NOTAS SOLTAS E RUÍDOS ESCRITOS

terça-feira, 4 de agosto de 2009

O lado humano de Ulrike Meinhof

O mergulho a que um ator se submete para dar vida a um papel é, às vezes, tão profundo que voltar à tona se torna um grande desafio. Quando se trata de uma personagem emblemática para um determinado período da história política e cultural de um país, como a jornalista e revolucionária alemã Ulrike Meinhof (1934-1976), o obstáculo se redobra. Como se ainda estivesse presa à conturbada Berlim Ocidental dos anos 70 – época recortada pelo filme O grupo Baader Meinhof, sobre a insurgência da Facção Exército Vermelho (Rote Armee Fraktion ou RAF) – a atriz Martina Gedeck não possui e-mail, muito menos computador, e seu objeto de escrita, pelo qual se comunica via fax, após quase um mês desde o primeiro contato, é uma obsoleta máquina de escrever.

– Desculpe a demora, mas estive rodando um novo filme, Jub SüB, sobre a vida de Ferdinand Marian, um famoso ator alemão da época do regime nazista. Interpreto sua esposa judia – conta Martina, premiada atriz de A vida dos outros, vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 2007. – Agora estou de férias, Berlim está vazia, tenho lido e dormido bastante, cozinhado minha própria comida e nadado no lago que fica em frente à minha casa.

No entanto, desde que, em 2007, aceitou o convite para viver Ulrike Meinhof, Martina passou a navegar em águas revoltas. Protagonista do novo longa-metragem de Uli Edel (Eu, Christiane F., 13 anos, drogada e prostituída), O grupo Baader Meinhof, indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, em 2009, e em cartaz no Rio, a atriz se viu em meio a espirais que a conduziram ao epicentro dos embates psíquicos que moldam sua personagem. Ao lado de Andreas Baader e Gudrun Ensslin, ambos filhos da geração nazista, Ulrike Meinhof tornou-se líder do grupo que fundou as bases do que hoje é reconhecido como terrorismo.

– Nunca quis julgá-la e muito menos colocar minhas opiniões pessoais ou sentimentos. Minha meta era deixar que ela falasse por si, deixar que ela vivesse novamente aquele espaço de tempo, dar a chance para que ela fosse vista e ouvida por todos nós. Até hoje, ela é odiada e idolatrada na Alemanha – conta. – Busquei usar esse distanciamento de 40 anos para que as pessoas possam observá-la da forma mais clara possível: um ser humano como todos nós. Serve para que ninguém julgue o outro tão rapidamente. É esse o caminho que nos guia à violência e à injustiça.

Em 1967, a RAF iniciou uma violenta batalha contra o que denominou a nova face do fascismo. Era o imperialismo americano que, em sua guerra contra o Vietnã, mantinha bases militares no país e era apoiado pelo establishment alemão. No levante que pode ser considerado o mais violento desde a Segunda Guerra Mundial, o grupo Baader Meinhof planejou e executou, até o fim de suas atividades, em 1977, dezenas de ataques homicidas, implantando o medo no seio da ainda frágil democracia germânica. Com o objetivo de instaurar uma sociedade mais humana, foram envolvidos pela mesma violência que quiseram combater. Ao pegar em armas, derramar sangue e espalhar o terror, seus integrantes se tornaram vítimas da cegueira de seus princípios. E terminaram suas vidas em meio à loucura e à incomunicabilidade de solitárias do sistema prisional alemão.

– RAF é uma clara reação ao horror disseminado pela Alemanha durante a Segunda Guerra – analisa a atriz. – O país ainda estava em estado de choque e fingia que nada havia acontecido. Até que a geração seguinte tratou de gritar alto, mas só foi ouvida quando a violência chegou às ruas. Na época, muitos jovens foram influenciados pelo apelo sexy e cool dos membros da organização, e pela ideia de que tinham algo relevante para lutar e sacrificar a vida. Talvez seja uma herança da ideologia nazista. A última onda de violência subterrânea que emergiu. É uma dolorosa experiência que nos fez acordar e ir em frente. E é bom que o filme não os trate como heróis.

Presente e premonição

Ao iniciar sua carreira, Martina Gedeck recebeu de sua irmã um documentário, em preto e branco, de Helma Sanders, em que a jornalista Ulrike falava sobre família e educação infantil. Na época, Ulrike ainda não havia se separado de seus filhos para se juntar a RAF: “É para você... No caso de você interpretar Ulrike Meinhof algum dia”, disse. O tal dia chegou. E o inusitado presente passou a carregar em si um dispositivo de premonição.

– A partir daí, fiquei fascinada com o pensamento dela. Tudo naquela época ressoava com tratamento político. O que hoje em dia é cada vez mais raro. Ulrike era como um peixe de águas profundas, mas a água servia como elemento vital e como um enorme peso – compara. – Ela faz parte de uma geração na qual eu sempre admirei o radicalismo e a dor. Algo que eu nunca pude compreender e muito menos fazer parte. Ao interpretá-la, pude sentir na pele o sentimento de exclusão. Assim, desmistifiquei a vontade de ter vivido aquele tempo. Mergulhei fundo para entender suas raízes e fugir dos clichês.

Para vestir-se sob a pele da líder revolucionária, Martina debruçou sobre livros e escritos autobiográficos, se pôs a escutar as gravações de programas de rádios, para estudar sua voz; assistiu a documentários sobre a época e foi ao cemitério de Berlim, onde o corpo de Ulrike fora enterrado. Uma jornalista que abandona a profissão para se integrar a uma célula terrorista (RAF), uma revolucionária que deixa de lado o marido e os filhos para seguir seus ideais e, por fim, uma mulher que relega a último plano sua própria existência ante o suicídio. Se o filme deixa em aberto a morte de Ulrike, Martina conhece muito bem o terreno crispado onde deposita sua arte. Em A vida dos outros, ela interpreta Christa-Maria, que se joga na frente de um caminhão; em Atomised, ela deu vida e morte a Christiane, que arremessa o próprio corpo do alto de uma torre.

– Em A vida dos outros, é mais um acidente desejável que um suicídio. Ela quer se livrar da culpa e da vergonha. Já Christiane toma uma decisão muito consciente, após um longo processo de reflexão. Eu não estou certa de que Ulrike tirou sua própria vida. Vejo-a como uma mulher que lutou até o fim. E não consigo imaginar uma razão para ela desejar se matar. Para retratar uma pessoa que está no limite de se retirar da vida, tento imaginar o longo e profundo caminho de rompimento com as relações mundanas, até que se chegue à esperança de se ver livre. Uma vida retirada à força deixa um rastro. E você precisa ir até essa zona específica da dor. O sofrimento se torna o seu chão, a partir de onde você vai se sustentar. E é um terreno sólido, afiado e verdadeiro.

2 comentários:

Marcelo Alves disse...

É uma ótima atriz. Em "A Vida dos Outros", excelente filme, ela está muito bem. Bela entrevista também. Abraço,
marcelo

Luiz Felipe Reis disse...

A vida dos outros é demais, realmente. Guardei o fax da Martina batido à máquina! rs Mas confesso que não gostei tanto assim do Baader Meinhof. Algo de superficial na estética pop, além de atuações bem fracas de alguns coadjuvantes... Além de ser longo! Mas é uma puta história e vale ser vista. Abraços!