Óculos de aro grosso e armação moderna, em cor negra, descansam seguros sobre um semblante branquelo; à primeira vista o bastante para enquadrá-lo como um típico e, talvez pedante, jovem intelectual inglês. No entanto, aos 45 anos ele é possivelmente o mais influente crítico de música pop da Inglaterra, tendo atrás de si uma carreira como jornalista dividida entre Londres e Nova York e artigos em publicações como The New York Times, Village Voice, Spin, The Guardian, Rolling Stone e Melody Maker.
Ao aliar o discurso verborrágico e a virulência do polêmico crítico americano Lester Bangs com a teoria crítica e psicanalítica de pensadores como Gilles Deleuze e Sigmund Freud, o jornalista e escritor Simon Reynolds, radicado desde 2002 em Nova York, vai muito além daquilo que o estereótipo poderia lhe emprestar. Ao partir desta explosiva combinação de influências, carregada ainda na filosofia nietzschiana, o autor redigiu verdadeiros tratados sobre a cultura rave dos anos 80 e 90; cunhou termos como o "pós rock" e revelou a subestimada cena grime inglesa.
Após ter nos dado um gostinho do seu estilo com a publicação de muitos destes textos no livro Beijar o céu (Conrad, 2006) – compilação de artigos publicados tanto na imprensa como nos livros Sex Revolts e Rip It Up and Start Again –, Simon Reynolds lança este mês (a princípio no mercado internacional) seu quinto livro, Bring the noise (Faber & Faber), onde analisa fenômenos recentes da música pop a partir de uma coletânea de escritos jornalísticos publicados entre 1985 e 2005.
Como o subtítulo do trabalho sublinha: 20 Years of Writing About Hip Rock and Hip Hop, Simon compôs, a partir de um emaranhado de entrevistas, artigos e resenhas, um quadro de referências inédito que ilustra conexões precisas entre a geração indie inglesa ("hip" rock) e a cena rapper dos guetos americanos e ingleses (hip-hop) – o que inclui R&B, dancehall reggae, grime, entre outras vertentes.
– Essa complicada e fértil relação entre a música branca e a negra sempre esteve ativa na minha cabeça, desde o início da minha carreira – revela Reynolds, que, ao invés de reunir um apanhado de seus melhores textos, preferiu estabelecer a relação entre o indie-rock e a black music moderna como o tema, ou espinha dorsal, a guiar o projeto.
– Trata-se de uma área de interesse cada vez mais ampla, já que a história do rock foi catapultada justamente a partir do romance que o branco sempre alimentou em relação à negritude. Um ímpeto particularmente muito forte na história do rock e do pop britânicos. Temos uma intensa e magnética atração pela música da América negra e, também, pela influência da cultura jamaicana e caribenha, devido à imigração massiva nos anos 50 e 60; legado do império britânico. Acho que a música negra alimenta algo que os britânicos necessitam. Parece que isso nos amplia em relação a nós mesmos, ameniza alguns dos menos atrativos traços do nosso caráter e essência – acredita Reynolds.
Apesar de não demonstrar entusiasmo com a nova onda de cantoras neo-soul inglesas, como Amy Winehouse, ou das novas divas de 2008, inspiradas pela junkie-diva, caso de Adele e Duffy, o autor deixa claro que este é um exemplo louvável da projeção massiva que os ingleses catalisam em direção a música negra americana.
– Sempre fiquei fascinado em ver como a boemia branca era fustigada e extirpada pela cultura negra – conta.
Segundo ele, em meados da década de 80, a timidez e o ar reservado de muitos artistas ingleses, influenciados pelo estilo da fonte menos negra do rock americano, o Velvet Underground, se acentuou.
– O indie-rock inglês sempre foi muito pálido, em termos vocais. Faltava-lhe energia e, nos anos 80, era crescente o desapego dos alternativos em relação à influência da música negra – assevera.
Longe da levada funk e do dance, além da auto-glorificação personificada pelo egocentrismo da música pop negra, em algumas bandas a negritude se esvaia por completo, ao ponto em que se segregavam a si mesmos.
– Em termos políticos e estéticos, sou a favor da mistura, daquilo que é mestiço. Apesar de saber que o purismo estético sempre foi e será um caminho válido. Amo artistas estritamente brancos e essencialmente britânicos, como os Smiths, minha banda predileta – ressalta.
No entanto, impelido a seguir e acompanhar duas direções musicais quase antagônicas, Reynolds não hesita em afirmar que, até hoje, o rock alternativo, "muito reprimido emocionalmente", ele diz, peca pela ausência da exuberância e vitalidade características da música negra.
– O que me fascina no rap é que, musicalmente, eles continuam a evoluir e construir caminhos sonoros que o indie-rock nunca ousou. Nomes como NWA e Timbaland nunca deixaram de se arriscar, experimentar novos ritmos e sonoridades – avalia.
Segundo Reynolds, o rap o toca pelas mesmas razões que fora instigado, ainda na adolescência, pelos críticos de rock dos anos 80, que agiam e escreviam como se fossem líderes proféticos.
– Também sou muito egocêntrico, então reajo e me identifico com esse elemento do rap, especificamente no que diz respeito à tiração de onda e auto-glorificação. Na vida real tendemos a nos afastar de pessoas que estão sempre elogiando suas próprias e mesquinhas habilidades, sua saúde, além de banalidades, como a quantidade de mulheres que um sujeito já levou pra cama. Porém, eles transformaram toda essa ameaçadora agressividade em arte – atesta.
Formação jornalística
A adolescência de Simon, assim como a de muitos jovens da geração-myspace, foi marcada por tardes de leitura de artigos musicais. Para ele, alguns dos críticos da época eram tão importantes quanto às bandas, pois, além de audaciosos, estabeleciam desafios, assim como os mais eloqüentes músicos.
– Eles tinham o poder de definir quais idéias e valores eram sexy e quentes o bastante. Fui formado por esta idéia profética e fatalista de crítica. Aspirei a ser como Lester Bangs e muitos similares, como Paul Morley e Barney Hoskyns. Ambos adotavam o estilo delineado pelo crítico de arte Clement Greenberg e Susan Sontag, que tinham uma visão muito clara e faziam vencer bandas e gêneros musicais em detrimentos de outros, uma espécie de evangelização.
Jornalista de uma época em que o semanário musical NME vendia 200 mil cópias por semana e era lido por aproximadamente 700 mil pessoas, Simon recorre à nostalgia para descrever a poderosa experiência de influenciar o destino de bandas, que podiam assinar e rescindir seus contratos a partir de seus artigos.
– Havia muito espaço para escrever, toneladas de jornalistas competindo loucamente para tecer as opiniões mais arredondadas e delinear o estilo de escrita mais marcante, além da corrida frenética para apresentar a banda nova mais quente do momento - conta Reynolds. – Era um universo pequeno e incestuoso, mas nos alimentávamos disso e das respostas dos leitores nas seções de cartas, algo super estimulante, pois recebíamos textos tão inteligentes como totalmente imbecis. Mas o mais interessante disto eram as cartas enfurecidas dos artistas e músicos criticados e insultados.
Segundo Reynolds, à época, as redações funcionavam como verdadeiros pontos de encontro para noitadas. Os jornalistas não mandavam seus artigos via e-mail e chegavam às redações carregando debaixo do braço seus textos escritos em papel.
– Sentávamos e começávamos a beber, conversar e discutir sobre temas diversos. Era uma relação face a face, muito mais viva e direta com os seus parceiros e com os seus inimigos. Hoje, a comunicação é por e-mail e as redações mais parecem grandes navios fantasmas.
De acordo com Simon, a explosão de opiniões disparadas virtualmente pelas páginas de blogs e revistas digitais torna difícil enxergar o papel do crítico musical como em sua época: um legislador.
– Dada às devidas proporções, faço uma alusão à frase do poeta Percy Shelley para ilustrar minha idéia em relação à função do crítico musical: "os poetas são os ilegítimos legisladores do mundo". Alguém que deixa as normas de lado e determina o que é e o que não é quente. Na minha concepção, o crítico hoje tem o papel de enriquecer a diversão ou o entendimento sobre música, fazendo conexões e contextualizando música, sociedade e a história, ou seja, um universo mais amplo. Trabalho e acredito nisso, se não já teria desistido.
Vanguardista, apostou sem medo, desde sempre, na filosofia instantânea do hype, termo que desde os anos 80 circulava impresso nos inflamados artigos musicais publicados em semanários como New Musical Express (NME), Sounds e Melody Maker – onde após editar o fanzine Monitor, em 1985, iniciou sua carreira profissional.
– O hype faz parte da natureza da imprensa musical britânica. Sempre achei excitante a competição para descobrir a nova banda do momento. Não concordo com a idéia de que é preciso esperar uma banda chegar ao terceiro para que possa ganhar a capa de uma revista. Prefiro o hype a precaução conservadora de publicações como a Rolling Stone. O hype é o molho que alimenta a vida pop. É o negócio que estou envolvido e não tenho como criticar alguém por fazer o mesmo. Fiz isto desde o início da minha carreira e ainda mais recentemente, quando tentei inflamar a cena grime inglesa – faz meaculpa.
Simon compara a explosão dos blogs com a antiga imprensa musical britânica que ascendia bandas novas e desconhecidas ao topo apenas pelo orgulho em deter a opinião mais interessante. Hoje, com as vendas reduzidas a 68 mil exemplares por semana, a única publicação remanescente daquele período, a NME, luta para não ser engolida pelo fenômeno da web 2.0.
– Não acho isso destrutivo e nem sem sentido, mas tenho uma frase de estimação que ilustra bem este quadro: a pobreza da abundância. Muita música mata o apetite por música. Muitas opiniões sobre música fazem com que você evite ler sobre. Provavelmente leio menos do que nunca, em relação à música. Raramente algum artigo me afeta da forma como na minha juventude. Na minha idade e com a experiência que tenho, já não me impressiono tanto com as coisas. Tenho minhas próprias idéias e, como escritor, consigo enxergar os truques de retórica que muitos jornalistas se utilizam – garante.
Com sensibilidade para captar boa música, independentemente de gêneros, o autor à época, com 20 e poucos anos, conseguiu captar o início da esquizofrenia estética que vivenciamos hoje e pôde fazer de sua trajetória jornalística um passeio pelo pós-punk, a música eletrônica e o hip-hop que, unidos, fomentaram o multifacetado pop dos anos 2000.
– Até agora esta década tem sido um período de limpeza, uma espécie de faxina e lavagem musical. Os anos 2000 começaram super excitantes, com uma série de artistas de R&B e rap, especialmente do sul dos Estados Unidos. Depois houve o surgimento do grime que eu alimentei esperanças altas. Mas ambos foram desenvolvidos a partir de coisas que começaram no final dos anos 90, Não há nada que defina esta primeira década do século XXI, apenas a corrida pela novas formas de distribuição e consumo de música.
Fã de ficção científica dos anos 60 e 70, para ele "uma literatura muito rica em idéias", Simon lia de tudo durante a adolescência, em especial autores como J.G. Ballard. Mais tarde, descobriu os encantos da imprensa musical inglesa, uma máquina quente de idéias banhadas em filosofia e teoria crítica. Ao ter acesso e mergulhar nas obras de Marx, na corrente situacionista, na psicanálise de Freud e no feminismo – em parte influenciado pela imprensa musical e por bandas que faziam referências a estas questões –, Simon tentou uma vaga na faculdade de filosofia e política em Oxford, mas acabou aceito no curso de história.
– O acaso trabalhou de forma valiosa, pois eu estava mais interessado em filosofia ocidental, nas idéias de Nietzche e no existencialismo, o que geralmente é desdenhado em Oxford. Ironicamente, me tornei um historiador da música pop.
Nas horas livres se atulhava em bibliotecas onde saboreava um cardápio de leituras regado à teoria crítica, em particular o pós-estruturalismo francês de autores como Roland Barthes, Michel Foucault, Kristeva, Bataile e muitos outros. Todas estas influências circulavam na minha cabeça quando comecei a escrever para a Melody Maker, em 1986.
– Minha formação em teoria crítica é não-acadêmica. Além disso, lia bastante a obra de Nietzche, um interesses certamente despertado por uma das minhas maiores inspirações, Barney Hoskyns, meu escritor favorito da NME. Mais tarde entrei na onda eletrônica, dance e na cultura rave e descobri que as idéias de Gilles Deleuze, Féllix Guattari e Paul Virilio eram extremamente aplicáveis àquilo tudo. Devo dizer, no entanto, que fui bastante influenciado por artistas do mundo da música que são verdadeiros pensadores, como Brian Eno e Green Gartside da banda Scritti Politti.
Obcecado pela cultura popular negra americana, ultimamente ensaia um retorno às idéias marxistas básicas e a noção de Bordieu de como os gostos são influenciados pelas classes.
– Ambas parecem ter uma relação muito forte e bastante útil para entender a atual cultura hip-hop – acredita.
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