NOTAS SOLTAS E RUÍDOS ESCRITOS

segunda-feira, 29 de março de 2010

Thiago Amud - Um autor barroco e contemporâneo

O semblante sereno, o corpo esguio e as passadas calmas do compositor e cantor Thiago Amud, 29 anos, escondem um turbilhão de referências artísticas que extravasam as óbvias comparações melódicas e líricas que perpassam o cancioneiro brasileiro. Prestes a lançar seu primeiro álbum, Sacradança, dia 26 de abril no Cinemathèque e 28 no Espaço Rio Carioca, o músico, que já foi gravado por Guinga e Milton Nascimento, é uma combustão que une à sua musicalidade a literatura de Dostoiésvky, a cinematografia de Fellini e, claro, ares tropicais e urbanos característicos de um morador da Urca.

Ao lado de Edu Kneip, Pedro Moraes, Chico Vervloet, entre outros, ele já foi colocado no cerne de uma neo-MPB. Crédito que educadamente repudia. Dono do seu nariz, acredita que os mais de R$ 10 mil tirados do próprio bolso para a gravação do debute, representam um esforço de repensar a condição autônoma do artista perante sua obra. Autor de todas as 10 canções, assim como dos arranjos para os instrumentos que povoam sambas, marchas, frevos, Amud propõe independência.

– Acho importante que as pessoas façam discos por conta própria, sem esperar as benesses de uma lei de incentivo, ou a chancela de uma gravadora – sentencia Amud. – Este é o caminho da arte. Sou um liberal defensor da autonomia artística.

Nietzschiano e ateu convicto durante a adolescência, agora convertido, Amud veste a capa do cristianismo, mas não deixa de provocar seus contemporâneos. A primeira canção de trabalho do álbum, Marcha dos desacontecimentos parte de uma perspectiva francamente cristã para fazer uma atual leitura de costumes. Inspirado pela leitura de Confissões, de Santo Agostinho, seus versos irônicos pregam o questionamento do politicamente correto.

– É uma espécie de crônica que denuncia um fenômeno atual: a tentativa das pessoas em substituir a responsabilidade individual por uma consciência coletiva – diz.

Sal insípido e Gnose song, que contam com a participação do compositor pernambucano Armando Lôbo, também compõem o viés apocalíptico do autor, diferentemente de Pedra de iniciação, que abre o trabalho.

– Somos compositores barrocos e expressionistas. Não nos furtamos a deixar a paisagem sonora cheia de reentrâncias, sobressaltos, abismos e criaturas estranhas – divaga.

No que o parceiro, de afinidades que transcendem o meramente musical, corrobora.

– A MPB está carente de ousadia e de certo veneno – dispara Lôbo. – Thiago percorre caminhos poéticos que não estamos acostumados a ouvir. Ele foge da velha tradição do lirismo amoroso e, quando entra no cotidiano, o faz de maneira corrosiva. Longe da irreverência gratuita, suas críticas têm substância e seu objetivo maior é a lucidez.

Navegando pelas águas bravias da polirritmia, da multiplicidade de camadas sobrepostas, Amud desbrava melodias que se desdobram ao ponto original das canções.

– Sei que corro o risco de ser tachado de hermético, já que a redundância é um marco central na história da canção popular.

Imbuído na tarefa de encontrar e propor uma nova síntese de brasilidade, aponta para a época de fragmentação de opiniões e considera seu trabalho um painel tropical de canções.

– Se o poeta ou o pensador retiram de si a incumbência da síntese, estamos selando a era do descompromisso e da substituição da responsabilidade do criador por um ar relativista – opina Amud. – Quero, sim, apresentar tensões nas letras e nos arranjos.

Para lidar com suas proposições de rupturas estéticas e existenciais, o artista aferra-se a referências nacionais, como Terra em transe, de Glauber Rocha; Choros nº 10, de Villa-Lobos; e Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa.

– Apesar das influências externas, não recebi esse caráter na Rússia de Dostoiévski e muito menos da Itália de Fellini. Esta minha esquizofonia nasce aqui. Mas digo que não faço música popular brasileira, mas, sim, música bipolar brasileira. É um disco de catarse e não cerebral.

Além de Caymmi, compõem o manancial de referências de Amud Pixinguinha, Chico Buarque, Milton Nascimento, Edu Lobo, Noel Rosa, Lupicínio Rodrigues, Elomar e, é claro, Guinga, que, do repertório de Amud, gravou Contenda para o disco Casa de Villa. Agora o compositor retribui o gesto e convida o mestre para cantar, e não tocar violão, em Irreconhecível.

– Ele é uma hidrelétrica da MPB. Vejo que minha geração reconhece sua obra porque ele estiliza ao máximo nossos gêneros. Chamei-o para cantar porque sua voz rouca carrega um sentimento lindo.

Para Guinga, que conheceu o compositor há 10 anos ao integrar o júri para um concurso de jovens talentos, Amud é um dos maiores compositores de canções dos últimos anos.

– Eu me comprometo a assinar quantas vezes for preciso que ele é um verdadeiro gênio da música brasileira – exagera Guinga. – Está ao lado de Chico Buarque, Milton Nascimento e Noel Rosa. Só não o comparo a Jobim e Pixinguinha porque são maestros.

Dono de alma buarquiana, nas palavras de Guinga Amud é progressivo e conduz a música brasileira adiante:

– Ele sozinho redime a enxurrada de coisas horrorosas, mas repletas de fama que vemos enaltecidas por aí.

Ouça essa: Marcha dos desacontecimentos



E mais aqui: http://www.myspace.com/thiagoamud

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