NOTAS SOLTAS E RUÍDOS ESCRITOS

domingo, 25 de maio de 2008

Papo de sal


Abaixo, bate-papo e matéria, na íntegra, com o cineasta carioca Fellipe Gamarano Barbosa. Ganhador do Grande Prêmio Vivo de Cinema na categoria melhor curta de ficção, com Beijo de sal.

LFR: Qual a origem da história apresentada em Beijo de Sal?

FGB: Sem dúvida foi o Rogério Trindade (ator e personagem, o dono da casa). Tudo começou e terminou com ele e, no fim, esse filme foi feito pra ele. Ele é a inspiração. Figura que eu acho fascinante em toda sua complexidade. Um sujeito magnético, que tem a atenção de todos sem fazer o menor esforço. Dele pincei o personagem: uma pessoa que de fato tem tudo e todos, mas que no fundo é muito triste e vazio. A maneira mais lógica que eu encontrei para dramatizar isso foi através de um amigo, que se encontra num momento diferente em sua vida e que saiu de sua roda de influência. Rogério tenta trazê-lo de volta, para a boa-vida, porém em vão.

LFR: E o interesse pelo personagem principal, um não-ator, como surgiu?

FGB: O filme veio do meu interesse sincero por esse homem. Alguns dos eventos foram inspirados por uma viagem de ano novo que eu fiz com essa turma há uns 4 anos pra Trancoso. Algumas das pessoas que compõem a entourage de Rogério no filme são as mesmas pessoas que integraram essa viagem. Reproduzir o clima, esse ambiente abandonado, largado, semi-decadente, era muito importante pra mim. Mesmo essas pessoas não estando em quadro, elas estão muito presentes e compõem a atmosfera do filme.

LFR: Quais foram os objetivos para a direção deste filme?

FGB: Meu interesse muito grande, e minha intimidade enorme com o Rogério – que não é ator profissional, mas, sim, uma aposta minha que creio ter dado certo – justificam a direção um tanto quanto discreta. Não chamo nem um pouco atenção para mim e para a câmera. Isto é o que menos importa. Fiz um filme sobre e para os sujeitos em frente à câmera. Meu objetivo era fazer com que a audiência esquecesse completamente a presença da mesma, e embarcasse nesse ambiente tão fluido e tão abandonado quanto a linguagem proposta. É como se o filme tivesse sido feito sem esforço algum, como se ele tivesse simplesmente acontecido.

LFR: Esta simplicidade cenográfica, restrição do aparato, intimidade com os atores, tudo isso faz parte de uma intenção consciente de desnudar e evidenciar subjetividades?

FGB: Limitei ao máximo o aparato (equipe bem reduzida, quase nenhuma luz) a fim de que os atores (ou nao-atores) pudessem relaxar e pensar no café ao invés de sua intenção em cena, digamos. Pensar nas coisas pequenas, estar presente no momento. Se o grande objetivo é capturar a realidade, a diminuição do aparato ajuda muito aos atores a se "desconscientizarem". Acho que eles entenderam muito bem isso, e acreditaram. Cenas onde o Rogério simplesmente sai de casa e senta-se com seus amigos tocando violão no jardim, olha para os lados e não encontra seu melhor amigo – poderiam muito bem funcionar, podem ser interessantes desde que sejam de verdade. Optei por eventos pequenos, menores.

LFR: Como foi o seu trabalho para a direção dos atores?

FGB: Sobre os atores, tem uma anedota bem legal, ou trágica, quando o Domingos Alcântara (Paulo) caiu de uma pedra no fim do primeiro dia de filmagem e aterrisou com os pés num cardume de ostras, cortando profundamente a sola dos pés em 12 pontos diferentes. Ele teve que levar 8 pontos. Ele não teria condição nenhuma de continuar no filme daquele jeito, e eu fui muito duro com ele dizendo que não re-escreveria o roteiro, ele teria que caminhar na praia e brigar no pântano, e que se tivesse alguma dúvida que me dissesse e a gente pararia tudo. Eu sinceramente não estava tão satisfeito com a performance dele naquele primeiro dia, mas por algum motivo, após o acidente, tudo mudou e o Domingos parou de atuar, aproximando-se do naturalismo que eu procurava. Ele foi um herói, e o esforço que ele fez, o quanto ele se concentrou para driblar a dor acabou tirando sua mente da dor. Agora eu já sei o que fazer com um ator quando estiver "atuando" muito, levarei um taco de beisebol, ou um punhado de ostras!

LFR: Além deste problema inicial, além das dificuldades financeiras, houve algum outro acontecimento que tenha tornado difícil fazer o filme?

FGB: Não vou dizer o clichê de que foi um filme difícil, pois não foi. O fazer cinema não é impossível quanto à maioria dos profissionais de cinema o fazem parecer. Acho que existe uma super-sacralização do processo, como se fosse a coisa mais difícil e importante do mundo, quando não é nem uma coisa nem outra. Fazer cirurgia é difícil e importante. Acho que temos dificuldades em admitir que fazemos cinema porque gostamos muito e ponto. Encontrar a relevância dentro disso tudo não compete a nós, à nossa geração. Determinar se o que fazemos é arte ou não, também não compete a nós, mas sim ao futuro e a história.

LFR: Qual a importância do curta-metragem para a sua formação como cineasta?

FGB: Meio dos acertos e erros, onde ainda se pode errar, onde tem menos "at stake". Ou seja: pode-se arriscar. Mais importante, onde se acha sua voz. Acho meio boba essa discussão do curta como formato independente versus. curta como escada pra um longa.Acho que não tem nada a ver. Curta é o nosso playground e, mais importante, onde podemos encontrar nossa voz, descobrir nossos interesses, compreender nossos pontos fracos e nossas limitações enquanto diretores. É importante para que possamos entender qual tipo de cinema nos interessa fazer. Vários cinemas me interessam como espectador, mas como cineasta nem poderia me interessar por todos esses cinemas, pois seria ingênuo da minha parte me sentir capaz. Acho que não seja uma questão de capacidade, mas, sim, de interesse mesmo, tesão. Descobrimos isso com os curtas. O fazer cinema é sempre um aprendizado sobre os outros sujeitos e sobre nós mesmos, em função de como nos relacionamos com os outros.

LFR: Filmar em película ou com equipamento digital? Como vê estas transformações no processo de filmagem?

FGB: Acho que o vídeo digital tem uma importância fundamental na democratizacao e dessacralização do processo. É mais barato, o que torna super possível filmar, já que você não depende mais do grande aparato, algo que acho ótimo, como disse anteriormente. Porém, o vídeo legitimou muita porcaria, pois feriu bastante a disciplina do processo. Ou seja, as pessoas filmam qualquer coisa pra encontrar o filme na sala de edição. Isso esvaziou muito o papel do diretor, em minha opinião, pois os diretores, por causa do vídeo, estão cobrindo ao invés de dirigir; filmando por todos os ângulos possíveis ao invés de fazer escolhas. No entanto, é exatamente o mesmo paradigma/problema de se fazer filme com muito dinheiro e recursos ilimitados. Você acaba não dirigindo, o filme fica com cara de que foi dirigido por um diretor qualquer, ou por todos os diretores em conjunto, ao invés de se reconhecer uma única voz. Filmar em película muitas vezes te força a fazer escolhas e, de fato, a dirigir.

LFR: No Brasil o circuito de curtas se reduz às mostras, festivais e cineclubes. Praticamente não há retorno financeiro, em premiação, para os realizadores. Fora do Brasil existe um mercado ativo para curtas? Como mudar o panorama nacional?

FGB: A coisa não funciona por aí. A quantidade de curtas produzidos aqui (Nova York) é muito maior e proporcionalmente gera muito menos retorno. Isso porque grande parte da produção nacional de curtas brasileiros é gerada pelos editais, que dão uma quantia bastante generosa para a produção. É um luxo. O cara, muitas das vezes, não precisa se pagar, ele não precisa encontrar mercado para o curta dele, pois simplesmente ele não tirou a grana do próprio bolso. Ás vezes até recebe salário para fazer o filme. Acho isso lindo, não me leve a mal. A galera não pode ficar mal-acostumada, aqui o buraco é bem embaixo. Estamos fazendo curtas com muito menos dinheiro, às vezes ninguém é pago. É guerrilha mesmo. Meu primeiro curta, La muerte es pequena, que foi para o Festival de Sundance (2005) e indicado para o Student Academy Award foi realizado em vídeo por US$ 300. É possível fazer coisas interessantes com pouco dinheiro.

LFR: Como você vê a questão da Lei do Curta e dos editais como fonte mantenedora da produção de curtas-metragens no país?

FGB: Nos cinemas, ao invés de mostrarem curtas, o público é obrigado a assistir propagandas. O problema da lei do curta é mais uma questão de programação. Saber nas mãos de quem vai ficar a responsabilidade de escolher um curta para acompanhar determinado longa. Uma escolha ruim pode ser desastrosa tanto para o curta quanto para o longa. Os curtas são feitos com o dinheiro público, ninguém está sendo consultado se quer bancar essa estória ou não. Até aí tudo bem. O problema é negligenciar completamente esse mesmo público que está bancando a manufatura da coisa, sem fazer o menor esforço pra garantir exibição. Acho que o povo tem direito de assistir ao que está pagando. Até para gerar mais responsabilidade. As pessoas têm que ter acesso e oportunidade de ver para julgar! Pois se elas tiverem insatisfeitas, têm o direito de reclamar. Acredito nisto porque no nosso sistema de financiamento e produção, muito se produz, mas quase nada é visto. Existe uma crise de responsabilidade. Queremos produzir, fazer, receber nossos salários, mas não queremos arcar com as conseqüências do fracasso. A ausência de mecanismos de exibição é a melhor maneira de nos proteger e garantir isso, ironicamente. Digo ironicamente porque é óbvio que todo cineasta quer ter seu trabalho visto, mas, insisto, ironicamente esse sistema nos protege porque não dá oportunidade ao publico de assistir a algumas bobagens que estão sendo produzidas continuamente.

LFR: Participar de festivais internacionais é o "sonho" de curta-metragistas. Você teve curtas selecionados para Sundance, Festival do Rio, Gramado, Clermont, Guadalajara, entre outros, totalizando 40 mostras. O que se tira de proveito destas seleções?

FGB: Os festivais te fazem sentir parte de um circuito, lhe dá aval par seguir adiante. Porém, o mais importante é que te possibilita assistir seu filme com audiências distintas. Cinema é comunicação e necessita de contato com o público. Não faço filmes pra mim mesmo, não acredito nisso. Faço filme pra comunicar algo, uma experiência, e acabo aprendendo mais sobre mim e compreendendo porque preciso tanto fazer. Depois de finalizado, a única forma de vê-lo é através dos olhos dos outros, já que perdemos completamente nossa objetividade durante o processo. Festivais nos dão platéias e olhos imparciais com os quais podemos e devemos assistir aos nossos filmes. Compreendemos melhor nossas limitações e acertos. Um aprendizado constante, por isso é importante ter humildade.

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