NOTAS SOLTAS E RUÍDOS ESCRITOS

domingo, 4 de maio de 2008

Parque

A fim de atiçar a curiosidade da alma, após um dia repleto de tecladas, resolvi caminhar sem compromisso pela Fnac. Percorri prateleiras durante cerca de uma hora até chegar à seção de pocket books, ou melhor, livros para bolsos vazios, ou talvez, livros para jornalistas – profissional da comunicação que gosta de ler, mas ganha mal para escrever.

Não conhecia a obra de Lawerence Ferlinghetti, apenas sua referência histórica dentro do movimento beat. Comprei o livreto a R$ 11 e me pus a ler ainda no ônibus 175, Barra–Central. Oportunamente, o ritmo frenético e louco com que o motorista contornava, em alta velocidade, as sombrias curvas do elevado do Joá e ultrapassava motoristas prudentes era perfeito para o acompanhar desorientado das tortas linhas de Ferlinghetti e seu "(um) parque de diversões da cabeça".

Considerado por muitos o melhor trabalho do autor, este é o segundo livro do fundador da editora e livraria City Lights (em funcionamento até hoje), que lançou grande parte dos autores beat e mudou os rumos da literatura americana da década de 50.

Apresentada em edição bilíngüe, traduzida por Eduardo Bueno e Leonardo Fróes, a obra poética de Ferlinghetti celebra os elementos triviais do cotidiano, a gíria das ruas, a vida simples e também seu amor pela arte. É um emaranhado de memórias, impressões e fragmentos líricos que pintam um quadro em borrões de uma América há muito perdida. O olhar de pintor realça o cenário americano da época, a espiritualidade e a beleza intrínseca a tudo. Como pontua a contracapa, Ferlinghetti evoca Dante, Goya, Chagall, Kafka, Yeats, Hemingway para compor sua principal obra. O título, extraído do livro "Into the Night Life", de Henry Miller, segundo o próprio, é usado fora do contexto original, mas expressa o que ele sentia ao escrever os poemas, algo como um “circo da alma”.

Se na primeira parte, Ferlinghetti grita para o mundo os absurdos da cultura americana e denuncia a sociedade de massas, na segunda, “Mensagens Orais”, o autor registra o clima dos encontros de jazz e poesia que regavam as mentes alucinadas dos beatnicks. São discursos espontâneos concebidos para acompanhamento jazzístico.

– Estes sete poemas devem ser considerados mais como discursos espontâneos, mensagens orais, do que como poemas redigidos para a página impressa. Como resultado de uma experiência contínua de leitura acompanhada de jazz. Permanecem ainda em forma mutante – destaca o autor.

Ao invés de jazz e da oralidade poética de um recital, conformei-me, enfim, com o grunhido estridente dos motores em alta rotação. Compactuavam, ainda, fortes trancos de incessantes trocas de marchas e o uivo lancinante da ventania gelada que preenchia o vazio do coletivo fantasma. Tracei seus primeiros poemas, passei olho na segunda parte e planejei para a madrugada o fechamento, ou terceira parte, que se dá com “Retratos do mundo que se foi”, grupo de poemas selecionado do primeiro livro do autor, Pictures of the Gone World, publicado em 1955 pela City Lights.Trecho de poema “Autobiografia” que definiu a aquisição:

"Sou um lago na planície.
Uma palavranuma árvore.
Sou uma montanha de poesia.
Uma blitz no inarticulado.
Sonheique todos os meus dentes caíram
mas a língua sobreviveu
para contar a história.
Porque sou um silêncio
poético."

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