NOTAS SOLTAS E RUÍDOS ESCRITOS

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Documentos da vida moderna, por Raymond Depardon

Marcada pela troca de experiências e a discussão de possíveis soluções para os problemas sociais que afetam tanto o Brasil como a França, a Mostra Social em Movimentos chega, a partir de segundafeira, à sua terceira edição. Apresentando como destaque o premiado documentário La vie moderne, do fotógrafo Raymond Depardon, o programa reúne 11 obras numa seleta coletânea de filmes inéditos, dirigidos por cineastas dos dois países. A abertura do evento, na Maison de France, acontece com a exibição de A zona, no país dos catadores (1928), de Georges Lacombe; e um dos primeiros curtametragens de Maurice Pialat, O amor existe (1960). A partir de quinta, o evento muda de casa e assume as salas do Centro Cultural Banco do Brasil.

– Buscamos filmes que abordem questões que afetam a vida dos dois países – explica Tatiana Milanez, curadora e diretora-adjunta da ONG Autres Brésils. – O mais difícil foi casar trabalhos que tratassem da mesma temática e que fossem contemporâneos. Era primordial traçar esse paralelo comunicativo. Realizamos uma grande pesquisa em cinematecas e na internet até fecharmos esses nomes.

A saga de um olhar camponês

Co-fundador da mítica agência Gamma e herdeiro do cinema direto, cujo líderes atendem por Richard Leacock e D.A. Pennebaker, o fotógrafo e documentarista francês Raymond Depardon é o nome mais cultuado da Mostra. Autor de 1974, Um presidente em campanha (1975), terá apresentado, dia 23, o premiado La vie moderne (2008), corte final da sua trilogia de perfis camponeses: A aproximação (2000) e O cotidiano (2004).

Ao longo de 10 anos, Depardon registrou a vida de camponeses que residem em meio a isoladas montanhas francesas. Convidando o espectador a um mergulho no cotidiano destas fazendas, o filme aborda com a serenidade típica de seus moradores as raízes e a situação da população rural. A produção, premiada com o Louis Delluc, em 2008, foi recebido com pompa no Festival de Cannes do mesmo ano.

– Tentamos de tudo para trazer Depardon ao Brasil. Ele filmou cada detalhe de como vivem essas famílias. É um contraste muito grande com a modernidade e o desenvolvimento da França atual – diz a curadora. – É como se os seus personagens estivessem parados no tempo há 50 anos. Ele visitou zonas remotas, registrou a decadência e retratou pessoas ingênuas, na maioria idosos, com extrema poesia.

Diretores franceses marcam presença em debates

Após cada uma das sessões, os espectadores participam de um debate centrado em temas como justiça, trabalho, manifestações culturais, direito à moradia e imigração. No dia 20, a diretora Elisabeth Leuvrey, de La traversée, analisa o processo de imigração a partir do ponto de vista de uma travessia do navio Ilha da Beleza, que transporta, da Argélia a Marselha, turistas que voltam de férias e outros que vão à França pela primeira vez. No mesmo dia, o diretor Beto Novaes também participa da bancada. Antes, ele apresenta o documentário Migrante, dirigido em parceria com Francisco Alves e Cleisson Vidal, e que é resultado de uma colaboração entre universidades federais do Maranhão, Piauí, São Carlos e Rio.

– Meu trabalho é transformar a pesquisa acadêmica em trabalhos audiovisuais – analisa Neves. – Investigamos as causas que levam a juventude nordestina desses estados a migrar em busca de trabalho nas plantações de cana do Sudeste. É um reflexo da perda das terras que os sustentavam e a falta de oportunidades nas capitais do Nordeste. Analisamos esses bolsões periféricos de pobreza e as condições de exploração desumanas a que eles são submetidos e acomodados nas usinas de cana.

As manifestações culturais das duas nações marcam presença na sessão Músicas urbanas. Dirigido por de Jean-Pierre Thorn, On n’est pas des marques de vélo narra a história do dançarino de break Ahmed M’Hemdi, apelidado de Bouda. Após cumprir pena de quatro anos por envolvimento com drogas, ele é condenado a retornar à Tunísia, numa saga que resume a trajetória de moradores dos subúrbios de Paris e do movimento hip hop. Já Entre a luz e a sombra, de Luciana Burlamaqui, cumpre o foco nacional e apresenta uma atriz que se dedica a humanizar o sistema carcerário no Carandiru ajudando a dupla de rap 509-E.

– A questão de Bouda é uma das mais atuais na Europa – afirma Tatiana. – Ele foi para a França com três meses, mas não teve direito ao passaporte. Após cumprir a sentença na prisão é expulso para a Tunísia, lugar onde nasceu, mas que não sabe sequer falar o idioma. O filme é um esforço do Jean Pierre em abolir a lei que garante essa dupla pena. Houve grande repercussão, porque Bouda é bastante conhecido e influente. É um dos precursores da cena hip hop francesa e das batalhas de rap nas periferias.

Dentro do tema “Justiça”, a diretora Stéphane Mercurio, de À côté, propõe uma aproximação do espectador com a realidade carcerária francesa. Ainda compõem o programa e a mesa as brasileiras Paula Zanettinni e Mônica Marques, diretoras do documentário Do lado de fora. A produção revela os obstáculos enfrentados por algumas das 50 mil mulheres que visitam os parentes presos no Estado do Rio.

– São os dois filmes mais bem conectados da mostra – diz Tatiana. – À côté acompanha as longas viagens de chegada e saída dos familiares dos presos. Já o brasileiro apresenta a rotina dos visitantes de Bangu 1. Os sentimentos são os mesmos, o que nos diferencia é a total precariedade das condições brasileiras.

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