NOTAS SOLTAS E RUÍDOS ESCRITOS

quinta-feira, 11 de março de 2010

"Era no tempo do rei" embalado por canções inéditas de Aldir Blanc e Carlos Lyra

A ansiedade é incontida. Assim como irremediável qualquer “Fique tranquilo” amenizado pelo repórter. “O que você vai assistir não é exatamente a peça. O som ainda não está muito bom. Estamos sem o figurino...”, ressalta João Fonseca, segundos antes de simular o terceiro sinal que daria partida ao ensaio corrido do musical Era no tempo do rei, baseado no romance homônimo escrito por Ruy Castro. O relógio anda em contagem regressiva. A menos de uma semana da estreia o diretor dá a impressão de que ainda tem muito com o que se preocupar. Mas, ao que parece, não é bem assim. E, no fundo, ele demonstra saber disso. Aos primeiros minutos, já relaxado na poltrona de uma das primeiras fileiras do teatro João Caetano, ele se refestela em gargalhadas irrefreáveis ante à marcante atuação de Alice Borges, que dá vida à voluptuosa e histérica Dona Maria, a Louca. A matriarca da família real portuguesa serve como narradora onisciente do espetáculo; comenta e interage com os atores e com a plateia em meio a tiradas de lascar. Entre uma pontuação e outra, Fonseca deixa transcorrer sem grandes intervenções as cenas que, mesmo sem figurino, som e seja lá o que for, denotam a excelência da produção que o público carioca está prestes a conferir nesta sexta-feira (12), quando a montagem definitivamente entra em cartaz.

– Fui pego de surpresa. Até agora foi tudo muito corrido. Eu estreei uma peça no comecinho do ano e só pude começar a ensaiar no dia 18 de janeiro. A minha sorte é que eu tenho um elenco de sonho, além da riqueza do texto e das canções lindíssimas – elogia Fonseca, diretor de espetáculos como Gota d'água, assim como o recente e premiado musical Oui oui, a França é aqui.

Quando deixa escapar “canções lindíssimas”, ele se refere às 19 músicas inéditas criadas por uma igualmente debutante parceria entre Carlos Lyra e Aldir Blanc. Não é todo o dia que uma dupla de craques da MPB empresta talento melódico e lírico ao teatro. Exemplos marcantes, como o lendário encontro entre Tom Jobim e Vinicius de Moraes, para Orfeu da Conceição, ou as contribuições de Chico Buarque e Paulo César Pinheiro, entre outras emblemáticas, atiçam a memória e instigam a expectativa. Passeando por lundus, maxixes, modinhas, marchas-rancho, choros, valsas, fados, viras, entre outra infinidade de ritmos, o espetáculo ganha vigor com a execução de uma banda ao vivo, adornada por cordas e sopros, além de bandolim e cavaquinho.

– Compositores como esses criando canções exclusivas faz toda a diferença do mundo – derrama-se Heloisa Seixas, mulher de Ruy Castro e corroteirista da peça ao lado da filha, Julia Romeu. – Não chegam a ser 19 ritmos diferentes, mas Carlinhos é de uma inventividade... Só não temos samba porque o texto do Ruy se passa em 1810, dois anos após a chegada da corte ao Brasil. O samba não havia sido criado e o carnaval tinha outro nome.

Apaixonado pelas palavras pesquisadas e cravejadas no romance, Aldir Blanc encarou o desafio de criar faixas que respeitassem a linguagem da época, mas que, ao mesmo, tempo sugerissem uma entonação confortável. Em uma das passagens, Solilóquio para Vidigal, o letrista lançou mão de seu malabarismo poético para emprestar 15 sinônimos à palavra canalha.

– No livro, Ruy já havia pesquisado 10, mas Aldir não repetiu nenhum. Ele é de uma riqueza vocabular impressionante. Consegue ser culto, coloquial e escatológico ao mesmo tempo – destaca Heloisa. – Ele é louco pelo Memórias de um sargento de milícias, que dá certa base ao trabalho do Ruy. O Carlinhos sabia disso e o convidou logo no início do trabalho. Ele se apaixonou pela ideia.

Autor de canções para musicais como Pobre menina rica, ao lado de Vinicius de Moraes;Gata borralheira, com Maria Clara Machado; Vidigal, com Millôr Fernandes e Cangaceiro, com Zé Celso Martinez, Lyra não teve dúvidas, ao imaginar a trama cantada sobre o palco, em ligar imediatamente para Ruy Castro: “É a história do príncipe e de um menino. Isso dá um musical!”, disse.

– Senti todo o clima do Brasil império e a vivência desses garotos. Ele se empolgou e me perguntou se eu gostaria de criar com o Aldir, pensando que eu não fosse concordar... Aldir nunca foi meu parceiro, mas o nosso encontro foi magnífico. Queremos gravar a peça para lançá-la em DVD e as músicas em CD.

Enquanto afinavam as notas para a empreitada, Lyra sugeriu que Blanc lhe enviasse alguns escritos.

“Você vai colocar música nas letras?”, perguntou Blanc, ainda desconfiado.

Ante à afirmativa do compositor, o escritor retrucou desconfiado: “É porque nunca funciona assim com outros parceiros”.

– Ele ficou surpreso, e aí começou a escrever aquelas letras incríveis, verdadeiras obras-primas. Comecei a imaginar um ritmo para cada uma delas. Só não compus sambas, porque iríamos pecar pelo anacronismo. Foi muito gratificante, porque é o inverso do que faço no samba ou bossa nova. É um compromisso com a letra e a situação dramática. Não é qualquer um que quer ou sabe fazer.

Escrito em 2007, Era no tempo do rei recria de forma bem-humorada a chegada da corte portuguesa ao Brasil. Exatos 200 anos atrás, o ainda menino D. Pedro foge do palácio para curtir “as músicas melodiosas, as mulheres deliciosas e as paisagens lindíssimas”, como assinala o texto, em pleno Carnaval de 1810. Assim como o autor do livro, Heloisa Seixas e Julia Romeu sentiram-se desobrigadas a reproduzir fielmente a trama e as intrigas palacianas desenvolvida por Castro. Em pleno Centro da cidade, o cenário faz referência ao Rio antigo. Em meio a nove painéis, Pedro (Christian Coelho) e seu fiel assecla, Leonardo (Renan Ribeiro) – personagem emprestado do clássico Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antonio de Almeida – aprontam de tudo enquanto passeiam pelos Arcos da Lapa e do Telles, assim como pela Praça 15 e o Paço Imperial.

– Tomamos muitas liberdades. Fundimos personagens e transformamos alguns vilões em heróis – conta Heloisa. – Quando você transpõe uma obra literária para o teatro é natural a recriação e, com ela, a criação propriamente dita. É aí que surgem as alterações.

Mudanças que servem ao tom farsesco de uma comédia musical fiel ao pano de fundo cultural e histórico detalhado no texto original.

– Ruy foi muito generoso, e se manteve totalmente afastado até que concluíssemos o trabalho – revela Julia. – Deve ser difícil para ele perceber que muitos de seus personagens não estão na peça. Ele só assistiu quando estava pronto.

Apesar dos cortes, o que se vê é o mesmo frescor e safadeza contidos no livro.

– Evitei participar da adaptação porque acho que o autor não deve se meter. São linguagens diferentes – analisa Ruy Castro. – O mais importante é que se preserva o espírito, a densidade verbal e a ação. É a história de Portugal se defrontando com o Brasil. O jovem príncipe sendo recebido por um brasileiro que lhe ensina a arte das ruas.

No palco, em meio às peripécias dos adolescentes, se desenrola um golpe armado por Carlota Joaquina (Izabella Bicalho) para destituir D. João (Léo Jaime) do trono. Contando com o auxílio do diplomata inglês Jeremy Blood (Tadeu Aguiar), seu amante, ela se embrenha num Rio mezzo fictício mezzo real, onde passeiam figuras exóticas como o Major Vidigal (Luis Nicolau), o pilantra Calvoso (André Dias) e a prostituta Bárbara dos Prazeres (Soraya Ravenle), personagem real que, na trama, é mostrada como ex-amante do príncipe D. João. Leo Jaime ressalta uma necessária revisão da importância do governante português e ressalta alguns de seus feitos, como a criação do Banco do Brasil.

– Ele foi um grande estadista, que teve um trabalho gigantesco para trazer toda a biblioteca de Portugal para o Brasil de navio. Todo o planejamento urbano, paisagístico e estético que faz do Rio uma cidade maravilhosa também começou com ele – destaca o ator e cantor.

Preocupado em emprestar a D. João uma série de matizes, Léo Jaime canta, dança e rodopia em saltos no ar, sempre com sotaque azeitado e humor em boa medida.

– Não posso deixar o meu personagem cair num tom monocromático, simples e bobo. Depois do centenário começamos a entender que o brasileiro não tinha a concepção exata do que representou a família real portuguesa ao Brasil.

Parece que a gente nunca se redime da nossa alma de cachorro vira-lata, como dizia Nelson Rodrigues, sempre como se não fôssemos donos da nossa própria história.

Com um extenso currículo em musicais – Os cafajestes, Viva Elvis, Rock horror show, entre outros – o cantor ressalta o sinuoso repertório cunhado por Blanc e Lyra.

– As canções dão um toque de brilhantismo. É um apanhado de valor inestimável para o teatro musical brasileiro. Nós, que somos tão musicais, merecemos um repertório mais extenso, original, e que represente com beleza a nossa história.

Ruy Castro concorda:

– Não quero me antecipar, mas tem cheiro de clássico.

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