NOTAS SOLTAS E RUÍDOS ESCRITOS

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Paraphernalia finaliza álbum de estreia, produzido por Kassin

Quando pipoca o anúncio de um novo supergrupo, a lembrança recente – maltratada por empreitadas similares de alguns ícones da música, em especial do rock – causa arrepios. Mas neste caso o assunto e a sonoridade navegam em frequências bem distintas, no que se refere à originalidade. Formado em 2001 pelo baixista Alberto Continentino e o guitarrista Bernardo Bosisio, o Paraphernalia é um combo instrumental que reúne os mais badalados e requisitados músicos da cena atual. Ao lado dos dois primeiros, nomes como Donatinho (teclados), Felipe Pinaud (Flauta), Marlom Sette (trombone), Leandro Joaquim (trompete), Renato Massa (bateria) e Joca Perpignan (percussão) acostumaram-se, nos últimos anos, a carimbar fichas técnicas de trabalhos assinados por gente graúda, como Caetano Veloso, João Donato, Marcos Valle, Orquestra Imperial, entre outros. Se, isolados, os oito integrantes constituem uma nova geração de músicos, compositores, arranjadores e produtores, juntos, formatam o conjunto de feras que sobe, às quartas, ao palco da Pista 3 para apresentar as canções que recheiam seu álbum de estreia – previsto para ser lançado até abril.

– Já temos cinco anos de banda com essa formação e estamos tocando há quase um ano direto, mas até agora pouca gente no meio e na imprensa se deu conta – revela Donatinho. – Tudo começou com uma reunião de amigos. Tocávamos no Cine Buraco, em Laranjeiras, que era um cineclube bem underground, cheio de filmes B... Transformávamos o lugar em pista de dança e lotava só no boca a boca. É o mesmo que acontece agora. Não temos muita divulgação, mas as pessoas comparecem cada vez mais em peso.

O sucesso das apresentações gerou a expectativa quanto ao primeiro álbum do grupo. Gravado em dezembro, o debute conta com 11 faixas inéditas – pinçadas entre mais de 30 composições assinadas pela banda. Produzido por Kassin e masterizado por Ricardo Garcia, o disco é um cruzamento de sonoridades que remetem ao movimento da blaxploitation, calcada no funk e na soul music, mas com sólidas bases na tradição musical afrobrasileira.

– Poderíamos ter produzido o disco, mas o Kassin é um olhar de fora, não é viciado. Alguém que admiramos o trabalho, a sensibilidade e o bom gosto – elogia o tecladista.

Com melodias sinuosas e dinâmicas rítmicas pulsantes colocam o povo para dançar. E mostram que o termo instrumental pode ser muito mais abrangente do que se imagina.

– Não somos um grupo instrumental como esses caras que tocam jazz de uma forma em que tudo parece uma desculpa para solar. Isso é música para músicos, cheia de convenções... É algo que eu, particularmente, detesto. Eu gosto de melodias – diz.

Definido por Donatinho como instrumental pop e dançante, a trupe interpreta um repertório 100% autoral que lembra as trilhas sonoras cinematográficas e das séries de TV policiais criadas entre os anos 60 e 80. Imagens adornadas pelo talento de ícones como Quincy Jones, Curtis Mayfield, entre outros, que serviram para longas como Shaft, Super fly e Coffy. Do jazz ao rock, do experimentalismo aos ritmos africanos e latinos, teclados analógicos, antigos pianos elétricos e guitarras psicodélicas convivem também com levadas brasileiras.

-Todos nós gostamos desses filmes da blaxploitation , dos filmes do Bruce Lee... É a temática negra e de ação com muito funk e soul – define o flautista Felipe Pinaud. – Passeamos pelo samba, pelo afrobeat, sempre com muito groove. Mas não é um som americano, é brasileiro. E isso fica claro a partir das células percussivas.

No show de logo mais, que ao longo dos últimos nove meses contou com convidados ilustres como João Donato, Hyldon e Carlos Dafé, o grupo também passeia por versões para músicas de Jorge Ben Jor, Astor Piazzola, Lipps Inc., Manu Dibango, Bar Kays e Tim Maia. Empolgado com o trabalho, Donatinho explica que o grupo chegou a pensar em participações especiais para o disco, mas, no fim, optaram pelas vozes de seus instrumentos.

– Um disco serve para registrar momentos. Chegamos a pensar em participações, mas é um disco nosso, com uma carga autoral, e decidimos privilegiar o nosso som.

Metallica, The Virgins e João Donato

Gravado ao longo de três noites consecutivas na Cidade do México, o novo DVD do Metallica conta com o fervor de um público de mais de 50 mil pessoas para dar sentido a um subtítulo um tanto quanto genérico – e até certo ponto cafona: orgulho, paixão e glória. No entanto, ao longo de quase duas horas e meia de performance, nenhum dos termos fica sem resposta à altura. São tais palavras que ventilam a cabeça após um banho de riffs pesados e baterias devastadoras comandados pelo quarteto de quarentões, recém-ingressados no Rock and Roll Hall of Fame. Entre as 19 canções que recheiam o trabalho, um documentário registra, além dos bastidores do show, com ensaios da banda e detalhes sobre a produção, a carga de energia expulsa pelos fãs mexicanos, todos vestidos de preto, segurando guitarras, livros, discos e uma infinidade de souvenires.

O registro é o ponto alto da World magnetic tour, mega turnê que traz o grupo pela quarta vez ao Brasil neste fim de semana – hiato de mais de uma década desde a The garage remains the same tour (1999). Para os fanáticos cariocas, que ficam sem o show da banda no Rio, o DVD serve como alento – ou como um belo aperitivo para pegar a primeira conexão rumo a São Paulo. Ao vivo, a vitalidade da banda e do público é resultado do bem sucedido Death magnetic, lançado em 2008, em que a banda resgata a sonoridade mais crua de álbuns como Master of puppets e ...And justice for all. Não à toa, recebem o público com Creeping death, seguida pela devastadora For whom the bell tolls e Ride the Lightning – lançadas em 1984. Daí, partem para Disposable heroes, de Master of puppets (1986) e One, de ...And justice for all (1988) até chegar em Broken, beat & scared, do mais recente disco, Death magnetic (2008).

A sequência evidencia o quanto segue ativa a química entre os dois integrantes originais, James Hetfield e o batera Lars Ulrich. Muito mais que máquinas propensas a reciclar a combustão gerada em São Francisco, no início dos anos 80, a dupla, apesar dos cabelos e barbas brancas, continua intensa, ao lado de Kirk Hammett e Robert Trujillo. “Não somos máquinas. Mudamos o setlist todas as noites e não tocamos as músicas como estão nos discos porque é assim que funcionamos melhor. Queremos voltar ao que era feito há alguns anos. Sinto que falta humanidade e ainda somos quatro caras que curtem tocar juntos. E isso ajuda tudo a se tornar mais real”, diz Ulrich. Passeando por clássicos como The memorie remains e The unforgiven, assim como pela furiosa Sick & destroy, que fecha o show, ele mostra o quanto está certo.


For whom the bell tolls:




The Virgins - The virgins: Donald Cumming assinou contrato com a Atlantic antes mesmo de ter uma banda. Carregava na mente noites entorpecidas e nas mãos um punhado de potenciais hits. Neles, presta tributo a ícones do art rock, como Talking Heads, e do underground nova-iorquino, como o Velvet Underground. Une a crueza do rock de garagem a levadas funkeadas, o que faz de Rich girls sucesso em qualquer pista de dança. Mas carece de originalidade.

João Donato Trio - Sambolero: Com a tropicalidade de Amazonas, João Dontao introduz este Sambolero, acompanhado pelo elegante baixo de Luiz Alves e a preciosa dinâmica rítmica de Robertinho Silva. O repertório traz parcerias com Paulo Sérgio Valle (Quem diz que sabe), Caetano Veloso (Surpresa e A rã), Gilberto Gil (Bananeira e Lugar comum), entre diversas outras em que seu piano empresta cor e contornos sofisticados. A boa surpresa é a participação de Zeca Pagodinho, em Sambou, sambou.


sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Tropa de elite 2 - Operação secreta

A claridade que devassa as janelas na deslumbrante panorâmica do 26º andar do Marina Palace Hotel, no Leblon, é o oposto da perspectiva adotada pela produção de Tropa de elite 2. As palavras de ordem e o “conceito de estratégia” adotado por todos é um tanto quanto obscuro. Sai a ação, entra o suspense: “Ninguém irá falar ou responder perguntas sobre a história da trama ou sobre os personagens”, alerta, prontamente, a assessoria, antes de iniciar a entrevista. Enfileirados, o diretor José Padilha, o produtor Marcos Prado e parte do elenco, incluindo Wagner Moura, André Ramiro e Maria Ribeiro, conduzem uma sessão misteriosa de perguntas e respostas, boa parte das vezes, evasivas. Clima de segurança máxima e informações confidenciais servem como tentativa de blindagem. O rito não é à toa. Vale lembrar que, em 2007, antes mesmo da estreia de Tropa de elite, estimava-se que cerca de 11 milhões de brasileiros haviam assistido à versão inacabada do longa, furtada durante o processo de legendagem e distribuída indiscriminadamente em DVDs piratas e via internet.

– Agora vamos montar o filme dentro do caveirão – brinca Padilha.

– Teremos um bunker, com chaves próprias – diz Marcos Prado.

E o diretor arremata:

– Tudo que acontecer com o filme na pós-produção será realizado internamente, sem terceirização. Temos até um orçamento para a segurança, dentro e fora do set de filmagem. Agora, depois da exibição, o que eu posso fazer?

Ganhador do Urso de Ouro do Festival de Berlim, em 2008, e um dos maiores sucessos de público do cinema nacional, a mais nova franquia do mercado ainda não tem suas contas fechadas para a segunda versão. Entre as três possibilidades de financiamento a partir de leis de incentivo, o produtor Marcos Prado se esforça para captar os R$ 3 milhões possíveis dentro da Lei do Audiovisual, a partir da injeção de recursos privados; e mais R$ 1 milhão pela Lei Rouanet. Responsável pela distribuição do longa, através da Zazen, o produtor não poderá contar com a cota de até R$ 3 milhões vertida para a distribuição estrangeira. Padilha diz que “é sempre uma luta”. Já Prado, perguntado sobre um suposto aporte financeiro injetado pela Indústria de Material Bélico do Brasil (Imbel), fabricante de fuzis usados pela polícia, nega e diz que a companhia é apenas uma parceira.

– A Imbel nos apoia com os produtos, as armas, os fuzis que eles produzem para a polícia. Imagina você alugar esse equipamento para um filme... Seria caríssimo. Poupamos dinheiro, mas eles não são nossos patrocinadores. É uma troca, porque as armas da Imbel serão mostradas na tela.

Mesmo com a pirataria, 2,4 milhões de espectadores assistiram à primeira saga do capitão Nascimento: o dilema de levar adiante suas responsabilidades à frente do Bope (Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar) e o desejo de ficar mais próximo da mulher grávida. Rodado a partir da próxima segunda-feira, em locações no Rio, entre favelas ocupadas pelas UPPs do governo do estado e em estúdio, o novo roteiro apresenta ao capitão um novo inimigo: as milícias. Taxado de fascista, acusado de glamourizar a violência e de tratar o truculento capitão do Bope como um herói, o longa de 2007 colheu polêmicas impressões, surgidas nas ruas e nos corredores da imprensa. Nenhuma delas, porém, foi o bastante para preocupar o diretor enquanto construía o roteiro da sequência.

– “Faz o seu que eu faço o meu” é uma expressão usada pelos policiais do Rio. Eu vou fazer o meu filme – diz o diretor. – Não tenho controle sobre como as pessoas irão reagir e não me preocupo com isso. Contarei a história sem me autopoliciar, imaginando o que as pessoas vão achar. Eu deixo nas mãos do público.

Entre o crime e a família

Ao bater de frente com o poder paralelo dos milicianos, Nascimento administra o desafio de pacificar uma cidade ocupada pelo crime e as constantes preocupações com o filho adolescente. São as transformações pessoais e os conflitos internos vividos pelo personagem de Wagner Moura as maiores mudanças do novo roteiro, elaborado por Padilha ao lado de Bráulio Mantovani.

– A grande diferença é que agora existe um arco dramático para contar a história do personagem. No primeiro, ele permanecia, do início ao fim, como o capitão do Bope. O nosso desafio era criar uma dramaturgia que acompanhasse as mudanças de comportamento. Como aconteceu com o Matias... No primeiro, ele começa cursando direito numa faculdade e termina como integrante do Bope. Agora a história é pessoal e não sei que tipo de polêmica pode gerar.
Rumores indicam que o capitão Nascimento deixa o Bope para trabalhar na Secretaria de Segurança Pública...

– É tão difícil para mim quanto para vocês (jornalistas), que estão aqui para perguntar, e a gente para não dizer. O personagem passa por uma grande mudança, a qual eu não posso falar... Isso faz com que eu me sinta omisso, até – comenta Wagner Moura. – Posso dizer que no primeiro ele era muito pouco consciente do que fazia. Agora ele toma noção do que faz. Ele está mais velho. E policiais assim começam a refletir se o que eles fazem é útil e eficaz para a sociedade. Pensam na família, em como explicar aos filhos a profissão. É uma realidade dura, que será mais abordadas. Agora eu também sou pai e tenho munição emocional adequada para isso.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Vik Muniz - Homem de imagem

No amplo estúdio-ateliê que o fotógrafo e artista plástico Vik Muniz habita, no Brooklyn, em Nova York, o retrato é de uma grande e colorida bagunça. Do chão ao teto, livros, luminárias, brinquedos, fragmentos de novas e antigas peças, além de objetos de diversas formas, cores e funções povoam o ambiente. Em meio a isso tudo, minhocas se arrastam em volta de uma caixa de telefonia jogada no chão. Seria o resultado de experimentos para uma nova série? “Olha, há quatro semanas estou com problemas nos telefones, mas ninguém conserta. Está tudo uma bagunça”, diz. Há alguns dias, sofreu as agruras do isolamento digital e ficou sete semanas sem internet, por culpa “desse monopólio da Verizon criado por um conchavo do governo Bush”, reclama o paulistano de 47 anos, que há 25 deixou a São Paulo natal para fincar raízes na esmagadora Big Apple. “As pessoas acham que apagão é só no Brasil. Idealizam e acham que Nova York é chique... Chique é o caramba. Aqui não é mole, não... É uma cidade muito dura e difícil, isso sim. Vai lá fora para você ver o frio que está. Não tem nada de bonitinho... É o lugar em que você come na mesa de trabalho, não tem a boemia e o frescor do Rio. É como Tom Jobim dizia, é bom, mas é ruim”.

Filho de um garçom com uma telefonista, aos 22 anos, após um acidente, em que tentou apartar uma briga e foi atingido por um tiro na perna, ele aceitou uma compensação em dinheiro, oferecida pelo autor do disparo, para financiar uma viagem aos EUA. Arrumou as malas para aprender inglês e ganhar a vida. Trabalhou como garçom, atendente de posto de gasolina e muitas outras funções nada requintadas para saldar as contas no fim do mês e alimentar, nas espremidas horas vagas, suas primeiras criações. “Eu não tinha muita escolha, não. Não frequentei escola de arte. Não que eu não quisesse ver meu trabalho florescer num ambiente intelectual, por uma atitude esnobe qualquer. Mas foi assim que aconteceu. Cresci dando murro em ponta de faca”, revela.


Influenciado pela pop art, mas principalmente pelos impulsos da mais intensa megalópole moderna, só mesmo após 15 anos de carreira deixou de lado as esculturas e desenhos que marcam seus primeiros traços para uma imersão fotográfica. As fotos, nateriormente encaradas como inimigas das dimensões e molduras de suas peças, tornaram-se centrais para a consagração de sua linguagem artística. Nas duas décadas seguintes, serviu-se de inúmeras lentes como inspiração para suas mais reconhecidas obras. “Quando eu comecei, não tinha nem como pagar o aluguel. Eu dava tiro para tudo o que é lado. E produzia um número extraordinário de tentativas, coisas muito dispersas. No início, sem disponibilidade econômica e trancado no estúdio, é que você descobre uma linguagem”, analisa.

A partir de agora, a evolução de sua prolífica produção pode ser acompanhada em minúcias com o lançamento do primeiro catálogo raisonné dedicado a um artista contemporâneo brasileiro. Organizado por Pedro Corrêa do Lago, as 710 páginas de Vik Muniz, Obra Completa 1987-2009, com noite de autógrafos marcada para a próxima quarta, na Travessa do Leblon, ilustram o acervo integral do artista, dividida em 57 séries. Brasileiro de maior projeção no mercado internacional das artes, com obras vinculadas ao Metropolitan Museum of Art, Guggenheim e MoMa, Vik, de apenas 47 anos, confessa-se surpreso com esse extenso levantamento iconográfico – honraria dedicada, no país, a nomes como Cândido Portinari (1903-1962) e Tarsila do Amaral (1886-1973) apenas postumamente. “Todo artista que tem obra o bastante para preencher um livro geralmente não começa pensando nisso. Se você fica imaginando o futuro não deixa espaço para criar no presente. Acho que é oportuno. Não me lembrava de muita coisa. Se eu fosse esperar mais 20 anos diversas obras ficariam perdidas pelo caminho”.

Tanto a recente exposição retrospectiva apresentada este ano no MAM-RJ e no MASP, quanto a profusão de imagens e detalhamento do catálogo sinalizam um artista em constante experimentação. “O que eu faço vem de algo conceitual, tem um desenho, uma exploração, uma capacidade de criar curto-circuitos”. A afirmação conecta-se ao ritmo motorizado e elétrico de seu incessante processo criativo. No catálogo, 1.600 imagens ilustram cronologicamente detalhes das cerca de 1.200 obras criadas pelo artista paulista desde o início de sua carreira, há 22 anos. Na ponta do lápis, 55 peças ao ano... “Não dá para fazer conta, não. Varia muito”. Escala de produção que afina-se a lapidar frase de Warhol, ícone que subverteu a banalidade das latas de sopa Campbell em obra de arte: “A razão por que estou pintando assim é porque quero ser uma máquina”. “Trabalhei muito nos meus primeiros 10 anos. Queria mostrar os meus interesses, quem eu era e toda a minha capacidade física”. Diz que o retrato do artista quando jovem ilumina uma necessidade de “mostrar que é bom”. Para isso trancava-se por meses a fio, solitário, no estúdio. “No início tudo é muito autoral. Com o tempo isso passa. Hoje trabalho com assistentes, por que gosto de compartilhar um processo criativo mais aberto”.

A partir de uma obsessiva pesquisa, adotou materiais inusitados como chocolate, caviar, açúcar, diamantes, lixo, brinquedos e muitos outros para recriar fotografias próprias além de imagens emblemáticas captadas por outras lentes. Assim como Andy Warhol, retrabalhou em cores e formas personalidades icônicas da moda, da política, do cinema, da música e de outras esferas da sociedade contemporânea, todas previamente expostas pela mídia e deglutidas em massa. Em uma de suas mais conhecidas séries, reconstrói um famoso retrato de Jackson Pollock com chocolate, desenha os contornos de Mona Lisa com pasta de amendoim e geléia e molda o rosto de divas do cinema em diamante e sangue, como Marilyn Monroe, recentemente arrematada por U$ 300 mil. “Proponho uma reorganização da forma como absorvemos as imagens. Uma negociação entre duas imagens ao mesmo tempo. Separo a versão e cristalizada e crio obstáculos. Trabalho como um mecânico, uma gramática para engrandecer as imagens por dentro”.

Nestas imagens, faz o público readquirir consciência sobre mitos expostas à exaustão. É como se olhássemos pela primeira vez símbolos familiares, mas desconectados de seu contexto original. Confessadamente desvinculado das tradições artísticas nacionais, firma sua postura como cidadão do mundo – pop. “O pop faz parte da necessidade de vivermos o nosso presente. Tenho que estar imerso na mídia atual. Somos todos cronistas e temos o compromisso de revelar o que está acontecendo no mundo. No século 19, o cara levava um cavalete para o campo e retratava a natureza. Eu faço a mesma coisa, mas com uma grande complexidade holográfica, uma quantidade enorme de referências que se cruzam, através de uma imaginação contaminada pelo aparato midiático, por experiências diretas. Chegamos a um ponto e quem a nossa vida se tornou menor do que a vida que chega pelo bombardeio das informações. Sou bastante claro quanto a isso, e tenho uma visão óbvia sobre as coisas que faço”.

Mas o que faz Vik Muniz não se tornar apenas mera repetição das linguagens já reconhecidas pelo aval de críticos e dos curadores que guiam aos milionários corredores das galerias de arte? E no plano pessoal, o que o impede de tornar-se uma mera reprodução de si, o que poderia levá-lo a cair na banalidade de uma aceitação superficial, de um oba-oba? A necessidade de reinvenção, ele diz que é constante. Mas não representa um fardo. “Com o tempo, há uma acomodação em determinadas formas. Diversas aplicações que eu criei hoje são usadas largamente. O artista passa metade da sua carreira naquilo que é mais difícil, o desenvolvimento de uma linguagem própria. E depois vem a necessidade de subverter e provar que é mais do que aquilo. O que faço agora é tentar expandir algumas das minhas aplicações”, conta.

2009 marca uma década desde que seu trabalho passou a obter reconhecimento internacional. Além do novo catálogo e da recente exposição, “feita com o objetivo de atingir o maior número de pessoa possível”, o artista conta com o documentário Lixo extraordinário em competição no Festival de Sundance, tem trabalhado em inúmeros projetos vinculados ao terceiro setor financiados por grandes empresas, corre o mundo realizando palestras e já planeja a realização de uma conferência sediada no Rio sobre arte pública, para o ano que vem. “Tão grande e ambiciosa quanto a minha obra precisam ser os mecanismos de comunicação e veiculação. A arte contemporânea vive uma defasagem de público. Quero trazer as pessoas de volta às galerias. Esta conferência será no Rio porque a maior parte dos artistas mora aqui. Temos que agrupar toda essa energia criativa, que ainda é muito dispersa, e fazer algo pela cidade”.

Vik Muniz não faz análise. E acha que talvez seja este o segredo para tanta produtividade e inquietação: “Solto todos os meus cachorros na minha arte. Nunca me ocorreu essa necessidade de autoconhecimento”. Não quer se conhecer, mas, sim, se reinventar. Mesmo que por um viés narcísico: “Quero criar um cara legal. Alguém que eu possa dormir à noite e ficar admirado, satisfeito com o que eu fiz”. Para isso, trabalha em parceria com ONGs, acumula projetos e amizades com representantes da associação de catadores de lixo, entre muitas outras atribuições. “Me contagia poder fazer tudo isso através da arte. Mas o que me preocupa e motiva hoje em dia não é tanto a cultura, mas o pensamneto relacionado à educação. Estou muito envolvido com o terceiro setor. Isso dá vida para o meu trabalho”. Aponta como a grande vantagem de ser um artista mundial, a oportunidade de transitar entre as mais carentes áreas do Rio às mais altas rodas. “Num dia estou em Duque de Caxias, em meio ao lixo de uma das áreas mais pobres... No outro, estou em Londres almoçando com um desses oligarcas russos e contando a eles sobre a vida e as pessoas do Jardim Gramacho. Vejo, por exemplo, que o sonho da Zona Sul, que é a qualidade de vida mais invejável que eu conheço, tem um preço grande do outro lado da cidade. E quero poder viver e me relacionar de maneira intensa e mais completa possível com o mundo em que vivo”

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Devendra Banhart - Concisão a favor de criativa alquimia

Aos 20 anos, o texano Devendra Banhart se lançava a bordo de um álbum caseiro, tão despretensioso quanto o seu estilo neo-hippie, The Charles C. Leary – gravado em quatro canais e produzido pelo próprio. A partir de então, ou, melhor, desde que Rejoicing in the hands (2004) tornou-se unanimidade pela crítica, o hipster criado entre a Venezuela e as praias da Califórnia passou a emoldurar, com seus penduricalhos e roupas multicoloridas, trabalhos ensolarados, mas que viajavam numa linhagem psicodélica um tanto quanto dispersiva.

Dono de canções mais contemplativas que excitantes, ou diretas, Banhart é cantor de recursos limitados, mas de ampla criatividade autoral. Dificilmente encontra-se em seus álbuns hits que seguem à risca fórmulas radiofônicas atuais. Produz e compõe quase artesanalmente melodias que flutuam por formas difusas e diversos andamentos, sem, necessariamente, retornar ao ponto de onde partiram ou eleger uma parte a ser afixada na mente do ouvinte como refrão. O despojamento é a marca registrada de tudo que envolve o seu trabalho, no que há de bom e ruim nesta displicente faceta – vide a desleixada performance do músico numa das últimas edições do finado TIM Festival.

Se em seus primeiros álbuns deixava o ouvinte perdido em fileiras de mais de 20 canções, que escorriam de forma cansativa, em What will we be ele tenta o caminho da concisão.São 14 novas faixas que levam a tinta sempre fresca de seu folk tropical, cruzado por referências díspares mas que se casam numa alquimia original e instigante. Evoca distorções setentistas e dinâmica zeppelianas em Rats, surfa por ondas solares e sinuosas em Can’t help but smiling, e, vez por outra, se deixa levar por chacoalhadas dançantes, como em Angelika e Brindo, embebida por ritmos latinos e caribenhos. No fim da contas, Banhart rescende ao pop latino do francês Manu Chao e ao experimentalismo, mesmo que low profile, de Os Mutantes, mas com um estilo próprio e multifacetado.

O time que o acompanha na cristalina sonoridade de What will we be é o mesmo do álbum anterior, o elogiado Smokey rolls down thunder canyon. Coproduzido por Paul Butler, Banhart é escoltado pelo também produtor Noah Georgeson (Little Joy e Joanna Newsom), Greg Rogove (bateria), Luckey Remington (baixo) e Rodrigo Amarante, na guitarra. Navegando por arranjos inventivos, recheados por instrumentos de sopro, piano, elementos acústicos, percussões diversas e belos arranjos vocais, o álbum, gravado numa primavera, no Norte de São Francisco, é um passeio nostálgico que valoriza frágeis melodias e o cantar, em sussurros, que ecoa da pequena voz do músico. Baladas tristes como First song for B, Goin’back e Meet me at lookout point são pontos altos. E dividem espaço com outros destaques, como a grooveada Baby e a dançante e luxuriosa 16th & Valencia, Roxy music, entre muitas outras surpresas.

Aliás, se há alguma alcunha que, definitivamente, não cabe em seu vasto repertório é a previsibilidade. Curioso, trata o estúdio de gravação como um laboratório de experimentações sonoras. Passeia como um cigano, sem residência fixa por gênero musical.Do início ao fim, deixa claro que acompanha as mais peculiares necessidades de cada uma de suas canções. As trata como peças únicas. E se fora do estúdio é o colorido e enigmático músico, e também artista plástico, dentro dele mostra que sua criação aparentemente casual é fruto de um produtor detalhista, nada relapso, atento aos pormenores de suas canções.

Baby e 16th & Valencia, Roxy music. Provando que ao vivo não é muito a dele:

domingo, 17 de janeiro de 2010

A banda Tono, de Bem Gil, toca no Posto 8 e no Humaitá Pra Peixe

Em 2007, o músico Rafael Rocha havia acumulado uma série de canções inéditas na gaveta. Pegou o telefone e discou para o amigo Bem Gil, filho de Gilberto Gil. Animado com a proposta de testar algumas ideias, o guitarrista reuniu alguns equipamentos, pedais e amplificadores, e abriu as portas do sítio da família, em Araras. Espalhou as tralhas na sala e na varanda para registrar a base de três canções. Empolgados, as três tornaram-se 10, o que era bagunça descompromissada tornou-se banda e o que era demo formou-se álbum, Tono auge, gravado e lançado em produção independente.

– Eu nunca havia tido experiência em bandas, então o pessoal disse que fazer demo não era uma boa. Decidimos fazer o encarte e transformamos aquele material no nosso primeiro CD – conta Gil.

Sem perder o humor e o despojamento, a banda se apresenta hoje no Posto 8 – e nas próximas duas semanas – e, nesta sexta-feira, assume a tenda do Circo Voador como uma das atrações do festival Humaitá Pra Peixe. Tanto no palco como no disco, assinam um cruzamento sonoro rico em texturas e brasilidade, que flerta com o samba, o rap, o funk, o reggae e o dub.

– É bem difícil definir o que tocamos. É música brasileira, com uma série de misturas. No primeiro disco, o Rafa, por exemplo, estava trabalhando com um amigo que tinha um bonde de funk, e a gente acabou gravando Loramorena, que é um funkão.

Outra excêntrica faixa do álbum, Você magoou soa como uma sátira ao rap romântico tecido por grupos como Sampa Crew e outros congêneres. Com uma letra banal ( “Amor, quero te encontrar novamente / Lembra daquela noite? / Foi tudo de repente / Você entrou na minha vida cheia de paixão / E eu abri a porta, claro, do meu coração”) a faixa ganhou um refrão que a fez crescer nas apresentações ao vivo, onde é uma das mais comentadas.

– Eram muitas experiências. Acho que o segundo disco não vai ter essa pegada. A partir dele veremos o quanto estávamos testando as coisas no primeiro – revela Gil.

Gravado em 2008, Tono auge foi o cartão de visitas para a divulgação e realização dos primeiros shows do grupo. Após a estreia nos palcos, no Cine Glória, em menos de um ano fizeram cinco apresentações no Cinemateque – sempre com casa cheia – e mais três aparições no Circo Voador, uma delas como a banda de abertura do novo show de Arnaldo Antunes, Iê iê iê. Para o novo show, o primeiro trabalho responde apenas por menos da metade das canções interpretadas. As outras ficam a cargo das mais recentes composições do grupo, que inclui no repertório uma releitura para Nega música, de Itamar Assumpção.

– É realmente uma apropriação artística, demos uma roupagem nova aos vocais e acho que ficou a nossa cara – diz Gil. – Até as músicas do primeiro disco ganharam um novo formato com os shows. A banda se tornou realidade, então o que tocamos hoje é bastante diferente. Estamos no meio do processo e é bom porque o público pode entender o nosso caminho.

Bem Gil e Rafael Rocha conheceram-se em 2002, em meio às filmagens para o longa 1972, dirigido por José Emílio Rondeau e Ana Maria Bahiana. Em cena, os rapazes interpretavam jovens amigos e músicos. Da ficção para a realidade diferença alguma pode ser notada. À época, Gil, com 17 anos, preparava-se para o vestibular, enquanto Rocha já tocava em bandas cults do cenário carioca, como Brasov e Binario. O primeiro havia despertado seu interesse para a música apenas um ano antes. E diz que o encontro com Rocha e o papel interpretado no longa, um guitarrista, mudaram sua trajetória.

– Eu despertei para a música nessa época. Por causa do personagem que eu comecei a me interessar por guitarra, até então ficava só no violão – conta. – Mas não houve um desejo de montar uma banda. Foi algo natural, porque logo nos tornamos amigos. O Rafa queria montar um projeto e eu estava viajando com o meu pai, já havia tocado com a Preta... As pessoas esperavam um trabalho dele e tinham curiosidade para ouvir o que eu vinha fazendo.

Aos poucos, com a entrada de Bruno di Lullo, baixista do grupo audiovisual Binario, a bailarina multimídia Ana Cláudia Lomelino (voz) e Leandro Floresta (flauta, teclado e violões), além de Jorgito e Garnizé – ambos fora da banda, atualmente – o Tono passou a realizar alguns ensaios abertos. Num deles, a banda, ainda com formação indefinida, chegou a colocar em cena quatro vozes femininas.

– Numas dessas apresentações apenas eu não estava lá. Estava muito cheio e eu não entrei – recorda a vocalista Ana, que interpreta uma das mais doces faixas do álbum, Quando você dança. – A banda já passou por diversas formações. Eu conheci o Rafael em 2004, e numa roda de música entre amigos ele gostou da minha voz. Eu nunca tinha cantado, mas ele começou a insistir naquilo. Até que em 2008 eu comecei a me acostumar com esse negócio de cantar.

Empenhado na fase de pré-produção para a gravação do segundo disco, Tono escuro, com produção de Alberto Continentino, Gil acena com mudanças no panorama autoral do quinteto, que passa a dividir os vocais e a assinatura de quase todas as faixas entre todos os integrantes. O que faz do trabalho um combo autoral de múltiplas e criativas novas vozes.

– Terão faixas minhas e de todos, inclusive da Ana. É algo muito aberto e as pessoas acham estranho até o fato de o Rafael ser baterista e cantar. Mas é assim que nós somos.

O que é Tono?




Quando você dança:


Não consigo viver sem o teu carinho:


Para quem ama e odeia: Gessinger chega aos 25 anos de carreira com novo trabalho e biografia

Com a marca de 25 anos de carreira surge o peso dos números a mais apontados na carteira de identidade. Aos 46 anos, Humberto Gessinger não imagina o que poderá fazer no próximo quarto de século, mas encara bem o envelhecimento. Entre bandas desfeitas e carreiras solos, ele encontra numa dupla seu mais novo impulso e fonte de inspiração: “Componho menos do que antes, mas com muito mais prazer”, diz. Sem pressa ou pressão, leva a vida num ritmo menos acelerado, mas não menos intenso em relação ao ímpeto de compor. Ex-estudante de arquitetura, Gessinger contabilizou, na última segunda-feira, exatos 25 anos desde o primeiro show dos Engenheiros do Hawaii no pátio da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em Porto Alegre. Para celebrar a data, ele acaba de lançar uma biografia e não descarta episódicas apresentações da antiga banda ao longo de 2010. Amado (e igualmente odiado) por muitos, autor de hits como O papa é pop e Infinita highway ainda se mostra fascinado por formas e contornos: “Minha chave de entrada no mundo é a composição. E o que me estimula é a invenção da novas formatos. Faço melodias, escrevo e depois descubro os canais para dar vazão”. Como um arquiteto musical, mostra prazer em detalhar cada milímetro do novo formato que inventa para moldar sua nova empreitada: a dupla Pouca Vogal, formada com o guitarrista Duca Leindecker .

– Estou adorando envelhecer. Acho que capricorniano gosta do tempo. Parece que eu estava preparado, sempre gostei de calos e de rugas no rosto – garante Gessinger. – Com o tempo, aprendi a dizer não. A entender que não devo fazer o máximo, a usar melhor a minha voz. entender melhor que eu sou e o que eu escrevo.

Ele acaba de lançar uma biografia, Pra ser sincero, com 123 letras e uma análise acadêmica sobre a sua trajetória, assinada por Luís Augusto Fischer. Mas assegura que não se vê rompendo com a música em direção à ficção. Muito pelo contrário. Com Duca Leindecker (Cidadão Quem), lança e excursiona com o CD e DVD Pouca Vogal – Ao vivo em Porto Alegre. No trabalho, além das oito canções inéditas cunhadas em dupla, como Depois da curva, Além da máscara e O voo do besouro, emprestam novos caminhos a clássicos do Engenheiros do Hawaii, como A montanha, Até o fim e Toda forma de poder, assim como Girassóis, entre outras do Cidadão Quem.

– Conheço o Duca desde o início dos anos 80. Eu tenho 46 e ele 39. Era um moleque, o virtuoso da guitarra. Começou a tocar antes de mim e fazia coisas que eu nem imaginava. Com 13 anos ele já era da cena local. Era uma fase de transição na guitarra, com Van Halen e Stanley Jordan, aquela coisa virtuosística. É claro que ele evoluiu muito a partir dessa primeira impressão.

Entusiasmado com o novo projeto e com as novas canções, com o passar dos anos Gessinger revela compor cada vez menos. Mas admite que ainda se diverte com todo o processo.

– Não posso escrever o que já fiz. Você passa a se dar conta de como é louco tirar, do nada, no meio de um grupo de notas e de palavras, uma canção, que não existia cinco minutos antes – teoriza. – Eu gravei discos muito densos e com muita escrita no início. Hoje, só de olhar fico cansado. Fazia isso sem sentir. Agora, há menos pressa e pressão. Não existe a necessidade de se mostrar e se estabelecer.

No palco, a dupla se reveza em vários instrumentos. Gessinger toca violão, viola caipira, gaitas, piano e midi pedalboard (um teclado tocado com os pés), enquanto Leindecker fica com guitarra, violões com “afinações esquisitas” e bombo leguero – percussão de origem argentina. O cantor ainda tenta fazer com que o novo projeto seja entendido pelo público.

– É uma coisa meio de one man band, mas quero frisar que não é um acústico. Outro dia, escreveram que fazíamos um formato acústico manjado. Mas é o contrário disso – ressalta Gessinger, destacando a afinidade do duo: – Não é qualquer um que poderia trazer o resultado que eu queria. Precisava de uma simetria, que tivesse um histórico parecido. Tínhamos bandas na mesma época, do mesmo lugar, além do fato de nossas bandas estão hibernando. Em 2004, nos reencontramos e começamos a trabalhar.

Entre fãs e detratores

Acumulando fãs ardorosos na mesma medida dos detratores inflexíveis, Gessinger não se incomoda em despertar sentimentos tão antagônicos.

– Quanto mais profundo e pessoal, mais radicais são as reações. O que me surpreende são trabalhos mornos, que não geram respostas – comenta. – Tenho dificuldades em me comunicar fora do âmbito da canção e nunca achei que acrescentasse alguma coisa o diálogo com a crítica. Isso gerou um distanciamento, já que vivemos num Brasil cordial, da camaradagem.

Gessinger segue um fluxo próprio, autônomo. E nem a data comemorativa do Engenheiros do Hawaii serve como motivo para um desvio de rota – leia-se, o retorno da banda.

– Bandas são entidades abstratas. Quando é que começou? Quando eu comecei a fazer música, quando eu encontrei meus parceiros? É difícil saber, mas devemos fazer algumas apresentações pontuais, porque recebemos muito carinho dos fãs e agora pinta uma nova geração que não viveu os anos 80. É uma história cercada por afeto e não há porque ser radical e dizer que acabou. Mas não acho que seja o veículo ideal. Sinto que o Pouca Vogal é a plataforma adequada para as minhas canções, para o meu jeito de compor e escrever. Até onde eu posso prever, me sinto o cara do Pouca Vogal.


Tententender:

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Antonio Fagundes - palco livre para um voo solo

Do lado de fora do Shopping da Gávea, o sol a pino de uma sexta-feira de verão sugere ares de férias. Mas o clima não ultrapassa a bilheteria do Teatro dos Quatro. Dentro da sala escura desde o início de 2010, tudo o que Antonio Fagundes não teve até então foi descanso. Há 35 anos sem pisar na cidade para uma longa temporada teatral (o último espetáculo protagonizado por ele no Rio foi Sete minutos, de 2003, que ficou apenas um mês em cartaz), o ator acumulou as gravações da nova novela das 19h, Tempos modernos, e os ensaios para a estreia de Restos, que entra em cartaz de quinta a domingo após uma série de felizes coincidências.

– Trouxe ao Rio cerca de 15 de meus 45 espetáculos, mas foram passagens muito curtas. Por ser um monólogo, não preciso deslocar muita gente. E o fato de eu estar gravando a novela, de segunda a quarta, facilita a estadia – argumenta.

Sentado à beira do palco, Fagundes está à vontade, apesar do ar de cansaço. E não poderia ser diferente. Produzida pela Fagundes Produções Culturais, a montagem conta com o filho Bruno como assistente de produção e com a filha Diana no comando do making of que acompanhou todas as etapas da produção.

– Diana criou diversos filmetes sobre a peça, todos já no YouTube, enquanto o Bruno, que é ator, ajudou na produção – conta o pai, que vê com bons olhos a opção de Bruno em seguir seus passos. – Eu nunca forcei nada. Acho horrível o filho ser o que o pai quer. Dos quatro, ele é o único que quis. Digo que o ator já começa desempregado. Esta é a sua condição normal. O excepcional é quando ele trabalha, mas havendo paixão tudo resiste. Agora, ele vai entrar na dor e na delícia de ser ator no Brasil.

Com muito mais delícias que lamentos fincados na afiada memória, deixa escorrer o fascínio de um iniciante prestes a encarar seu primeiro solo.

– O teatro é como um salto mortal triplo sem rede. Estou diante de uma infinidade de possibilidades. E quem detém o controle é a plateia. Isso não existe em nenhum outro veículo – anima-se.

O ator acredita que o palco é o último resquício de humanidade, e onde há “a possibilidade de reunir um grupo grande de pessoas em torno de uma ideia”, teoriza. Para ele, o teatro é o único ambiente artístico de intensa comunicação ao vivo.

– Ao vivo não quer dizer que é agora, mas que algo está vivo. É a grande mágica. O ator erra e alça voos a partir da troca com o público. Teatro é basicamente comunicação. Eu não consigo entender uma peça que não queira comunicar. Se for assim, é melhor ler um livro sozinho.

Após cada uma das sessões, assim como fez em sua primeira temporada, no ano passado, em São Paulo, o ator organiza um bate-papo com o público: “Às vezes duram mais que a peça. As pessoas se envolvem e é maravilhoso”, vibra. Mas do alto de mais de 40 anos de carreira, o que Fagundes busca comunicar? Escrito pelo americano Neil Labute, o monólogo é o resultado final de três longos anos de pesquisa, em conjunto com o diretor Márcio Aurélio. Entre algumas tentativas, faltava o texto exato às medidas do ator, que, no palco, se apruma sob os cortes do terno assinado por Ricardo Almeida para viver as agruras de Edward Carr. Homem simples, pai devotado e dono de uma rentável empresa de carros restaurados, vê sua vida destruída pela morte do grande amor da sua vida, com quem se casou após tirá-la de outro relacionamento.

– Eu não conhecia o texto, apesar de já ter lido uma série de outros trabalhos do Labute. Ele tem um humor fantástico, que consegue fazer a plateia rir num velório, ou seja, numa peça que não é basicamente uma comédia – elogia. – Ele constrói uma dramaturgia rica, no sentido de que ele não defende os personagens. Pelo contrário, chega a ser bastante cruel. Seus personagens são seres humanos. Ele não os trata como heróis. E não protege o público dessa crueldade. Você não sai impune do teatro quando há um texto de Labute. E isso é o mínimo... Uma peça deve provocar, transformar e mexer com sua cabeça. O Neil faz você pensar.

Em clima de velório, o texto desenlaça temas como solidão, preconceito, afeto, paixão, sexo e uma análise profunda sobre o amor, que refletem as elaborações mentais do viúvo entre um cigarro aceso e outro. Sem revelar muito do que se passa em cena, Fagundes discute a natureza da vida e da morte e o que a sociedade aceita em nome do amor. Um texto de intensa carga dramática, mas pontuado pelo humor pungente de Labute.

– Trata-se de um homem colocado diante de uma perda irreparável, mas que celebra esse amor único até o fim. Até que Labute reserva seu golpe teatral, que faz todo mundo repensar nossos preconceitos.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Dona Ivone Lara - Canto de rainha

Fiel à linhagem que ergueu os pilares do canto de samba feminino, tão em voga na atualidade, Dona Ivone Lara descende da fina flor de ícones como Tia Ciata e Clementina de Jesus. Sua voz e dotes, como compositora afiada, a guiam ao panteão dos maiores personagens da música popular brasileira. Aos 87 anos, e cercada por seletíssimos convidados, a elegante dama do samba imperial finalmente recebe tratamento tão refinado quanto seu talento.

Em DVD ao vivo, Dona Ivone Lara - Canto de rainha, recheado com 20 faixas, Dona Ivone deita o seu canto e improvisos para ornamentar canções do seu vasto repertório autoral. Clássicos como Acre ditar, Alvorecer, Sonho meu, Nasci pra sonhar e cantar, Sorriso de criança e Candeeiro da vovó ilustram a o rico teor de sua mais constante e frutífera parceria, ao lado do compositor Délcio Carvalho, que, no show, exibe o seu belo e grave registro, com divisões peculiares e boa extensão vocal.

Primeira mulher a assinar um samba-enredo, Os cinco bailes da história do Rio, e a ingressar a ala de compositores de uma escola de samba carioca, o Império Serrano, Dona Ivone abre os trabalhos com a sua primeira criação, Tiê, composta aos 13 anos para homenagear um passarinho que “à época era como se fosse a minha boneca”, revela nos extras. A faixa, que recebe créditos dos baluartes Hélio dos Santos e Mestre Fuleiro, simboliza a porta de entrada da artista no mundo do samba: as rodas de partido alto do Morro da Serrinha, onde os parceiros improvisavam versos ao entorno dos refrões da cantora.

Contralto, desde pequena era escolhida para fazer o contracanto nas canções apresentadas em festas de colégio. A responsabilidade lhe serviu de base para os arranjos vocais que hoje são a sua marca pessoal mais admirada.Intuitivamente, sofistica suas interpretações com elaborados e sinuosos laralaiás, que emolduram introduções que se tornaram marcantes, como a de Mas quem disse que eu te esqueço, tecida em parceria com Hermínio Bello de Carvalho. Com direção geral de Túlio Feliciano e arranjos de Paulão 7 Cordas, Dona Ivone recebe, no belíssimo cenário assinado por Luiz Henrique Pinto, presenças ilustres, como a de Caetano Veloso, em Força da imaginação e Alguém me avisou – esta também com Gilberto Gil. Jorge Aragão reverencia a artista com Enredo do meu samba, enquanto Beth Carvalho entoa Sonho meu e os bambas Zeca Pagodinho e Arlindo Cruz e a Velha Guarda do Império Serrano dão ponto final luxuoso a esta rica e atemporal homenagem a uma das maiores compositoras do país.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Louise Brooks, Valentina e Simone Spoladore - Palco de musas

No discurso do diretor teatral Felipe Vidal, “a literatura não é mais a arte-mãe”. Nem o próprio teatro é elemento central. Como acenam suas últimas montagens, Purificado (2002), de Sarah Kane; Rock’n’roll (2009), de Tom Stoppard; O mundo maravilhoso de Dissocia (2007) e Sutura (2009), de Anthony Neilson; Vidal busca construções dramatúrgicas cruzadas por um emaranhado de referência à cultura pop – cinema, quadrinhos, videoclipes e música. Seu mais novo espetáculo não poderia deixar de levar tais ingredientes. Em Louise/Valentina, um dos destaques da grande série de estreias que marca, anualmente, o mês de janeiro, o diretor conduz um monólogo em que Simone Spoladore dá vida ao personagem em quadrinhos Valentina, criado pelo italiano Guido Crepax; e a sua musa inspiradora, a atriz americana do cinema mudo, Louise Brooks – famosa pela célebre Lulu, personagem de A caixa de Pandora (1929), de G.W. Pabst. Em cartaz a partir deste sábado, no Espaço Sesc, em Copacabana, a atriz divide-se entre Lulu, Valentina e Louise Brooks, numa dramaturgia erigida a partir da interlocução entre estes ícones da transgressão do século 20.

– Louise Brooks é uma atriz fantástica, fiquei impressionado com a Lulu, que é um personagem fascinante, assim como a Valentina – diz Vidal. – São histórias que se cruzam ao longo do texto. Crepax usa em seus quadrinhos todo o universo do cinema mudo, por exemplo. Ele criou Valentina a partir de uma imagem da Lulu, sem ao menos assistir ao filme.

Simone e o diretor alimentavam há alguns anos a vontade de trabalhar juntos. Pensavam num monólogo. Mas não tinham texto ou sequer uma ideia do que encenar. Depois de alguns encontros, a atriz revelou o desejo de interpretar algum personagem de história em quadrinhos adulto.

– Quando ela falou na Valentina, eu lembrei da Louise, porque sabia da influência que o personagem tinha causado no trabalho do Crepax. Na verdade, conhecia mais a Lulu do que a Louise, e lendo a biografia dela você entende que sua história é ainda mais interessante. Daria uma peça por si só.

No palco, os dois lançam mão de fragmentos de livros, cartas, entrevistas e tiras de quadrinhos para conduzir a narrativa.

– Assisti e li tudo o que eu podia sobre elas. Foi um trabalho difícil, porque não tínhamos um texto pronto. Pegamos fragmentos de todo esse material e misturamos às nossas impressões e intuições – conta a atriz. – Não existe um desejo de contar uma história objetiva, ou detalhar biograficamente a vida da Louise. É uma aproximação subjetiva entre esses dois universos. Não há nada muito concreto, é um espetáculo fluido. Acho que ele ainda pode mudar muito ao longo da temporada.

Para dar vida a estes símbolos, personagens que transcendem as esferas do cinema e dos quadrinhos, a montagem interage com a dança contemporânea e as artes visuais. No palco, Simone navega por três fases da vida de Louise Brooks, enquanto dialoga com quatro curtas-metragens e evolui sobre a direção de movimentos da bailarina Marcelle Sampaio.

Nascida no Kansas, em 1906, e bailarina de formação, Louise Brroks iniciou a carreira em musicais. Entre 1925 e 1938, estrelou 24 filmes, tornado-se uma das maiores estrelas do mundo com a hipnótica Lulu – cujo corte de cabelo tornou-se um ícone da moda na primeira metade do século 20. Após o sucesso com a personagem, decidiu arriscar-se no mercado europeu, realizando outros dois longas, com Pabst e René Clair. Ao retornar aos EUA, não conseguiria mais se adequar às normas ditadas por Hollywood. Relegada a pequenos e inexpressivos papéis, decidiu encerrar a carreira precocemente, aos 31 anos. Após anos de ostracismo e quase miséria (há rumores de que teve que se prostituir pra sobreviver), a bela e culta Louise tornou-se escritora, publicando artigos nos anos 50, 60 e 70 em várias revistas sobre cinema. Em 1982 lançou o best-seller Lulu em Hollywood pouco antes de sua morte, em 1985, na cidade de Rochester, Nova York.

– Ela se sentia aprisionada pela personagem. E como era uma mulher linda, inteligente e com muita personalidade, seu temperamento impedia que ela se dobrasse aos padrões exigidos pelos chefões de Hollywood. Ela começou a ser boicotada pelos produtores machistas da época.

Após abandonar a carreira, Louise Brooks tornou-se escritora. Em alguns de seus livros e compilações, algumas cartas revelam correspondências entre ela e Crepax.

– Depois que ele enviou alguns desenhos, ela retornou com uma carta, dizendo que havia adorado a Valentina, e que agora ela lhe servia como inspiração e espelho de força.

Culta e sexy, liberta e bem resolvida, a jovem fotógrafa Valentina tornou-se personagem fetiche do universo masculino (e feminino), por sua beleza e independência. É diante dessa exuberância que o diretor enxerga a principal conexão entre os personagens reais e fictícios que envolvem Lousie Brooks, a cinematográfica Lulu e a fantasiosa Valentina.

– O que nos interessa era observar essas similaridades. Todas elas são mulheres incríveis e fortes – compara. – Valentina emprestou atmosfera cinematográfica às histórias em quadrinhos. O trabalho do Crepax, assim como de outros, ganhou status de arte.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Inspirado em Caio Fernando Abreu, 'Aqueles dois' estreia no CCBB

Um deserto de almas habita o departamento administrativo de uma repartição pública. O silêncio, o vazio e o tédio angustiante de vidas acomodadas parecem reger as leis e normas vigentes. O código moral, a ética e a conduta impecável daqueles trabalhadores desolados, porém, sofreriam um abalo. Pouco a pouco, dois novos funcionários, Raul, 31, e Saul, 29, passam a compartilhar gostos e desgostos comuns, numa cumplicidade que, embora incompreensível a eles próprios, passa a despertar sentidos e rumores cada vez mais incômodos aos companheiros de trabalho. Os seis meses de convivência diária entre estes dois personagens quietos e enigmáticos – entre cafés, despachos, relatórios e trocas de impressões sobre a rotina – moldam as linhas de Aqueles dois, um dos mais famosos contos de Caio Fernando Abreu. Transposto ao teatro e esmiuçado pela companhia mineira Luna Lunera, o texto chega aos palcos do CCBB a partir de sexta, após passar por Belo Horizonte e São Paulo.

– Comecei a ler os contos do Caio para um treinamento de atores do grupo e percebi que Aqueles dois tinha muito a ver com o que estávamos vivendo como companhia teatral – conta o ator e diretor Cláudio Dias. – Passávamos por um momento muito burocrático, envolvidos com prestação de contas e todo o processo que envolve leis de incentivo.

A labuta diária entre uma produção e outra remetia diretamente ao clima árido de uma repartição pública, justamente o universo criado pelo autor para o conto, publicado em Morangos mofados, um de seus livros mais famosos.

– No texto, os dois personagens se encontram, o que representa uma ótima metáfora para o que acontecia com a gente durante as oficinas. Voltávamos a ter contato, tocar uns aos outros, num momento de criação artística, de encontro. E acho que este texto é sobre encontros e amizade – explica o ator.

Com direção e dramaturgia de Dias, Marcelo Souza e Silva, Odilon Esteves, Rômulo Braga e Zé Walter Albinati, a peça, assim como o conto, lança mão de citações a artistas e obras de áreas diversas, da música e do cinema, como Audrey Hepburn, Jane Fonda e Carlos Gardel, todos misturados na narrativa, com o tom autobiográfico peculiar à produção literária do autor.

– Os textos do Caio trazem uma musicalidade característica. Ela está contida nesta obra e foi transportada para o espetáculo. Ele sugere trilhas sonoras para a leitura dos seus textos. Neste caso, com muito Carlos Gardel – detalha. – Na peça, usamos as canções citadas no conto, além de outras de artistas que ele cita ao longo de suas cartas e outros textos, como Angela Ro Ro e Cazuza. É uma escrita bastante musical.

Na trama, que envolve o aprofundamento dos laços entre Saul e Raul, o autor dá margem a uma diversidade de leituras e percepções sobre o universo dos dois personagens, uma espécie de jogo e provocação que leva o espectador a refletir sobre amizade, preconceito e sexualidade. E soa como um lembrete para que o público nunca deixe de cuidar de suas próprias gavetas.

– O que me impressiona no texto é a questão da amizade e do encontro, independentemente de gênero. O que nos emociona e cativa as plateias por onde passamos é justamente o encontro entre essas duas pessoas – revela Dias. – Assim como o texto do Caio, mantemos esse mistério, porque cabe ao público criar sentido ao relacionamento dos dois.

No palco, os quatro atores se revezam nos papeis de Raul e Saul e como narradores. Cenário, figurino, música e texto atuam simultaneamente num jogo textual e corporal entre atores, espaço e objetos.

– Costuramos o texto passando do épico para o dramático. Quatro atores se revezam entre os personagens e na narrativa do texto. Ora os três são Saul, um de nós é Raul, e por aí vai. Serve para mostrar que essa história pode acontecer a qualquer um, incluindo os espectadores.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

John Mayer - Mudanças radicais apenas no visual

Após quase uma década comportando-se e se vestindo como um exemplar american boy de classe média, John Mayer resolve assumir um lado mais sofisticado e ousado de sua personalidade. Se antes, os jeans comportados, as camisetas básicas de malha e os longos cabelos ondulados moldavam uma expressão teenager inocente – e até meio boboca – agora ele adota um visual remodelado: assume um topete à Elvis, posa com jaqueta e perfil à James Dean e ostenta uma enorme tatuagem colorida cobrindo por completo seu braço esquerdo. Porém, a mudança estética que o embala não desemboca numa reinvenção sonora para este novo trabalho, Battle studies. Nele, Mayer arrisca-se pouco, e se deixa levar por uma espécie de piloto automático do bom gosto e da correção.

Assediado pela imprensa por conta de seus envolvimentos amorosos com celebridades, Mayer de três em três anos põe na praça um disco de qualidade suficiente para apagar a superficial banalidade de suas inúmeras aparições em tabloides sensacionalistas. Desde que surgiu a bordo de Inside wants out (1999), deixa claro a evolução de seu trabalho como instrumentista – na pesquisa de timbres e construção dos arranjos – cantor e, principalmente, compositor pop e radio friendly, numa época dominada por ícones solo femininos.

Em Battle studies, percorre melodias açucaradas e traça letras que versam sobre o amor, mas sob o viés da perda, da desilusão, através das lembranças que tenta apagar da memória para se recompor, como insinua a balada folk Who says, que brinca com os efeitos chapantes e de amnésia causados pela erva. Em cada uma das 10 faixas que compõem o trabalho, esforça-se para expulsar sentimentos e angústias numa escrita abertamente confessional. Como num diário, expõe lamentos e inseguranças até sentir-se confortável o bastante para cantar que está perfeitamente sozinho, porque não pertence a ninguém, e ninguém pode o pertencer, como assina os versos da certeira Perfectly lonely.

Nunca em trabalhos anteriores Mayer foi tão objetivo e sentimental em seus temas. Mas em hora nenhuma chega à beira do cafona. Muito pelo contrário, assina arranjos tão elegantes e bem cortados, em termos sonoros e estéticos, que empresta ao álbum limpeza excessiva. Uma constrição estilística tão precisa que deixa pouco espaço ao risco e ao destempero que a situação de um término de relacionamento amoroso poderia estimular. Em caminho oposto ao ar mais ensolarado, da musicalidade vibrante e mais variada de Continuum, Battle studies patina numa seleção de canções similares, marcadas por uma temática comum, quentes apenas como ideias, mas frias como resultado final. A impressão é a de que enquanto Mayer ganha novo corpo, forma e vida, no âmbito de sua expressão artística não conduz à frente toda a transformação interna e externa que o fim de seu relacionamento com a atriz Jennifer Aniston catapultou.

A confusão mental, o vazio da perda, o coração despedaçado não resultam em canções mais viscerais em que o músico vocifera ou lança mão de mais peso em sua guitarra. Mayer canta em tom suave e em falsetes canções de dinâmica estéril como War of my life, em que chega a soar como um lado B da banda Snow Patrol. Do início ao fim, muitas baladas recheiam o disco, das quais se destacam All we ever do is say goodbye, liderada por um violão e guiada por piano até a chegada de um refrão interpretado em falsete, ou Half of my heart, que versa sobre um homem completamente dedicado à música até que tem a vida transformada pela chegada de um amor, mas que, mesmo assim, só consegue entregar metade de seu coração. O disco acelera apenas na blueseira Crossroads, de Robert Johnson, mas nunca atinge a potência e o vigor de seu álbum anterior, que trazia uma série de hits e a explosão alucinada de solos na releitura de Bold as love, de Jimi Hendrix, um de seus ídolos.


Crossroads

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Letieres Leite & Orkestra Rumpilezz

Recebi, na semana passada, o primeiro álbum da Orkestra Rumpilezz, liderada pelo maestro Letieres Leite. Ele assina uma obra-prima em que moderniza os ancestrais da música brasileira. Um espanto. Ano passado, escrevi uma matéria de capa para o Caderno B sobre o trabalho, à época disponível apenas via Myspace. Indiquei o trabalho para alguns amigos, inclusive do mercado, mas Letieres acabou assinando com a Biscoito Fino. Abaixo, a reportagem feita quando Letieres ainda não sabia muito bem o que fazer. Falava com calma, com a certeza de que um trabalho como o dele não dependia de lógicas de mercado ou coisa parecida. Fora criado para marcar época. E já começou.

O som do baiano Letieres Leite, 49, vem sendo apontado por gente graúda como um dos mais criativos e originais do mundo. O que o ergue à fama, como um dos mais inventivos músicos do nosso tempo, são as composições traçadas a partir das claves e desenhos rítmicos do universo percussivo baiano, inspiradas na tradição dos toques dos orixás do candomblé e pelas células rítmicas do samba afro (Ilê Ayê), samba duro, kabila (de Angola), Olodum e a chula (do Recôncavo Baiano). Fenômeno musical nascido em 2006, na Bahia, e trazido à tona pela agilidade da Internet, a Orkestra Rumpilezz caiu nas graças de nomes como Eumir Deodato, Airto Moreira, Ed Motta e Arrigo Barnabé. Gravado durante três dias no Teatro Castro Alves e mixado pelo produtor Joe Ferla (Nat King Cole), o álbum revela o gênio musical do maestro, compositor e saxofonista Letieres Leite, que nos últimos anos acostumou-se à labuta como arranjador da cantora e ícone pop Ivete Sangalo.


– Não é uma escolha minha. A decisão de lançar fora do Brasil acabou sendo natural – explica Leite. – Existem pelo menos quatro grandes selos internacionais na disputa, mas ainda não fechamos a negociação. No Brasil, também já há um interessado.

Como qualquer grupo ou artista novo, essa big band apoiada em sopros e percussão de sotaque afro e jazzístico usou o site de relacionamentos musical MySpace como ferramenta de autopromoção. É praticamente um oásis em meio à poluição musical igualmente disponível na web, com suas originalíssimas composições, que chamam a atenção pela mescla entre erudito e cultura popular.

"Impressionante. Adorei os arranjos. Sempre para a frente", postou na página da banda o arranjador Eumir Deodato.

Um dos muitos a se surpreender diante dos arranjos e improvisações da Rumpilezz é o percussionista Airto Moreira. Assim como o baixista Paulo Russo, ele destaca, no MySpace, a originalidade da Orkestra e dá ênfase à distribuição das harmonias, em contraponto aos elementos rítmicos. Max de Castro deixa os fãs ansiosos ao garantir nunca ter esperado tanto por um disco. Faz coro com o baterista Renato Massa, que não acreditava poder ouvir algo tão expressivo no Brasil. Ácido, o compositor Arrigo Barnabé diz que, ao conhecer a Rumpilezz, finalmente encontrou um "motivo genial para gostar da Bahia".

Se os elogios ao dinamismo do compositor, arranjador e saxofonista baiano dão conta apenas de mensurar a proporção que o trabalho representa no universo de músicos e estudiosos, cabe a Ed Motta desnudar o mistério e definir da melhor forma a importância de Letieres e da sua orquestra para a música moderna.

– A Orkestra Rumpilezz é o que há de mais interessante na música, atualmente. Não estou falando de Brasil, mas, sim, do mundo – destaca Motta. – O seu trabalho é de uma importância sem precedentes. Letieres é um gênio. Afirmo, sem pudor, que o mestre Moacir Santos passou o bastão para ele.

Formada por cinco músicos de percussão (que usam atabaques, surdos, timbaus, caixa, agogô, pandeiro e caxixi) e 14 de sopro (quatro trompetes, quatro trombones, dois saxes alto, dois saxes tenor, um sax barítono e uma tuba), a Rumpilezz é associada à grandiosidade das trilhas cinematográficas de Ennio Morricone, assim como à música do pianista Gil Evans.

– São influências, assim como Hermeto e Egberto Gismonti. Mas não sigo nenhum tipo de regra – garante o músico. – Estudei, aprendi e me formei em composição para dominar as técnicas, mas, na hora de criar, faço o favor de me livrar de muitas dessas convenções.

Foi à época em que estudava e lecionava música brasileira na Europa, em Viena, há 20 anos, que começou a burilar as primeiras canções do début. Cada música seria dedicada e obedeceria à célula rítmica de cada orixá.

– Existe uma batida exclusiva para representar cada um dos orixás. É um desenho.

Como a complexidade da música do candomblé é desconhecida mesmo no Brasil, Letieres sentiu a necessidade de que ela fosse reconhecida como um tipo de som rigorosamente organizado.

– Tratei de transpor os sons dos tambores rum, rumpi e lê para instrumentos como tuba, trombone, entre outros. Parece que deu certo – orgulha-se.

Apesar de concordar que o universo percussivo baiano chega ao ouvinte brasileiro de forma reduzida através da pasteurização da axé music, ele não vê conflito em trabalhar com a musa baiana.

– Eu e Ivete usamos a mesma matéria-prima. Ela faz música voltada para o entretenimento, de assimilação imediata. A Rumpilezz se concentra na preservação, conhecimento e entendimento de uma tradição cultural. Mas ela tem consciência e faz uso da nossa escola.