NOTAS SOLTAS E RUÍDOS ESCRITOS

domingo, 7 de março de 2010

Karina Buhr – Mentiras sinceras lhe interessam

Ela ajusta os cabelos ondulados com presilhas coloridas, enfeita as mãos com anéis de acrílico, veste sapatos de boneca e meia arrastão 7/8. Dona de um olhar esverdeado, Karina Buhr trasmite imprecisão. Nem doce, nem amarga. Às vezes fofa, outrora mulher perigosa, esta baiana radicada em São Paulo é um complexo mosaico de estímulos. Se a persona descrita na primeira linha se adequa a versos como “Eu quero passar a tarde estourando plástico bolha”, outros como “Eu sou uma pessoa má. Eu menti pra você” insinuam um avatar misterioso. Mas ela não esconde o jogo. Eu menti pra você não serve apenas ao rótulo deste primeiro trabalho solo. É a faixa-título e carro-chefe de um disco intimista, confessional e personalíssimo. Com pose de menina e sensibilidade de mulher madura, aos 35 anos se revela como artista de melodias originais e letras afiadas.

– Não tenho a menor intenção de definir alguma coisa, ou de passar alguma coerência – alerta Karina. – Escrevi letras e canções de estilos muito diferentes umas das outras. O meu campo está aberto e eu posso ir para onde eu quiser justamente por causa da primeira canção. Ela não está aí à toa. E é por isso que o disco tem esse título. Ele sintetiza o que acontece daí em diante.

Se o disco abre com a despudorada Eu menti pra você, cabe à inocente Plástico bolha fechar o arco de temas e sonoridades multicoloridas pintadas por Karina e pelas guitarras de Edgard Scandurra e Fernando Catatau.

Vocalista da banda Comadre Fulozinha desde 1997, ela assina um disco onde a dualidade, a contradição, a incoerência, a confusão e imprecisão de seus escritos ganham forma e síntese semelhante à explorada por tom Zé em versos como “Tô te explicando pra te confundir. Tô te confundindo pra te esclarecer. Tô iluminando pra poder cegar. Tô ficando cego pra poder guiar”. Ao fim de suas 13 canções, o que se desenha é um álbum coeso, por incrível que pareça. Realizado por uma artista em constante reavaliação, perdida entre o acaso e as incertezas do cotidiano, Eu menti pra você não é um emaranhado de referências cruzadas aleatoriamente. Fala com propriedade sobre desilusões amorosas (Eu menti pra você e Mira ira), as guerras no Oriente Médio (Nassíria e Najaf), odes existencialistas (Vira pó) e até as penúrias de uma artista independente para conseguir financiamento para a produção de um disco (Ciranda do incentivo).

Inspiração no cotidiano

– Gosto muito de escrever, não necessariamente para compor. Escrevo sobre o dia a dia, as coisas que acontecem na minha vida, na cidade ou no mundo – explica a cantora. – Minha inspiração vem do cotidiano. Não toco nenhum instrumento harmônico, apenas arranho uma rabeca. As melodias nascem por intuição. Começo a cantar e aí gravo em casa com um tambor e mostro aos músicos.

Nascida na Bahia, mas criada em Pernambuco, Karina absorveu as tradições da música regional, entre elas o ritual das pastoras, o cavalo marinho e o maracatu. Mais tarde, ao entrar na vida adulta, se debruçava à beira do palco em meio à borbulhante cena independente local. Bandas como Eddie, Mundo Livre S/A, Chico Science e Nação Zumbi efervesciam o cosmopolita cenário de Recife, que absorvia influências contemporâneas e as fundia com tempero local. E é justo pelo acúmulo de tal vivência que a cantora refuta a tese de que a faceta multidisciplinar, contemporânea e urbana de seu novo trabalho reverbere o sentido que sua vida ganhou ao se mudar para a capital paulista.

– Sempre estive perto de um som urbano. Não é porque estou em São Paulo que o meu disco reflete apenas essa vivência – garante. – Experimentei uma movimentação intensa na época do mangue. Eram muitas influências convergindo e isso veio comigo desde lá.

E foi por conta daquele “rebuliço” que Karina não topou um inusitado convite do diretor teatral Zé Celso Martinez Corrêa, que, ao assistir a uma performance de Karina à frente do Comadre Fulozinha, decidiu convidá-la para integrar o Oficina.

– Estava muito envolvida com a música, com o início da banda... E queria mostrar coisas novas – recorda.

Anos mais tarde ela não escapou à segunda investida de Zé Celso. Integrada ao Oficina, encenou Bacantes e, logo depois, encarou Os sertões. Radicada em São Paulo, os compromissos com a banda escassearam, mas a continuidade de sua produção musical não foi abalada.

– Confesso que não tinha muita consciência da importância do Zé Celso quando ele me convidou pela primeira vez. Me interessava a figura dele – lembra. – Quando fui a São Paulo entendi como funcionava o Oficina. Como atriz, cantava e compunha músicas para as peças. Não era apenas de teatro. Foi uma experiência muito intensa.

Aos poucos Karina entendeu que era chegada a hora de formatar as canções que burilava entre ensaios e coxias. Com a liberdade experimentada no Oficina, segue agora um fluxo próprio, sem barreira de gêneros ou impasse com os colegas de banda.

– Temos uma relação legal, mas estava me achando invisível... Não era uma necessidade de aparecer, mas de botar a cara a tapa. Não queria misturar as estações. E, sim, ter mais independência e liberdade.

Ouça Eu menti pra você aqui:
http://www.myspace.com/karinabuhr

*Publicada no Caderno B, do Jornal do Brasil.

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