. Proibido de ser encenado na íntegra por mais de 80 anos (foi acusado de incitar os jovens ao suicídio e à prostituição), o texto do dramaturgo alemão Frank Wedekind, de 1891, só seria montado sem adulterações em 1974, na Inglaterra. Até aí, a peça – considerada precursora do expressionismo alemão – já havia virado objeto de culto através de encenações amadoras e debates apaixonados em universidades. Em 1979, chegou a ser montada no Rio.

A recriação de Botelho & Möeller – a dupla detalhista e apurada que institucionalizou o formato musical como entretenimento de alto nível – conseguiu autorização dos criadores do musical para, mantendo o texto e as canções de Sheik & Sater, mudar totalmente a encenação e os cenários. Desde que explodiu, em 2006, na Broadway, e rodou o mundo, esta é a primeira versão autoral para o musical. Após curta e acachapante temporada no circuito off-Broadway, em 2006, o espetáculo dirigido por Duncan Sheik e Steven Sater foi consagrado e arrebatou oito prêmios Tony, incluindo Melhor Musical, Texto, Letra e Música. Agora, sob a direção detalhista e apurada da dupla que institucionalizou o formato musical como entretenimento de alto nível, a tríade de opressão familiar, educacional e eclesiástica é mandada às favas num sonoro “Vai se foder!”:

– Seja em Hanover ou no Rio, o estado, a igreja, a escola e a família mudaram bastante. A modernização e evolução tecnológica tornaram a informação muito mais acessível e veloz, mas a ignorância, a hipocrisia politicamente correta, a compreensão sobre temas que regem o universo interno jovem permanece extremamente arcaica. Andamos muito, apenas artifical e superficialmente. Mas olhar para dentro continua sendo um processo complicado. Já poderíamos ter saído dessa há tempos. Por isso fico tocado em poder dizer aos pais: “Não trate o seu filho como um ignorante!” justamente porque o resultado disso é um adulto ignorante e violento.

Botelho traça um paralelo com outro musical de sonoridade rock para ilustrar seu impacto e empenho em comprar os direitos para a adaptação, Rent. Baseado na ópera La bohéme, de Puccini, e assinado por Jonathan Larson, Rent acompanha a trajetória de jovens artistas do Lower east side nova-iorquino para tocar em temas como a Aids. Após encerrar, em 2008, uma temporada de 12 anos, é considerado o principal responsável por renovar e atrair um público jovem à Broadway.

– Rent é rock, ousado, mas atira para todos os lados e cai nos padrões. Fiquei impressionado com O despertar... porque é algo vigoroso e diferente do que estamos acostumados a assistir, principalmente na Broadway. É uma proposta iconoclasta. Existe nudez, cenas de sexo em que os atores realmente se tocam. Fugimos do padrão em que a canção avança a história. As canções ilustram e extravasam o inconsciente dos personagens. A música entra em cena justo quando há uma explosão de sentimento e revolta. Não é algo objetivo, são letras subjetivas e não foi brincadeira adaptá-las. Algumas metáforas não funcionavam. Busquei o auxílio de outras. Mas trabalhamos com muita liberdade. Afinal, somos diretores e não montadores. Fizemos a nossa história.
Tijolos e paredes reforçam a ideia da castração dos jovens protagonistas; todos os momentos de liberdade ocorrem na floresta cenográfica planejada por Rogério Falcão. Já os figurinos de Marcelo Pies apostam em transparências... isso quando não são dispensados totalmente. Entre outras mudanças, a substituição de microfones de mão, o uso de plataformas de aço, em vez de um espetáculo em forma de arena, figurinos conectados à época em que o texto foi escrito, além de uma significativa repaginação no conceito e no fluxo das intervenções musicais. Charles conta que parada cada canção, o musical americano ganhava contornos de um show de rock:
– As músicas prescindiam de pausas. Cada cantor tirava um microfone do bolso e começava um show. Eles fazem mais alusão ao indie, o visual é mais moderno, a luz expressionista. Tivemos o cuidado de integrar iluminação e música. Mas adoramos o trabalho dos dois, que levaram oito anos para escrever o musical. 100 anos depois eles tiveram a grande sacada de perceber que os questionamentos, tabus e inseguranças são os mesmos. Wedekind escreveu um texto para chacoalhar o espectador. E é incrível notar que ele nunca foi tão lido e cultuado como agora. O expressionismo alemão ganhou uma sobrevida gigantesca por causa dos musicais. Há muito pouco questionamento. As pessoas parecem anestesiadas num momento em que meninas ainda casam virgens, a igreja condena fiéis ao inferno, o índice de suicídio adolescente eleva-se assustadoramente. Por isso não se trata de uma peça niilista, mas, ao contrário, sobre a vida.

Quem rouba a cena é:

Indicado a Melhor Ator no Prêmio Shell 2008, por Cine-teatro limite, Rodrigo Pandolfo, 25 anos, solta a voz como o inquieto Moritz. Ele encara seu primeiro musical como um desafio, misto de amor e dor.

– Quando a minha dor se casa com o meu amor, é maravilhoso. É o que ocorre agora. Sofro de um mal: não conseguir me entregar para algo que não me faça sentido. E O despertar... faz muito. A peça me faz gritar, sofrer, cantar, amar, aprender, entender. E me faz não entender, tira o sono, me desperta. E, após o “meu” despertar, o objetivo agora é despertar o outro, e no outro. A sexualidade é eternamente despertada, e infantil. O abuso, a opressão, o suicídio são assuntos eternos, nos tiram do chão, são carne viva. O texto é um grito por libertação do “vento triste que nunca desiste do nosso rosto”.

Teatro Villa-Lobos – Av. Princesa Isabel, 440, Copacabana (2334-7153). Cap.: 463 pessoas. 5ª e 6ª, às 21h; sáb., às 21h30; e dom., às 18h. R$ 60 (5ª e 6ª), R$ 80 (sáb.) e R$ 70 (dom.). Duração: 120 minutos. 14 anos. Até 15 de novembro.

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Documentos da vida moderna, por Raymond Depardon

Marcada pela troca de experiências e a discussão de possíveis soluções para os problemas sociais que afetam tanto o Brasil como a França, a Mostra Social em Movimentos chega, a partir de segundafeira, à sua terceira edição. Apresentando como destaque o premiado documentário La vie moderne, do fotógrafo Raymond Depardon, o programa reúne 11 obras numa seleta coletânea de filmes inéditos, dirigidos por cineastas dos dois países. A abertura do evento, na Maison de France, acontece com a exibição de A zona, no país dos catadores (1928), de Georges Lacombe; e um dos primeiros curtametragens de Maurice Pialat, O amor existe (1960). A partir de quinta, o evento muda de casa e assume as salas do Centro Cultural Banco do Brasil.

– Buscamos filmes que abordem questões que afetam a vida dos dois países – explica Tatiana Milanez, curadora e diretora-adjunta da ONG Autres Brésils. – O mais difícil foi casar trabalhos que tratassem da mesma temática e que fossem contemporâneos. Era primordial traçar esse paralelo comunicativo. Realizamos uma grande pesquisa em cinematecas e na internet até fecharmos esses nomes.

A saga de um olhar camponês

Co-fundador da mítica agência Gamma e herdeiro do cinema direto, cujo líderes atendem por Richard Leacock e D.A. Pennebaker, o fotógrafo e documentarista francês Raymond Depardon é o nome mais cultuado da Mostra. Autor de 1974, Um presidente em campanha (1975), terá apresentado, dia 23, o premiado La vie moderne (2008), corte final da sua trilogia de perfis camponeses: A aproximação (2000) e O cotidiano (2004).

Ao longo de 10 anos, Depardon registrou a vida de camponeses que residem em meio a isoladas montanhas francesas. Convidando o espectador a um mergulho no cotidiano destas fazendas, o filme aborda com a serenidade típica de seus moradores as raízes e a situação da população rural. A produção, premiada com o Louis Delluc, em 2008, foi recebido com pompa no Festival de Cannes do mesmo ano.

– Tentamos de tudo para trazer Depardon ao Brasil. Ele filmou cada detalhe de como vivem essas famílias. É um contraste muito grande com a modernidade e o desenvolvimento da França atual – diz a curadora. – É como se os seus personagens estivessem parados no tempo há 50 anos. Ele visitou zonas remotas, registrou a decadência e retratou pessoas ingênuas, na maioria idosos, com extrema poesia.

Diretores franceses marcam presença em debates

Após cada uma das sessões, os espectadores participam de um debate centrado em temas como justiça, trabalho, manifestações culturais, direito à moradia e imigração. No dia 20, a diretora Elisabeth Leuvrey, de La traversée, analisa o processo de imigração a partir do ponto de vista de uma travessia do navio Ilha da Beleza, que transporta, da Argélia a Marselha, turistas que voltam de férias e outros que vão à França pela primeira vez. No mesmo dia, o diretor Beto Novaes também participa da bancada. Antes, ele apresenta o documentário Migrante, dirigido em parceria com Francisco Alves e Cleisson Vidal, e que é resultado de uma colaboração entre universidades federais do Maranhão, Piauí, São Carlos e Rio.

– Meu trabalho é transformar a pesquisa acadêmica em trabalhos audiovisuais – analisa Neves. – Investigamos as causas que levam a juventude nordestina desses estados a migrar em busca de trabalho nas plantações de cana do Sudeste. É um reflexo da perda das terras que os sustentavam e a falta de oportunidades nas capitais do Nordeste. Analisamos esses bolsões periféricos de pobreza e as condições de exploração desumanas a que eles são submetidos e acomodados nas usinas de cana.

As manifestações culturais das duas nações marcam presença na sessão Músicas urbanas. Dirigido por de Jean-Pierre Thorn, On n’est pas des marques de vélo narra a história do dançarino de break Ahmed M’Hemdi, apelidado de Bouda. Após cumprir pena de quatro anos por envolvimento com drogas, ele é condenado a retornar à Tunísia, numa saga que resume a trajetória de moradores dos subúrbios de Paris e do movimento hip hop. Já Entre a luz e a sombra, de Luciana Burlamaqui, cumpre o foco nacional e apresenta uma atriz que se dedica a humanizar o sistema carcerário no Carandiru ajudando a dupla de rap 509-E.

– A questão de Bouda é uma das mais atuais na Europa – afirma Tatiana. – Ele foi para a França com três meses, mas não teve direito ao passaporte. Após cumprir a sentença na prisão é expulso para a Tunísia, lugar onde nasceu, mas que não sabe sequer falar o idioma. O filme é um esforço do Jean Pierre em abolir a lei que garante essa dupla pena. Houve grande repercussão, porque Bouda é bastante conhecido e influente. É um dos precursores da cena hip hop francesa e das batalhas de rap nas periferias.

Dentro do tema “Justiça”, a diretora Stéphane Mercurio, de À côté, propõe uma aproximação do espectador com a realidade carcerária francesa. Ainda compõem o programa e a mesa as brasileiras Paula Zanettinni e Mônica Marques, diretoras do documentário Do lado de fora. A produção revela os obstáculos enfrentados por algumas das 50 mil mulheres que visitam os parentes presos no Estado do Rio.

– São os dois filmes mais bem conectados da mostra – diz Tatiana. – À côté acompanha as longas viagens de chegada e saída dos familiares dos presos. Já o brasileiro apresenta a rotina dos visitantes de Bangu 1. Os sentimentos são os mesmos, o que nos diferencia é a total precariedade das condições brasileiras.

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Friendly Fires um ano antes de tocar no Circo Voador

Realizada há um ano, a longa entrevista com o vocalista e principal compositor do Friendly Fires, Ed MacFarlane, transcrita abaixo, serve para observarmos o quão rápido gira o furacão do hype nesse mundo pop. Os caras contavam apenas com um single. Mas, tudo bem, era o single. Macfarlane e seus parceiros ainda não haviam descoberto o poder sedutor e dançante das escolas de samba, que vieram a adicionar em seu disco de estreia e no single Kiss of life, que apresentam logo mais no Circo Voador.

Escrevo do Brasil e posso ouvir suas canções sem pagar absolutamente nada por isso. Isso me fez conhecer um novo artista e fazer uma matéria sobre... Há alguns anos isso seria mais difícil de ocorrer... Como se sente em relação à velocidade que a comunicação tomou nos últimos anos, principalmente no mundo da música?

EM: Isto me faz sentir bem e mal, ao mesmo tempo. Ficou satisfeito em ver que o Myspace é realmente uma ferramenta eficiente para fazer nossa música alcançar públicos tão amplos e distantes. Mas, ao mesmo tempo, sinto falta da sensação de realmente descobrir uma nova banda. Sinto falta da tarefa de caçar música em sebos e lojas, assim com o prazer de ter em mãos um CD ou um vinil e, finalmente, de ter a expectativa antes de poder escutá-lo. As coisas acontecem muito rapidamente nos dias de hoje.

Há alguma pressão no fato de a banda constar em praticamente todas as listas que apontam as maiores promessa do ano? Como é estar no centro do hype com apenas um single lançado?

EM: Bom, gostaria de acreditar que é porque somos realmente uma boa banda. Estou satisfeito pelo que conseguimos com nossos dois EPs e com o single, Paris, porque pudemos construir lentamente todo este hype em volta da gente. Nós trabalhamos de uma maneira mais tradicional. Não fomos catapultados pela imprensa e nem colocamos a faca na garganta das pessoas para ouvirem nossa música. Com certeza há uma certa pressão, mas acho que, principalmente, para mim. Quero que todas as nossas músicas soem como perfeitas canções pop e, às vezes, isso não é tarefa das mais fáceis.

Vocês fazem parte de uma nova geração de ídolos indie que é catapultada ao estrelato mesmo antes de qualquer grande gravadora sinalizar sequer intenção em contratar determinado artista. O mundo da música está em constante mudança, mesmo que não saibamos aonde vai dar, mas parece que essa onda hype gira mais rápido ainda.... Como lidam com isso?

EM: Eu realmente não quero e nem pretendo ser um ídolo da geração indie. Então espero que isso não aconteça conosco. Talvez você esteja se referindo a músicos como Pete Doherty, que usam a credibilidade de seu status para manter as pessoas interessadas em colocá-los nos jornais e revistas de fofocas baratas. Esse tipo de coisa me aborrece bastante. Acho que "celebridade" é uma palavra praticamente sem sentido para se referir a um músico de sucesso. Essa palavra me leva a pensar em algo como um sinônimo de alguém sem talento, participantes de reality shows ou mulheres de jogadores de futebol. O mundo da música realmente está mudando. Hoje em dia, ninguém mais vende muitos discos. Para uma banda sobreviver ela depende muito mais dos shows que faz. Ainda bem que nós podemos excursionar pelo resto de nossas vidas, se isto for preciso. Acreditamos que é das melhores sensações que o mundo tem a oferecer .

Qual a sua opinião sobre programas como Myspace, Youtube e torrents de compartilhamento de arquivo? Você usa essas ferramentas? São todos poderosos instrumentos de marketing, principalmente para artistas novos. Como se sente usando e, ao mesmo tempo, sendo usado como cobaia de todos esses mecanismos?

EM: Você pode contabilizar milhões de visitações na sua página do Myspace ou nos vídeos que disponibilizamos no Youtube, mas mesmo assim você permanece falido. Por um lado é bom, mas acho que este tipo de coisa não beneficia os verdadeiros amantes da música. É realmente um saco tentar achar um mp3 em boa qualidade nestes programas de troca de música. Eu e o baterista somos fãs do Beatport, que você pode baixar arquivos em WAV. Nós estamos dispostos a pagar. Acho também que a Internet motiva as bandas a se esforçarem ainda mais para fazer com que seus trabalhos sejam atrativos. Radiohead é um bom exemplo do que estou falando. Os verdadeiros fãs da banda vão comprar o álbum nas lojas, porque eles querem o pacote completo, os adesivos, as fotos e o libreto.

Acredita que a banda chamou a atenção das pessoas por quais motivos? Qual característica sonora credita essa diferenciação em relação aos milhares de artistas indie que nascem diariamente na Inglaterra?

EM: Nosso som é original. Nós fazemos as coisas do nosso jeito. Tentamos escrever canções acessíveis, mas ao mesmo tempo interessantes. Eu gostaria de pensar que estas são as razões pelas quais as pessoas estão interessadas na gente. Como banda, acho que nós temos uma sensibilidade pop bastante aguçada, além de termos canções muito melhores do que a maioria das bandas que estão por aí. Nós mesmos que gravamos e produzimos as nossas músicas. Não entramos num estúdio e deixamos alguém de fora fazer todo o trabalho. Somos escravos da sonoridade perfeita, a luxúria na medida certa, no tipo de sintetizador. Nós temos cuidado com os mínimos detalhes.

Batidas dançantes, cowbell, guitarras espaciais, vocais em falsete... Tudo transformado numa mescla dançante de rock, eletrônica e pop. Poderia detalhar da onde partem as influências do FF?

EM: Nós gostamos de tudo isso, mas ao mesmo tempo todos nós temos leves preferências por certos tipos de som. Nosso baterista é um tremendo fã de house e techno... Carl Craig, Ricardo Vilalobos, Kerri Chandler, entre outros. Já nosso guitarrista é um grande fã da sonoridade épica e luxuriante do post-rock, bandas como Growing, Do Make Say Think e My Bloody Valentine. No meu caso, sinto que meu coração está mais próximo de coisas old-school disco, coisas bem pop como Chic, Evelyn "Cahmpagne" Kings e os Jacksons. Sua descrição foi bastante apurada.

O que você anda escutando?

EM: No momento, Andomat 3000, Holger Czukay, Zapp and Roger, Justus Kohnke, Holy Ghost e o novo disco do Jamie Lidell!

Quando planejam lançar um álbum inteiro? Já está gravado? Ou ainda planejam entrar em estúdio? Algum contrato prestes a ser assinado?

EM: Acabamos de passar dois dias em estúdio gravando bateria, elas estão soando super bem. Algumas faixas são gravadas inteiramente em casa, algumas outras fazemos em estúdio. Estamos bem próximos de terminar o álbum e esperamos lançá-lo até o final de junho, para o período dos festivais. Acabamos de fechar contrato com a XL Recordings (Adele, White Stripes e Radiohead), sentimos que esta é a casa ideal para nós.

Paris é uma das mais fortes e pegajosas canções pop das últimas semanas, ou meses, ou que eu ouvi em um bom tempo... Assim que terminou de compor já sabia que era um potencial hit?

EM: Eu escrevi, toquei e gravei a música toda numa noite. Apenas funcionou e fluiu da maneira certa. Assim que terminada, sabia que seria um grande single. Foi um momento especial para mim.

"One day, we're gonna live, in Paris, I promise, I'm on it!" Esse é um dos versos mais comentados no meio da moda, das pessoas ditas "antenadas", DJs e etc...

EM: Eu acho o máximo que as pessoas estejam cantando a música, mas não importa se estas pessoas são lançadoras de moda ou qualquer um.

Paris é uma palavra mágica? Parece que as pessoas ouvem e já saem em êxtase, ou começam a sonhar...

EM: Sim. Paris é um lugar muito romântico, que consegue reunir pensamentos de amor e felicidade. Todo mundo quer estar apaixonado e feliz. Esta é a intenção da música.

E Paris o fascina por quais motivos?

EM: Eu, na verdade, quero viver em Berlim. Desculpe-me por destruir a imagem. Mas Paris é uma cidade fascinante, amo as pessoas daquele lugar. Apenas estive lá duas vezes e as duas oportunidades foram o máximo. Eles realmente apreciam os artistas, Minha noite favorita foi quando nós tocamos em uma festa privada em Paris. Foi algo tão exclusivo e cheio de classe, muito diferente do que tocar em um desses grudentos e fedorentos pubs ingleses.

Ao mesmo tempo que são inspirados por música eletrônica, vocês não usam samples, mash-ups, elementos dessa cultura de produção eletrônica... Por que não? É esse o ponto que os define como uma banda de rock?

EM: Quando tocamos ao vivo temos bateria, baixo e guitarras na linha de frente. Os sintetizadores não são pensados como destaque, mas sim para se misturar e se integrar à música. Ser eletrônico apenas como um meio de ser algo é perda de tempo. Existem milhares de bandas que usam sintetizadores sem uma real intenção, apenas por usar, pois sentem que podem adicionar uma camada, mas acaba sempre soando fora de contexto.

Vocês soam com a urgência de uma banda de garagem, mas como um pop sujinho e dançante…
EM: Nossa principal intenção era escrever música pop dançante com uma pegada melódica forte. Kompact Records tem sido uma grande influência. Nós amamos como o selo tradicionalmente combina batidas fortes de house com melodias afetadas e luxuosas. Amamos este senso de euforia quando os sintetizadores entram forte e, de repente, te fazem querer levantar as mãos para cima.

As suas canções levam as pessoas a querer dançar… O caminho é esse?

EM: Bem, acho que outras bandas já fizeram este tipo de coisa. Não queremos ou temos a intenção de fazer isto Nós vivemos no countryside londrino, então não estamos envolvidos por esta cena, bandas ou nas rodas do mundo fashion ou social. Apenas queremos fazer as coisas de acordo com a nossa vontade e inspiração, amar as músicas que escrevemos e tentar não se atolar por toda a merda que rola no East London.

Vivemos num tempo de multiplicidades, fugacidade, efemeridade, velocidade de reciclagem impressionante... A cena musical é um dos exemplos mais claros de toda essa loucura... Além das novas bandas, há os novos rótulos... como lida ou analisa esse desespero de cristalizar e de registrar o que não se compreende direito com um novo nome? Acha que revistas como NME perderam a cabeça?

EM: Acho que analisar música é um tanto quanto estranho. Ponto final. Novas cenas pipocam toda semana, porque a imprensa precisa sempre de coisas sobre as quais escrever. A única coisa que as bandas devem fazer é se preocupar em escrever boas canções e esperar que as pessoas entrem na onda e que para eles tenha um significado. A imprensa fará sempre o que puder para se manter no mercado. Podem escrever o que quiserem, mas se o que estas "cenas" produzirem não for boa coisa, o público em geral não vai dar a mínima.

Como as pessoas reagiram aos primeiros shows e turnês realizadas na Europa? O que um público precisa ter para te deixar eletrizado no palco?

EM: Sim, é brilhante contar com um público que cante as nossas músicas durante todo o show, especialmente em países em que nossa música não é a primeira língua. Me disseram que o nosso show em Paris já está esgotado, o que é fantástico. Estaria mentindo se dissesse que não me preocupo ou me animo se as pessoas estão dançando ou não, mas quanto mais shows nós fazemos percebo ainda mais que as pessoas apreciam as coisas e demonstram isso de várias e particulares maneiras. Nem todo mundo quer ficar dançando, algumas pessoas preferem apenas assistir e entrar na onda dessa forma.

Vocês participam pela primeira vez dos principais festivais de verão da Europa. Como está a expectativa?

EM: Iremos tocar em quantos lugares for possível. Imploramos pela reação inicial de tocar para um público que nunca nos viu anteriormente. Não importa se gostarem ou não de nós. Excursionar pode se tornar cansativo, mas estamos tão acostumados uns com os outros agora. Passamos a maior parte de nosso tempo fora da música juntos. Não consigo nem lembrar da última vez que discutimos! Dedos cruzados.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Moda e rock'n'roll = Glass and Glue

Antes de qualquer burburinho sonoro cruzar frequências de rádio ou falantes de casas de shows, eles já causavam frisson no mundinho fashion. Também pudera. De seus quatro integrantes, três, de um jeito ou outro, já atravessaram passarelas. Caso da vocalista Mayana Moura e do guitarrista Paulo Ferreira, ambos ex-modelos, e da stylist Marina Franco, que divide a liderança dos vocais. Desde o primeiro show do Glass and Glue, em fevereiro deste ano, no Lounge 69, até hoje, seis meteóricos meses catapultaram o quarteto das festas e eventos ligados a marcas como Adidas, Diesel e Cantão, além de performances nos desfiles do Fashion Rio, para shows concorridos no Studio-SP, na capital paulista, e convites para DJ set na badalada noite do Rockinho, comandado por Rodrigo Penna. O hype em torno do grupo, que toca nesta quinta-feira no Cinematheque, apesar de olhares desconfiados, já desperta a atenção de gravadoras:

– Estamos, sim, conversando e atentas a propostas e a melhor forma de lançarmos o nosso disco. Mas ainda não temos nada concreto – despista Marina. – O elo com a moda pode até ser motivo de preconceito. Mas, no nosso caso, é natural que tenhamos surgido no meio. Trabalhamos com isso. E moda e música sempre andaram juntos.

Estudante de História da Arte, na Uerj, até o ano passado Marina sequer vislumbrava a hipótese de subir ao palco. Aponta a convivência com sua roommate Mayana e com o namorado, o guitarrista Paulo Ferreira, como indício que a levou a assumir o microfone. Ainda tenta se adaptar à nova linguagem e expressão artística, ao processo de composição e à postura a assumir diante da plateia.

– Era a única que nunca havia tocado em bandas. O Paulo e a Mayana já tiveram experiências. O Fabrício é o único que vive de música, e produz nosso som – conta. – É uma descoberta. Sempre estive conectada com o mundo das artes e trabalhar com moda te faz participar de processos criativos. A maneira como produzo um figurino, campanhas, ou um editorial de moda para a Vogue, por exemplo, me faz lidar com a composição de imagens. Agora, componho músicas. É algo novo, mas temos que ser plurais. Além de cantar, ainda posso construir a imagem de uma banda. É muito positivo.

Com letras em inglês e francês, Glass and Glue não vê razão, e nem falta dela, para cantar em português os temas pessoais que evocam as relações amorosas: “Por que não cantar em inglês?”, questiona Mayana. Enquanto Marina revela que uma nova composição, metade em português, já está pronta: “É uma canção sobre o Rio”, adianta.

– Cantar em outra língua é uma questão de se fazer entender pelo maior número de pessoas. Desde pequena decorava as falas dos desenhos animados e filmes sem legenda... É fruto da geração que nasceu nos anos 80.

Se Bipolar atina para a mescla de uma projeção de futuro, bradada em grunhidos como “I have much bigger plans”, com lapsos de fofura romântica, “I`m walking down to the bar, I want to see your face light up in the dark, I want to go to where you are, I want to hold your hands and look at the stars”; Good enough, tratada como um dos hits da banda, versa sobre o amor sob o ponto de vista de uma durona, que não romantiza as relações. E abre com a seguinte fala: “I`m easy, you know? Treat me right, fuck me good. But if you don't... If you don't... I`ll turn you into a bad dream. A fucking bad dream”. Dado o recado, Marina comenta:
– Ainda estou descobrindo como colocar minhas questões. Se eu falo da vida na primeira pessoa, ou sob a pele de uma interlocutora... Não há apenas um compositor, então cantamos fragmentos das nossas visões de mundo – analisa. – Existem situações políticas, no Brasil, que me incomodam, mas ainda tenho que desenvolver uma maneira de transferir isso sem ficar piegas. Por enquanto uso minha bagagem emocional. É uma investigação de como explorar a linguagem.

Aos 14 anos, a persona roqueira invadiu o armário de Mayana que, no palco, usa e abusa do negro. À época, optou pelo baixo como instrumento a extravasar seus ímpetos e, em 1998, viajou para Nova York para estudar música. A experiência, de alguns meses, serviu para montar uma banda e fazer os primeiros shows em pequenos clubes locais. A viagem não durou muito, mas foi seguida por outra. Ao voltar para o Brasil, cruzou os olhos do fotógrafo Mario Testino. Do dia para noite, tornou-se modelo. Desfilou para grifes como Chanel, mas, em menos de um ano, largou as passarelas.

– Acho que só me tornei modelo porque um cara fodaço como o Mario cruzou o caminho. Sempre quis fazer música – garante Mayana. – Em 2003 cheguei a montar uma banda com outras duas meninas, a OMI. Gravamos uma demo em Los Angeles, com o Mark Muir, do Suicidal Tendencies, mas o projeto não vingou. Depois passei anos estudando artes cênicas, trabalhei na Globo, até que a música bateu forte e voltei a compor e gravar em casa um monte de canções.

Colocando-se além de uma mera repaginação do estereótipo riot grrrl, Marina identifica referências que vão do pós-punk, como Joy Division, passam pelo grunge e a cena indie dos anos 90, com Nirvana, Smashing Pumpkins e Pixies, até chegar aos anos 2000, de bandas como Yeah Yeah Yeahs, The Gossip e Franz Ferdinand para definir o som que logo mais apresenta:

– Além das próprias, vamos de Modern love, David Bowie; Tear you apart, do She Wants Revenge, que é muito poderosa, além da música que fecha os nossos shows, Ca plane pour moi, do Plastic Bertrand.

Ouça: www.myspace.com/glassandglue

terça-feira, 11 de agosto de 2009

“É de igual para igual”

Acostumado a escrever, dirigir e lançar filmes anualmente, Daniel Filho é um dos mais bem-sucedidos realizadores do cinema brasileiro. Aos 71 anos, toca em ritmo acelerado os projetos de sua produtora, a Lereby, como a adaptação cinematográfica para a telenovela Roque Santeiro e a cinebiografia do médium brasileiro Chico Xavier. Agora, porém, concentra-se para o lançamento de seu novo longa-metragem, Tempos de paz – orçado em R$ 1, 5 milhão – que estreia nesta sexta.
O aguardado e autoral trabalho do diretor é mais uma amostra da afinada relação com Tony Ramos – protagonista da milionária franquia Se eu fosse você, cuja segunda versão é a maior bilheteria da Retomada, arrecadando R$ 40 milhões. O filme, baseado numa peça de Bosco Brasil, é ambientado após o fim da Segunda Guerra Mundial e conta com o ator no papel de Sigismundo, um oficial do governo Getúlio Vargas responsável por interrogar e expedir vistos para a entrada de imigrantes. Ele contracena com Dan Stulbach, que vive o ator polonês Clausewistz, que se passa por agricultor para conseguir permanência e recomeçar sua vida.

Por que decidiu adaptar ‘Tempos de paz’ para o cinema?

Eu me emocionei demais com a peça e decidi que aquilo tinha que ficar registrado. O que vi entre o Dan (Stulbach) e o Tony (Ramos) não poderia morrer no palco. Propus, inicialmente, que fizéssemos um filme de fundo de quintal. Mas aí tudo começou a crescer, ganhar um orçamento e eu tive em mãos o que precisava. As pessoas se aproximaram da história. É um filme feito por profissionais com impulso amador. Eu coloquei dinheiro no filme. O Dan e o Tony, o fotógrafo e toda a equipe fizeram por amor. Tenho que pagar o Tony...

O que há de especial no texto do Bosco Brasil e que você traz para o filme?

O que emociona no texto... É preciso pensar se o que fazemos tem de fato importância. Trabalhamos com arte. Existem pessoas que têm, como resposta ao trabalho, resultados materiais. Assim como um médico salva uma vida e o engenheiro constrói uma ponte. Mas tudo depende de uma abnegação total em serviço do que se faz. Você pega o seu exemplo, como jornalista. Qual a importância desse texto que você quer escrever sobre o filme? Qual o sentido dessa entrevista? Enquanto um monte de gente passa fome na cidade, no país e no mundo. Enquanto o mundo está prestes a explodir, como há pouco, com as ameaças da Coreia. Parece que ninguém se importa. O filme trabalha com sentimentos de pessoas que se vêem em posições opostas. É difícil explicar, mas te garanto, com absoluta certeza, que o filme não é chato.

E por que diz isso?

Ainda não encontrei ninguém que dissesse algo parecido. O filme consegue atingir pessoas experientes de cinema, assim como os técnicos. Eles começam observando os detalhes, mas, após alguns minutos, são tomados pela história. Possivelmente por esse mesmo sentimento inexplicável que me carrega. Mas é claro que posso destacar o poder da estrutura dramática e a interpretação dos atores.

Como trabalhou com os atores nessa mudança de esferas, do teatro para o cinema, do palco para o set?

Eles tiveram que mudar completamente a forma de atuar. Eu tinha um DVD da peça e ele me serviu de exemplo. Antes de começarmos os ensaios, eu me virei para eles e disse: “Estamos com um problema”. O tom no teatro é completamente diferente. Você joga para a plateia. No cinema, a alma entra em jogo, e os olhos. É muito diferente. Fizemos 20 dias de ensaios porque adaptamos um novo texto, e rodamos em nove.

‘Tempos de paz’ é tratado como o filme autoral de Daniel Filho. Vê algum sentido nessa classificação?

O filme não é de minha autoria. A história é do Bosco Brasil. É, sim, um filme mais denso. E acho que vem daí a confusão. Mas, por outro lado, ele não é mais denso que Primo Basílio (2007). Esse, sim, foi um risco que eu corri. Não há um herói, ou personagem que você possa ter empatia. E eu sabia disso porque conhecia a história. Uma das boas cartilhas do cinema diz que é preciso ter um personagem que se comunique com determinado tipo de público, alguém que o espectador se reconheça. Pode até ser um rejeitado, como nos filmes do Woody Allen. Mas é preciso gerar identificação. Em Se eu fosse você, homens e mulheres de todas as classes e idades se reconhecem. É de uma comunicabilidade impressionante. Em Tempos de paz, mesmo que você não se identifique com o carrasco, nenhum dos dois é totalmente herói ou vilão.

O que significa a constatação de uma bilheteria recorde como a ocorrida com as duas versões de ‘Se eu fosse você’?

É claro que eu acho do cacete. Mas sou uma pessoa que trabalha há décadas nesse sentido. Tenho 55 anos de profissão, desde os tempos de TV. Toda essa bagagem me leva a tomar menos tombos que antes. Com a idade, os acertos são mais constantes. Aos poucos, vi que o filme foi saindo do gueto. A cada semana tomava proporções maiores até deixar de ser meu e se tornar do público. É algo importante para o cinema brasileiro, que agora se sustenta com filmes de comédia. Antes eram os atores que carregavam o público, comediantes como o Renato Aragão. Estamos lutando de igual para igual com os blockbusters que sempre dominaram o nosso mercado. E falo aqui dessa fatia que é a comédia romântica. Filmes como Tropa de elite e Meu nome não é Johnny fizeram muito sucesso, mas não atingiram essa marca porque se comunicam apenas com um tipo de público. Tem gente que não quer ir ao cinema para assistir à violência.

No lançamento de ‘A mulher invisível’, Cláudio Torres afirmava esperar que o filme batesse a casa do milhão. Faz projeção para ‘Tempos de paz’?

Saio com umas 50 cópias. Gostaria de ter um pouco mais. Espero atingir a casa do meio milhão de espectadores. Tenho absoluta certeza de que as pessoas que assistirem ao filme vão indicá-lo. É claro que, talvez, um pré-adolescente não se interesse pelo tema. Mas, como homem de cinema, consegui uma credibilidade com o público. Modéstia à parte, as pessoas sabem que o meu filme comunica.

Como se posiciona frente aos que dizem que comédias consideradas potenciais blockbusters não deveriam ser realizadas com o benefício das leis de incentivo?

Mantenho essa média de um filme por ano. E é o que eu busco continuar a fazer. Agora, se não há leis de incentivo não há como produzir. As pessoas esquecem que a grande maioria dos filmes não se paga. Para ter algum lucro, só mesmo com o benefício. Porque você não pode querer que todos os longas façam 3 milhões de espectadores. Vamos pegar um caso atual, o Divã. É preciso fazer conta para esses caras entenderem que não funciona como imaginam. Primeiro que 50 % ficam na mão dos exibidores, 20 a 30 %, nas mãos dos produtores. Se o Divã acumula cerca de 1,7 milhão de espectadores, gera cerca de R$ 15, 8 milhões. Tirando 50%, sobram 7,8. Menos 30 % sobram R$ 4,5. Esse filme custou mais de R$ 5 milhões para chegar às salas de cinema. Então ele não se paga e muito menos dá lucro. Eu estou falando da segunda maior bilheteria nacional do ano, um grande blockbuster. O Se eu fosse você 2 se pagaria, mas a gente não pode esquecer que ele acumula o dobro do segundo lugar.
Por que filmar Chico Xavier?

Olha, eu ia apenas produzir. Mas fui tendo dificuldades com alguns diretores. Teve um que disse ter medo de fantasmas. Foi afastado do projeto. E aí resolvi assumir. Espero lançar em abril de 2010.

Que tipo de espectador é Daniel Filho?

Eu não assisto a Homem Aranha, Homem de Aço, essas coisas. Lembro de 2046, do Wong Kar-Wai, entre outros chineses muito bons. Gostei muito de Gran Torino. Minha criação não parte apenas do cinema americano. E, sim, de Visconti, Fellini, Bergman, Rosselini, Truffaut, Kubrick, John Ford, Billy Wilder, Welles, Chabrol, Cassavetes… Tenho uns 3.500 filmes. Uma vasta DVDteca, que agora está sendo tomada pelo Blu-Ray.

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

A casa virtual da escrita: 'Enter'

Traduzido ao pé da letra, “Enter” significa entrar, ter acesso. Despido de sua oralidade imperativa e posto no ambiente computacional, num simples aperto de teclas, o verbo ganha sentido de comando inicial de funções. No âmbito da escrita, confirma a abertura e apropriação de espaços livres que são transformados em textos e cumpre a função de aventurar seu comandante a uma nova lógica, linguagem e espaço. A cada “Enter” acionado para estas linhas, vasculho por clareza e “objetividade” – preceitos jornalísticos. Para cada “Enter” cravado pelos nomes que compõem a nova antologia virtual coordenada por Heloisa Buarque de Hollanda, a coisa amplia significados: abre-se um clarão de possibilidades poéticas e de expressão da linguagem. E é justo por sua condição de passaporte virtual e abstrato para a criação de novas modalidades para a palavra que Heloisa batiza com o termo um novo site.
– Enter faz você entrar em outro sistema. Tenho certeza que, para pensar a literatura na internet, é imprescindível que cada um pressione a tecla “enter” – analisa. – Não podemos usar os mesmos comandos mentais e teóricos que usamos fora da web. É preciso aceitar o rito de passagem, se permitir entrar em outra lógica de percepção, experimentar novas relações com a palavra, com os autores, com a ideia de literatura na web.

Sob sua curadoria, o espaço virtual, que estará aberto a partir de amanhã, aloca o trabalho textual e audiovisual de 37 novos autores, que variam entre 20 e 40 anos. O marco que diferencia e dá liga original ao projeto, no entanto, é a reunião de escritos cunhados não só por escritores. Os autores selecionados são também atores, músicos, cartunistas, apresentadores de TV, editores, web designers, produtores culturais e ativistas. Entre eles, nomes como Michel Melamed, Nega Gizza, Marcelino Freire, Andre Dahmer, Lirinha, Arnaldo Branco, Rafael Grampá, Sérgio Vaz, Gabriel Bá e Fábio Moon, Ramon Mello, Bruna Beber, Alice Sant'Anna e Omar Salomão.

– O que atrai nesses nomes é a diversidade. É notar a evolução absurda da qualidade dos quadrinhos, que agora são chamados de novelas gráficas. Você observa o rap se declarando hoje como poesia falada. É a palavra rimada, que é a nova categoria dessa música. Há 10 anos, o rap era só rap. Hoje, se apresenta como poesia. Como o GOG, que é um grande poeta – destaca Heloisa. – A antologia observa como todos esses autores encaram e exercitam diferentes práticas da palavra. Assumem essas novas modalidade e as expõem na web e nas ruas. Quero jogar luz sobre todos esses novos formatos que a palavra toma. Isso que é incrível. A palavra, nessas novas formas, se apodera do estatuto da literatura e da prática literária. Isso é muito novo. É um momento de mudança na prática da palavra.

Heloisa explica que o fascínio com o universo da internet reside na potencialidade de práticas literárias diversificadas, não só a literatura. É claro que esta, com seus critérios de valor, qualidade e legitimada na função autor também circula livremente na rede. E mais, se beneficia do painel virtual para ampliar sua visibilidade e acessibilidade, permitida pela natureza aberta e descentralizada do meio eletrônico.

– Não existe uma literatura de internet, mas, sim, práticas literárias na rede, que são diversificadas. E a antologia mostra que o que expandiu foi a palavra. Não foi a literatura do ponto de vista tradicional e canônico. Essa que preza a qualidade e a autoridade continua, e também hospedada na internet. Nunca se falou, escreveu e leu como agora, na internet. O índice de downloads de clássicos é muito alto. Estimulou a escrita e leitura.

Desde a criação dos blogs, o ambiente onde esta escrita se dá modificou-se. É distinto daquele convencionado pela criação literária ou mesmo da escrita de cartas e diários. A situação de privacidade e intimidade que é, em princípio, o ambiente da escrita fora da rede, passa a ser substituído e experimentado como um espaço público, de autoexposição, interlocução e confrontação. Heloisa define a consciência desta exposição como a grande responsável por um dos traços mais atraentes desta nova geração de escritores.

– A autoironia é enorme. A escrita dos blogs é muito encenada. Quem escreve sabe que está assumindo um personagem. E isso desliza. Uma cultura online que migra para a offline e vice-versa. É uma duplicidade. As pessoas vivem nesse limite, que é uma nova forma. Nem lá, nem cá. A encenação do narrador no blog contaminou a escrita. O narrador, literalmente, perdeu a inocência. Anos atrás, ele era um deus. Hoje, ele sabe que é uma versão dele mesmo. E a milhares de caminhos de escrita. Tem até migração de sexo. É muito radical. Você poder ter a versão que quiser de você. Isso invade um comportamento e uma forma de perceber o texto.

Produção intensa na rede

Autor do livro Vinis mofados, que será lançado pela editora Língua Geral, o poeta e jornalista Ramon Mello, também idealizador do blog de entrevistas Click(IN)Versos (www.clickinversos.myblog.com.br), é um dos responsáveis por caçar, na infinidade de endereços virtuais, os novos nomes que compõem a antologia. A sede por descobrir talentosos escritores, ou condutores de palavras, levou-o ao encontro com Heloisa.
– Há uma produção literária muito intensa na rede. Logo após conhecê-la, recebi o convite para embarcar nesta viagem, que resultou em Enter – conta. – Pesquisei mais de 300 autores que tem relação direta com a rede, num trabalho que mistura texto, áudio e vídeo. O momento mais difícil é a seleção final. Muita gente interessante fica de fora. Trata-se de um recorte. Mas a antologia digital tem suas vantagens: novos autores podem ser incluídos, assim como os escolhidos podem ser deletados, para correção de possíveis equívocos. Espero que o projeto desperte o interesse do mercado editorial sobre os jovens autores, uma vez que estão avalizados por uma crítica minuciosa.

sábado, 8 de agosto de 2009

“Qualquer tango vira samba, e vice-versa”, diz Filipe Catto

Filipe Catto lança seu universo passional em sete canções próprias. Bandoneón, piano, violões e cavaquinho esculpem a sonoridade

Ao apostar na mescla de vertentes sonoras latinas com pitadas de samba e tango, adornar melodias sob uma lírica passional e dramática, e insurgir no palco em performances catárticas e teatrais, o cantor e compositor gaúcho Filipe Catto, 21 anos, mantém, intacta, uma estética indie – fruto de uma geração que molda suas referências também sob as possibilidades cruzadas da internet. Bebeu do cálice de divas como Maysa e Elis Regina, adolesceu em PJ Harvey e Cat Power e amadureceu com Chico Buarque e Elza Soares. Chama a atenção não apenas sua faceta de vigoroso intérprete. Aliás, classificação que não define sua mais distinta peculiaridade: a de compositor. Contra tenor, cuja referência mais óbvia no manancial da MPB poderia apontar Ney Matogrosso, Catto é dono de voz ambígua, afinação precisa e agudos cristalinos. O resultado, inusitado e impactante, e que poderia pender ao cafona sob mãos descuidadas, confirma aura sofisticada em Saga – balaio que reúne sete assinaturas próprias.
– Canto o sentimento mais primitivo do ser humano, a paixão. Só consigo me comunicar dessa forma.
Leia-se: versos pungentes e, ao que parece, bem cortados: “Se eu soubesse que o amor é coisa aguda, que tão brutal percorre início, meio e fim; destrincha a alma, corta fundo na espinha, inebria a garganta, fere a quem quiser ferir”, em Saga; “Deixo você para quem quiser ser teu, para amantes desbotados que não ardem como eu”, em Ressaca, ou “E se um dia me veres chorando, partindo de dor, como uma pobre coisa desgraçada, como uma triste flor esmigalhada entre seus dedos”, Ascendente em câncer; e “Enquanto te convence para os outros, enquanto te bajulam pelo bar, não vê nem por milagre que tua casa, pega fogo e espalha, luxuriosa regozija”, Crime passional.
– É claro que é sobre minhas experiências, mas extrapolam a pessoalidade. Falo da vida e de sentimentos universais. Essa dramaticidade é natural... é que nem desfile de carnaval. Busquei transformar lamentos melancólicos em dramas. A melancolia é cinza e opaca, enquanto o drama é quente e vibrante. Acentuei essa diferença, mesclando samba e tango. Até porque, qualquer tango pode virar samba, e vice-versa.
Catto é do tipo prodígio. Nascido em família de músicos, cresceu cantando em casa e em eventos diversos. Fincado no Rio Grande do Sul, cidade que respira o rock como expressão musical popular, passou a adolescência experimentando e modulando sua voz em grupos como Ácido Vinil; exercitou a escrita poética até amadurecer seu processo de composição. Não é à toa que, até hoje, faz referência a ícones do cenário indie americano, como as cantoras Cat Power, por quem se inspirou a para a realização de uma série de shows, ou PJ Harvey, que sobrevive até Saga como influência estética.
– Meu pai tocou em bandas, nos anos 60 e 70. Desde cedo a música faz parte da minha vida. Sempre procurei compor minhas canções. Passei minha adolescência cantando em bandas, assistindo a shows, circulando na cena e fazendo amizades no meio roqueiro. Aos 16, comecei a tocar e perceber que podia fazer algo melhor com a minha voz. Tive que pentelhar o Frank Jorge para fazer meu primeiro show no Ocidente, espaço badalado no Sul.
Catto tem no violão seu instrumento de apoio para burilar canções. Mas alerta que não há fórmulas: “É uma grande viagem. É uma coisa que te toma e te invade”. E é justamente assim, que o rapaz, de traços finos, pele clara e ar angelical, se transforma, possuído de febre e cólera passional, em cima do palco, para interpretar suas crias.
– Compus a melodia de Ascendente em câncer e encontrei a letra num fragmento de texto do livro do Fernando Calegari. Mas, na maioria das vezes, a música nasce sozinha, quase inteira. A letra é o principal, o tratamento com a palavra não é para enfeitar a melodia. Escrevo muito e guardo na gaveta. Tudo parte da construção poética.
Antes de entrar em estúdio, auxiliado pelo produtor Sérgio Kalil, para lapidar Saga, Catto viajou para Nova York. A vivência, de oito meses, no efervescente polo artístico nova-iorquino o colocou em sintonia com a música latina. Fosse através de mariachis mexicanos que adentravam o metrô em alto e bom som, ou os músicos de rua que povoavam a Union Square, os ritmos locais precipitaram uma pesquisa rigorosa sobre as raízes musicais brasileiras.
– A latinidade está no Brooklyn. É um cruzamento de culturas riquíssimo. E que serve como questionamento para nós. Como é que erguemos barreira tão grande em relação ao que se faz no resto da América? Deveria ser natural.
Nova York lhe trouxe a latinidade, a saudade do palco e certeza de que era tempo de elaborar um primeiro trabalho autoral.
– As pessoas tendem a achar que as coisas nascem rápido. Não é assim. Esse disco é fruto de um processo muito sofrido. Uma verdadeira saga. Por isso o nome: forte, curto e impactante.

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Alessandra Negrini: "A musa de Bressane"

Até o ano que vem, ela roda um novo longa-metragem,encarna um papel de novela e produz uma peça de escolha própria. Quando? Onde? Sobre o quê? Mistério. Alessandra Vidal de Negreiros Negrini, 38 anos, é uma mulher misteriosa. Pelo menos é isso o que se vende por aí há tempos, talvez como subterfúgio para tentar desvendar e revelar a persona da atriz que se entrega inteiramente em cena e se preserva ainda mais fora dela. Após poucos minutos de espera na sala do apartamento dela, no Alto Leblon, a atriz surge apressada. Banho tomado, calça larga, blusa de malha e sandália rasteira – todas pretas. Ao notar pedestal, luz e câmera fotográfica, dispara: “E aí... Como é que vai ser? Eu não me preparei para foto, não...” Silêncio. Coça a cabeça com as unhas (negras), bagunça as franjas (negras) de seu cabelo à pin-up anos 2000, mas concorda: “Só um minutinho que eu vou me maquiar. Nunca abro minha casa para ninguém. É uma exceção”, frisa. Num giro rápido, vira-se de costas e deixa o ambiente, cuja varanda aponta o canto da praia, à direita, e tem o Baixo sob aponta do nariz. “Há uns cinco ou 10 anos aqui era bom. Hoje em dia os caras te filmam. Não é só paparazzi, não. É muita invasão. Quero me mudar”, revela. Para onde? “Hum, tô vendo”.

Há dois anos a atriz não faz novela (a última foi Paraíso tropical). Mas rejeita a hipótese de fazer TV por necessidade financeira e garante que gosta mesmo de se comunicar com o grande público.

– Quem não gosta não consegue levar adiante. Acho um puta desafio. Porque é muito difícil fazer bem. O ritmo é desumano, enlouquecedor e o assédio é gigantesco. O protagonista de uma novela das oito exerce quase que um cargopolítico. Defender sua arte e ser artista no meio de uma indústriacomo essa não é mole – desabafa.

E deixa claro que é mesmo no cinema onde ela se encontra e molda seu referencial artístico. Sobre uma estante amarela de ferro repousam uma caixa do cineasta Wong Kar Wai, um DVD de Viver a vida, de Jean-Luc Godard, outro do austríaco Georg Wilhelm Pabst, Louise Brooks: Lou Lou, além de livros de Salvador Dalí, Andy Warhol e muitos outros. Fã de Ang Lee, Desejo e perigo é o filme da vez. E Em busca do tempo perdido éa célebre obra de Marcel Proust que ela planeja terminar daqui a dois anos, quando completar 40: “Estou no quinto volume”. Navega por fora do boom de comédias românticas que assaltou as bilheterias nacionais desde que fez Sexo, amor e traição (2004). Quer saber de filmes de autor. Ou melhor, de um autor: Júlio Bressane. Comele, filmou Cleópatra (2007), obra que a levou pela primeira vez ao Festival de Veneza e lhe rendeu o prêmio de Melhor Atriz no Festivalde Brasília. Também contracena com Selton Mello em A erva do rato – novo filme que o diretor põe à baila, em breve. Como a Anna Karina de Godard, a Giulietta Masina de Frederico Fellini,a Penelope Cruz de Pedro Almodóvar, ou a Scarlett Johansson deWoody Allen, Alessandra Negrini é a musa de Bressane.

– Isso é uma honra. Parece aquela coisa de cinema italiano e francês. Mas esse negócio de musa não é a totalidade do meu ser humano. A liberdade para mim é um valor muito importante. Também sou mãe, tenho filhos e gosto de andar solta pelo mundo – diz a bela – e solteira.

E, justo quando exercia o auge de sua função materna eamamentava a pequena Bettina, de 4 anos, Alessandra atendeu o telefonema que mudaria sua vida. Do vizinho.

– Se por um lado elemorava aqui do lado, por outro era o Bressane mítico do cinema brasileiro. Alguém que eu sempre admirei. Lembro que nem o li o roteiro de Cleópatra. Aceitei na hora. Foi um dos maiores encontros da minha vida. Já viajamos muito juntos, com a Rosa, mulher dele. É um amigo de conversas sensacionais. Culto einteligente como poucas pessoas que eu vi na vida. Mas tem amente louca. Um criador genial, aberto e longe do erudito careta. Além de super amoroso.

Recebido com pompa no 65º Festival de Veneza no ano passado, e já em cartaz no circuito comercial de Paris, A erva do rato ainda tenta abrir uma brecha nas telas nacionais, mas chega sem projeções milionárias.

– O sucesso das comédias é muito importante para o mercado. Mas é preciso ter cuidado e entender que uma obra como a do Bresane deve receber incentivos. Não vende milhões, mas roda o mundo inteiro, vira tese de estudos acadêmicos e marca a história do cinema nacional.

Livremente inspirado em dois contos de Machado de Assis, A causa secreta e Um esqueleto, o filme dá prosseguimento à relação íntima do diretor de Brás Cubas (1985) e Dias de Nietzsche em Turim (2002) com a literatura. Bressane investe, a seu modo, numa abordagem que investiga a relação do homem com a morte e na incompreensível ligação que estabelece com os animais, no caso um rato. Na história, Ele, interpretado por Selton Mello, e Ela, Alessandra Negrini, caminham por um cemitério à beira-mar até que iniciam uma estranha onda de voyeurismo etensão sexual.

– Trabalhamos com muitas imagens para entender o que ele queria. É um filme muito seco, minimalista e por isso difícil de fazer. Contracenamos pelo avesso. Mas o Selton é muito fluido. Além de ser um grande ator, é um parceiro e tanto.

Desde que interpretou a jovem e sedutora Engraçadinha, protagonista da minissérie homônima, dirigida por Denise Saraceni, em 1995, Alessandra tornou-se atriz. De verdade. Pelo menos para ela:

– Me deu um lastro, como se fosse um diploma. Faço teatro desde pequena na escola, quando morava em Santos. Já havia feito TV, mas com Engraçadinha ganhei reconhecimento. A partir daí, talvez, eu tenha fincado o pé e dito para mim mesmo ‘pode ser que eu esteja na profissão certa’. Pode ser, porque eu sou muito crítica. Eu sempre coloco uma dúvida – conta a ex-estudante de jornalismo e ciências sociais da USP.

Toda nudez será celebrada

Questionamentos que alimenta há mais de 10 anos em sessões de análise. Não sobre a profissão. Mas sobre os personagens que veste sobre a pele – ou se despe, como no longa de Bressane.

– Se você tem um filme forte o suficiente em termos de linguagempara te vestir você não está nua. Estar nua é uma coisa linda, umaforma de expor a alma. E um recurso muito importante para o ator. No filme eu estou nua, mas tenho ao meu lado um fotógrafo comoo Walter Carvalho. A luz é minha roupa e a dramaturgia, meufigurino completo.

Capa da Playboy em 2000, ela se sente à vontade para falar do assunto: “Há 10 anos foi muito importante. Todas as grandes estrelas desse país posaram. Agora eu não faria. Mas tenho orgulho”. Tranquilidade que a condição de atriz até hoje não lhe concede: “À vontade ninguém se sente. Isso não existe. Com o passar dos anos, tenho mais prazer em atuar. Mas quando o artista se sente à vontade... Aí é que eu desconfio”.

Selton Mello é apenas mais um sob a influência de Negrini

Não é a primeira vez que Selton e Alessandra formam um par romântico. Há cerca de 10 anos, eles protagonizaram A comédiada vida privada, dirigidos por João Falcão. Desde então, Mello aclassifica como inquieta, uma atriz em busca de projetos de risco.

– Vejo nela uma vontade muito grande de crescer como artista. Inteligência é algo atraente e ela tem de sobra. Trabalhar com o Júlio é se oferendar para um método bastante poético. E ter ao lado alguém do calibre dela é tranquilizador e inspirador demais.

Júlio Bressane elogia a ampla e irrestrita expressividade da atriz

Tido como o mais experimental dos filhos do Cinema Novo eenquadrado sob a pecha de cineasta marginal, ao lado de Rogério Sganzerla, Júlio Bressane é só elogios à sua musa.O autor de Matou a família e foi ao cinema (1969), que iniciou a carreira como diretor em Cara a cara (1967), destaca a entrega da atriz aos papéis que lhe dá.

– Alessandra é uma atriz de excelentes recursos, dedicada e estudiosa. A presença e a intensidade dela modificaram o meu trabalho. É difícil encontrar uma pessoa com tanta paixão e coragem de sair de si para se transformar e criar uma nova personagem. Ela leva bastante a sério, quer saber dos mínimos detalhes. Um rigor tão grande que eu pegava os roteiros e via que era todo anotado, palavra por palavra. Posso dizer que as sobrancelhas dela falam muito. Suas reações emotivas e físicas são extraordinárias.

terça-feira, 4 de agosto de 2009

O lado humano de Ulrike Meinhof

O mergulho a que um ator se submete para dar vida a um papel é, às vezes, tão profundo que voltar à tona se torna um grande desafio. Quando se trata de uma personagem emblemática para um determinado período da história política e cultural de um país, como a jornalista e revolucionária alemã Ulrike Meinhof (1934-1976), o obstáculo se redobra. Como se ainda estivesse presa à conturbada Berlim Ocidental dos anos 70 – época recortada pelo filme O grupo Baader Meinhof, sobre a insurgência da Facção Exército Vermelho (Rote Armee Fraktion ou RAF) – a atriz Martina Gedeck não possui e-mail, muito menos computador, e seu objeto de escrita, pelo qual se comunica via fax, após quase um mês desde o primeiro contato, é uma obsoleta máquina de escrever.

– Desculpe a demora, mas estive rodando um novo filme, Jub SüB, sobre a vida de Ferdinand Marian, um famoso ator alemão da época do regime nazista. Interpreto sua esposa judia – conta Martina, premiada atriz de A vida dos outros, vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 2007. – Agora estou de férias, Berlim está vazia, tenho lido e dormido bastante, cozinhado minha própria comida e nadado no lago que fica em frente à minha casa.

No entanto, desde que, em 2007, aceitou o convite para viver Ulrike Meinhof, Martina passou a navegar em águas revoltas. Protagonista do novo longa-metragem de Uli Edel (Eu, Christiane F., 13 anos, drogada e prostituída), O grupo Baader Meinhof, indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, em 2009, e em cartaz no Rio, a atriz se viu em meio a espirais que a conduziram ao epicentro dos embates psíquicos que moldam sua personagem. Ao lado de Andreas Baader e Gudrun Ensslin, ambos filhos da geração nazista, Ulrike Meinhof tornou-se líder do grupo que fundou as bases do que hoje é reconhecido como terrorismo.

– Nunca quis julgá-la e muito menos colocar minhas opiniões pessoais ou sentimentos. Minha meta era deixar que ela falasse por si, deixar que ela vivesse novamente aquele espaço de tempo, dar a chance para que ela fosse vista e ouvida por todos nós. Até hoje, ela é odiada e idolatrada na Alemanha – conta. – Busquei usar esse distanciamento de 40 anos para que as pessoas possam observá-la da forma mais clara possível: um ser humano como todos nós. Serve para que ninguém julgue o outro tão rapidamente. É esse o caminho que nos guia à violência e à injustiça.

Em 1967, a RAF iniciou uma violenta batalha contra o que denominou a nova face do fascismo. Era o imperialismo americano que, em sua guerra contra o Vietnã, mantinha bases militares no país e era apoiado pelo establishment alemão. No levante que pode ser considerado o mais violento desde a Segunda Guerra Mundial, o grupo Baader Meinhof planejou e executou, até o fim de suas atividades, em 1977, dezenas de ataques homicidas, implantando o medo no seio da ainda frágil democracia germânica. Com o objetivo de instaurar uma sociedade mais humana, foram envolvidos pela mesma violência que quiseram combater. Ao pegar em armas, derramar sangue e espalhar o terror, seus integrantes se tornaram vítimas da cegueira de seus princípios. E terminaram suas vidas em meio à loucura e à incomunicabilidade de solitárias do sistema prisional alemão.

– RAF é uma clara reação ao horror disseminado pela Alemanha durante a Segunda Guerra – analisa a atriz. – O país ainda estava em estado de choque e fingia que nada havia acontecido. Até que a geração seguinte tratou de gritar alto, mas só foi ouvida quando a violência chegou às ruas. Na época, muitos jovens foram influenciados pelo apelo sexy e cool dos membros da organização, e pela ideia de que tinham algo relevante para lutar e sacrificar a vida. Talvez seja uma herança da ideologia nazista. A última onda de violência subterrânea que emergiu. É uma dolorosa experiência que nos fez acordar e ir em frente. E é bom que o filme não os trate como heróis.

Presente e premonição

Ao iniciar sua carreira, Martina Gedeck recebeu de sua irmã um documentário, em preto e branco, de Helma Sanders, em que a jornalista Ulrike falava sobre família e educação infantil. Na época, Ulrike ainda não havia se separado de seus filhos para se juntar a RAF: “É para você... No caso de você interpretar Ulrike Meinhof algum dia”, disse. O tal dia chegou. E o inusitado presente passou a carregar em si um dispositivo de premonição.

– A partir daí, fiquei fascinada com o pensamento dela. Tudo naquela época ressoava com tratamento político. O que hoje em dia é cada vez mais raro. Ulrike era como um peixe de águas profundas, mas a água servia como elemento vital e como um enorme peso – compara. – Ela faz parte de uma geração na qual eu sempre admirei o radicalismo e a dor. Algo que eu nunca pude compreender e muito menos fazer parte. Ao interpretá-la, pude sentir na pele o sentimento de exclusão. Assim, desmistifiquei a vontade de ter vivido aquele tempo. Mergulhei fundo para entender suas raízes e fugir dos clichês.

Para vestir-se sob a pele da líder revolucionária, Martina debruçou sobre livros e escritos autobiográficos, se pôs a escutar as gravações de programas de rádios, para estudar sua voz; assistiu a documentários sobre a época e foi ao cemitério de Berlim, onde o corpo de Ulrike fora enterrado. Uma jornalista que abandona a profissão para se integrar a uma célula terrorista (RAF), uma revolucionária que deixa de lado o marido e os filhos para seguir seus ideais e, por fim, uma mulher que relega a último plano sua própria existência ante o suicídio. Se o filme deixa em aberto a morte de Ulrike, Martina conhece muito bem o terreno crispado onde deposita sua arte. Em A vida dos outros, ela interpreta Christa-Maria, que se joga na frente de um caminhão; em Atomised, ela deu vida e morte a Christiane, que arremessa o próprio corpo do alto de uma torre.

– Em A vida dos outros, é mais um acidente desejável que um suicídio. Ela quer se livrar da culpa e da vergonha. Já Christiane toma uma decisão muito consciente, após um longo processo de reflexão. Eu não estou certa de que Ulrike tirou sua própria vida. Vejo-a como uma mulher que lutou até o fim. E não consigo imaginar uma razão para ela desejar se matar. Para retratar uma pessoa que está no limite de se retirar da vida, tento imaginar o longo e profundo caminho de rompimento com as relações mundanas, até que se chegue à esperança de se ver livre. Uma vida retirada à força deixa um rastro. E você precisa ir até essa zona específica da dor. O sofrimento se torna o seu chão, a partir de onde você vai se sustentar. E é um terreno sólido, afiado e verdadeiro.

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

“Meu trabalho é solitário”

Com direção de Antônio Fagundes, Marília Gabriela encena segundo monólogo da carreira e diz que vai ao fundo do medo

O encontro entre Marília Gabriela, José Eduardo Agualusa e Antônio Fagundes numa sala de teatro serve a duas experiências inéditas: o ator assume pela primeira vez a direção de uma peça, enquanto o escritor angolano talha, pela primeira vez, um texto sob medida para uma atriz. Aquela mulher, monólogo livremente inspirado em Hillary Clinton, que entra em cartaz na próxima sexta-feira, no Teatro Leblon, surgiu da cisma de Marília, que convenceu Fagundes a assumir o novo ofício assim, meio na cara de pau, nos bastidores da novela Duas caras (2007): “Mostrei o texto a ele e esperei reações... ‘Magnífico, magnífico’, ele dizia. ‘Por que você não me dirige?’, eu perguntei. ‘Tá louca?’. ‘Ué, todos nós estamos loucos’”.

Por que a exposição solitária no palco?

– Estreei no teatro em 2002, quando o Gerald Thomas me convidou para encenar Esperando Beckett. Topei fazer, mas com a condição de que fosse um monólogo. Era um ato de irresponsabilidade, e não de arrogância. Parecia o melhor caminho. Eu sempre me virei e achei que daria conta sozinha. Meu trabalho sempre foi solitário. Não tinha consciência da dificuldade.

E por que escolheu o Antônio Fagundes para dirigir?

– Até então eu estava tranquila. Foi ele que falou: “Monólogo é um perigo”! Ensinou a mim o que é ter medo no teatro. Mostrou o grande risco que é a solidão em cena. Se algo falha, esquece o texto, não tem para onde ir. É um voo solo.

Você acabou, com intenção ou não, oferecendo um novo papel para a carreira dele...

– Acho que ele vai repetir a experiência, que é também muito solitária, penosa e difícil. O comando dele foi brilhante. É preciso acordar para a importância de um ator que fez do mais comercial ao mais sofisticado em cima do palco. Fiquei muito impressionada. Ele sabe de tudo que acontece entre o palco e a plateia: “Se você alongar mais um pouco essa sílaba você perde o público, hein”.

Como surgiu a oportunidade trabalhar com Agualusa?

– Nos conhecemos num festival de cinema, na Paraíba, em 2007. Como ele diz, foi um caso de amizade à primeira vista. Até hoje nos falamos todos os dias. Entramos no Skype e morremos de rir, discutir e brigar. Uma relação muito impressionante. A ideia da peça surgiu numa época em que eu estava em Portugal. O Agualusa e o Mia Couto escreviam uma peça. E aí me virei para ele e perguntei por que ele não escrevia algo para mim.

Você já conhecia o trabalho dele? O que tem de especial?

– Tem algo que eu admiro também no Chico Buarque. Ele escreve como uma mulher, uma sintonia muito fina. Gosta tanto das mulheres que é delicadíssimo quando fala delas. Sente como elas. É isso que dá ser amiga de escritor. E ele me usou. Existem frases inteiras que são minhas. Inclusive a primeira: “Eu não me queixo”. Aliás, se eu fosse para escrever um livro sobre a minha vida, algo que eu nunca farei, começaria assim.

Que tipo de mulher é sua personagem?

– É baseada na Hillary Clinton. Ela começava a pleitear sua candidatura à presidência dos EUA. Depois que perdeu as prévias, notamos que o texto era muito mais do que o factual. Agualusa não queria a Hillary, nem a Marília, queria a atriz que faria a personagem H. Com sua vida própria. É um acerto de contas. Ela chega ao poder pelo rancor, depois pelo amor... Discute política, paixão, submissão...

O que a fez pular da bancada para o palco?

– A inquietação dos 50 anos. Por volta dessa idade, as pessoas sentem a necessidade de fazer outra coisa da vida. Na época da faculdade, eu ensaiava junto com um grupo de teatro. E, quando vim para São Paulo, a Bibi Ferreira me recepcionou com um convite. Mas, naquele tempo, resolvi me ater à carreira jornalística. Depois que saí da Globo, recebi inúmeros convites do Raúl Cortez, do Zé Celso... O teatro flertava comigo, mas eu recusava. Até que o Gerald apareceu.

Após chegar ao teatro, às novelas e ao cinema, você encara o jornalismo como mecanismo de expressão limitado?

– Honestamente, não... Aliás, acho que são profissões que se misturam. O jornalismo me faz entender a importância de saber ouvir, e bem. E como ator, no teatro, se você não escutar com atenção o diretor, os atores, o público e, principalmente, a sua voz, não dá realmente certo.

Ainda há fascínio com o formato de entrevista?

– Me interessa absolutamente. Ainda preciso muito daquele trabalho. Até hoje eu pergunto com a mesma curiosidade da primeira vez que me vi nessa posição. Eu me esforço para conseguir extrair novas histórias e verdades.

Ainda resta nervosismo diante de um entrevistado?

– Fico nervosa se eu percebo que sou ignorante no assunto. Com o tempo, fiquei cada vez menos tensa. Aprendi a admitir muito melhor a minha ignorância. Antes era agressiva para conseguir dominar o entrevistado. Mas, se você realmente quer respostas, é preciso se mostrar do tamanho que você é em relação àquele assunto.

E em frente à câmera, aos outros atores, à plateia...

– Meia hora antes desse espetáculo eu sento no palco com a luz apagada e as cortinas fechadas. E aí começo a ouvir a porta se abrindo, as pessoas entrando e aí aquele medo começa a tomar conta de mim. Vou ao fundo do medo. E aos poucos ele me devolve uma força.

Quais são os desafios do jornalismo, do teatro, do cinema, das novelas?

– No jornalismo, está em conseguir a resposta mais verdadeira. No teatro, é tentar desvendar e descobrir o que é a vida. No cinema, o desafio está em passar uma verdade mesmo com a sua cara ampliada numa tela gigante. Enquanto na TV, como atriz, é conseguir se manter ator em meio àquela linha de produção.

E o da vida?

– Trabalho isso na análise... Acho que é conseguir viver bem. Mesmo ao descobrir que, na verdade, tudo não passa de certa ilusão.

O que vem em seguida a esse trabalho?

– Na semana que vem começo a rodar, junto com a Marília Pêra e a Suzana Vieira, a minissérie Cinquentinha. É do Aguinaldo Silva e deve estrear em setembro. Ano que vem, tenho mais uma peça para fazer, mas não será um monólogo. E o melhor de tudo é que o meu livro (Eu que te amo tanto, 2008) vai se transformar numa série de TV, com tratamento de cinema. As histórias vão ser comandadas por diferentes diretores de cinema.

domingo, 2 de agosto de 2009

A Capitu de Tambellini em pleno Arpoador

No primeiro pavimento de uma ampla cobertura triplex, fincada sobre o nº 528 da bossanovista Rua Nascimento Silva, Flávio Tambellini está sentado num sofá de camurça bege. Com as pernas cruzadas sobre uma mesa de centro, fones nos ouvidos e olhos injetados sob as lentes de uma armação robusta, concentra-se no monitor de alta definição posto à sua frente. Entre uma cena e outra, pede silêncio, dá conselhos, chega até a atuar e aponta: “Marcelo, querido, acho que pode ficar melhor. Acho que tá um pouco forçado...”, diz, enquanto se levanta e dá poucos passos até a cama de casal centrada no set: “Acho que ele tá desanimando rápido... O cara perdeu a mão, o papo não tá colando... Mas indiferente é diferente de inseguro”. O sedutor desatinado em questão é o ator Marcelo Serrado. Ou melhor, Luis. Empresário e galanteador paulista que, durante uma semana de férias no Rio, perde o “taco” e a cabeça ao ser atropelado pela bicicleta de uma garota enquanto caminha no calçadão do Arpoador. Adaptação para o romance Malu de bicicleta, de Marcelo Rubens Paiva, o terceiro longa do diretor e dono da produtora Tambellini Filmes chega a seus últimos dias de filmagem nesta semana e tem como protagonista a atriz Fernanda de Freitas.

– Tive que reler Dom Casmurro, do Machado de Assis, para achar a Malu. Ela é um pouco como a minha Capitu – define a atriz. – O Marcelo (Rubens Paiva) se inspirou no romance para escrever a personagem. E o filme é todo narrado pelo Luis. Aos olhos dele, a Malu é uma mulher super misteriosa. E é isso que desperta um ciúme que ele nunca havia sentido. Marcelo é um carioca sob a pele de um paulista. E eu, o contrário. Tive que aprender a jogar bola. Há muito tempo não andava de bicicleta. Fiquei com receio, mas vi que a gente não esquece.

Conquistador barato

Como o romance, o filme joga luz nas diferenças culturais entre Rio e São Paulo. Personagem de Marcelo Serrado, Luis é um conquistador bem-sucedido. Dono de um espaço cultural multimídia em São Paulo, goza a vida com as mulheres aos seus pés. Até que, para se livrar do estresse da frenética capital paulista e dos rolos que por lá apronta, vem ao Rio para uma temporada. Malu cruza o seu caminho para modificar a forma como enxerga a sua própria vida.

– Ele começa a gostar dela naquele esbarrão... A partir daí, entra numa espiral de questionamentos e passa a se confrontar com o que ele havia sido durante a vida inteira – explica o diretor. – Ele não aceita sua condição de apaixonado e começa a se projetar nela. Quando ela pega uma chamada dele no celular, mas não atende direito, ele se vê. Porque era assim que ele agia com as outras mulheres. Então, é uma brincadeira de relacionamento. Ela é uma carioca, livre e descolada. Ele é um paulista, da noite. É uma comédia que observa as relações humanas, a impossibilidade de se permitir gostar do outro.

Após encenar o espetáculo No retrovisor (2007), baseado em outro romance de Marcelo Rubens Paiva, o ator Marcelo Serrado foi atrás de Malu de bicicleta. Apresentou ao autor a vontade de retrabalhar o texto em tratamento cinematográfico. Até que propôs a ideia a Flávio Tambellini. Acostumado a adaptar romances para o cinema, assim como fez em Bufo & Spallanzani (2001), de Rubem Fonseca; e Passageiros: segredos de adulto (2006), inspirado no romance de Cesário Mello Franco; o diretor abraçou o projeto e passou a reescrever o roteiro.

– O Marcelo (Rubens Paiva) é um autor muito cinematográfico. Você imagina as cenas. Mas, numa adaptação, é preciso criar um recorte – analisa Tambellini. – O livro trata das reminiscências dele. Quis privilegiar as questões desse homem moderno, incapacitado de aceitar a hipótese de ser seduzido. O curioso é que o filme começa falando desse conquistador numa linguagem machista. Até que esse cara vai se desmontando. O filme acompanha a derrocada desse sedutor. Quando ele conhece a Malu, passa a ter delírios. Ele começa a querer reconquistar as outras que deixou pelo caminho porque eram fáceis. Mas ele não consegue mais nada. Achei uma profundidade dentro dessa brincadeira. Não queria algo besteirol, raso ou novelesco.

E Marcelo Serrado completa:

– Ele não sabe o que é se entregar para uma mulher. O ciúme o corrói totalmente. Ele era um bon vivant e enlouquece. Passa a vr imagens dela em situações. O filme invade o inconsciente de um sedutor.

Quatro mãos, dois anos e um roteiro pronto

Para finalizar o roteiro da fita, que conta também com os atores Thelmo Fernandez, Daniele Suzuki, Marjorie Estiano, entre outros, Flávio Tambellini levou quase dois anos em reuniões com o escritor Marcelo Rubens Paiva.

– No início, trabalhei sozinho. Quis me inserir na história, porque os romances te dão essa possibilidade – explica o diretor. – O autor geralmente tem apego, não aceita mudanças. Mas o Marcelo chegou para entregar a essência.

Filmada em quatro semanas em locações fixas no Centro e no Leblon, além de externas rodadas nas nas praias de Ipanema, Arpoador e na Pedra Bonita, a produção acena um Rio de Janeiro solar, em contraponto a uma São Paulo cinzenta. Idealizador do projeto, Marcelo Serrado aposta na força da história.

– Todo mundo que lê adora e se identifica com o livro. O Flávio também é fã do Marcelo. É uma força natural que carrega o texto. E, para o filme, ganhamos um roteiro muito forte e bem amarrado, que foi trabalhado à exaustão pelos dois – conta Serrado. – O grande lance do filme é que ele não é um pastelão à Ben Stiller, mas também não chega a ser um Closer. Não é uma comédia explícita ou banal. O humor e a comicidade estão nos acontecimentos.