NOTAS SOLTAS E RUÍDOS ESCRITOS

domingo, 28 de março de 2010

Holly Miranda - Entre anjos e demônios, uma voz real

Muito antes de o sucesso bater à porta de seu apê no Brooklyn, em forma de contrato para o lançamento de The magician's private library pela XL Recordings (Radiohead), de extensa reportagem publicada no The New York Times, de elogios de Kanye West e Trent Reznor, e de cair nas graças de um dos mais renomados produtores atuais, o guitarrista Dave Sitek (TV on The Radio), Holly Miranda comeu o pão que o diabo passou longe de amassar. Acima de tudo que há sobre a Terra, havia Deus e uma igreja em Detroit. E só. Nascida no Michigan e criada no Tennessee, passou longos 14 anos, desde a infância até a adolescência, frequentando a igreja cinco vezes por semana. Tudo aparentemente normal se contarmos que suas influências remontam muitos ícones do r&b e da soul music. Mas não era porque a menina franzina e branquela se esgueirava em busca de espaço no coral da igreja que a música era algo rotineiro dentro de casa. Muito pelo contrário.

– Meus pais não me permitiam escutar música pop. Cinema era proibido. Eu não tinha TV a cabo, muito menos MTV, e certos desenhos animados eram tidos como demoníacos, como os Smurfs. A única permissão eram os discos da Motown – conta Holly, antes de um show que faria em Omaha, ao lado da dupla Tegan & Sara.

O motivo da exceção, aparentemente sem sentido, é simples. Seus pais eram de Detroit, berço da lendária companhia de discos.

– Tudo começou com a Motown. Escutava os discos de Smokey Robinson, Diana Ross, Aretha Franklin e muitos outros. Era o que me deixavam ouvir quando criança – recorda. – Mas eu só comecei a compor depois de descobrir Ani Difranco. Nunca havia escutado algo tão honesto, e isso me inspirou pelo menos a tentar.

Um pouco mais tarde, descobriu o paraíso de vozes e almas retumbantes que orbitavam entre os universos do jazz, blues e gospel. Entre eles: Nina Simone, Jeff Buckley, Leonard Cohen e Edith Piaf. A inspiração é evidente no álbum que acaba de lançar, por mais que se deixe levar pela produção contemporânea de Sitek, atravessada por guitarras com ampla ambiência, vocais modulados, e tintas referenciais que transitam pelo dream pop e pelo folk assinalado por nomes como Cat Power, Charlotte Gainsbourg, Feist e Beach House.

– São todos artistas fundamentais, que serviram para o meu desenvolvimento como musicista, compositora e performer – elege Holly. – Mas o que mostro agora é fruto de um longo trajeto. Comecei a tocar piano aos 14, compor aos 16, e quando conheci o Dave havia acumulado um arsenal de gravações.

Muito antes disso, numa casa em que a música pop era tratada com repulsa dogmática e como reverência diabólica, discos eram “contrabandeados” para adentrar os cômodos e fazer vibrar o aparelho de som da caçula. Sua irmã mais velha assinava às escondidas um serviço delivery de álbuns, sob os cuidados de um pseudônimo. Se valendo das noites endoidecidas da primogênita, Holly entrava em seu quarto de madrugada, de lanterna em punho, para roubar algumas peças. Foi assim que descobriu bandas como The Cure e Nine Inch Nails. Mas a alegria durou pouco...

– Meu pai descobriu o disco do Nine Inch Nails e quando leu versos como “fucking the devil in the backseat of your car” quebrou o disco ao meio e mandou minha irmã vender tudo.

Cansada da repressão familiar – tanto religiosa quanto homofóbica – que a impedia de se entregar à música e à sua opção sexual, Holly seguiu os passos da irmã, que havia se mudado para Nova York. Com apenas 16 anos, abandonou a escola, fugiu de casa e se meteu numa enrascada: chegou perto de assinar contrato com um pequeno selo bancado pela máfia. Decepcionada, voltou para casa, compôs novas canções, até que retornou, definitivamente, para a Big Apple. Aos 17, chegou a gravar um disco pela BMG, mas o projeto foi engavetado. Pouco tempo depois, formou a Jealous Girlfriends, e à frente da banda lançou dois álbuns, Comfortably uncomfortable (2004) e Roboxulla (2007). Instalada no Brooklyn, alugou um pequeno espaço de ensaios em Williamsburg, e ao abrir a porta do estúdio, deu de cara com o vizinho que mudaria a sua vida, Dave Sitek. Conforme os esbarrões pelo hall ganhavam constância, Holly passou a distribuir algumas de suas 40 demos ao produtor, até que, há dois anos, iniciaram as gravações.

– Nos tornamos amigos e a decisão de gravar juntos foi muito orgânica e natural – conta ela. – Foi uma experiência super intensa. Começávamos a gravar com o pôr do sol e terminávamos quando ele começava a despontar, durante um mês. Dave é como se fosse da família, então o ambiente era super confortável. Mas é claro que ele me levou a sair dessa zona de conforto para que eu tentasse uma série de coisas que normalmente não faria. Mas não forçou, fez com que eu quisesse arriscar.

Em pouco tempo Holly Miranda passou a colecionar elogios da crítica, embora ainda assombrada com as suposições de que teve pouca autonomia na elaboração dos arranjos – uma resenha publicada no The Guardian chegou a afirmar que a cantora não seria responsável pela sonoridade sinestésica e ambiciosa contida no disco.

– Eu sei que rondaram especulações sobre até que ponto eu tive envolvimento na feitura dos arranjos e das canções. Estive presente em cada segundo, e toquei o máximo de instrumentos que pude. Componho e gravo canções há muitos anos, esse é apenas o primeiro álbum que ganha vida. Dave tocou bastante coisa também. Tentamos gravar o máximo de instrumentos até que qualquer pessoa entrasse no estúdio para registrar os metais, por exemplo.

Contando com o toque especial de outros dois integrantes do TV on The Radio – o guitarrista e cantor Kyp Malone e o multiinstrumentista Jaleel Bunton – The magician's private library descortina um repertório comovente em meio a paisagens sonoras acinzentadas, desoladas e, por vezes, fantasmagóricas. Sob uma torrente de metais, cordas, teclados, guitarras, beats eletrônicos carregados de reverbes, versos sobre amor (Waves), sonhos e contos de fadas (Sweet dreams, Everytime I go to sleep e Sleep on fire) criam uma atmosfera envolvente e única.

– Só faltou o Tunde (Adebimpe, vocalista do TVoTR) – lamenta. – Não pensamos em nenhum conceito, as coisas fluíam conforme íamos nos relacionando. Seguimos nossos instintos...

Finalizado em 2008, Holly penou um longo tempo até que o trabalho chegasse às mãos da badalada XL Recordings. Diz que a angústia da espera foi um dos momentos mais difíceis da carreira.

– Acreditar e permanecer firme foram as maiores dificuldades que eu enfrentei – afirma. – Há muito tempo que trabalho essas canções, e chega uma hora que você começa a se perguntar: “Será que é isso mesmo que eu tenho a dizer?”. Isso fica cada vez mais pesado, ainda mais morando em Nova York.

Na metrópole, onde todo mundo vê, ouve e lê de tudo, do melhor ao pior, onde os estímulos sensoriais ganham carga e são excitados a cada segundo, onde artistas crescem exponencialmente para logo depois serem despejados na vala comum, voltarem para suas casas e arrumarem um emprego rotineiro, Holly sentiu todo o peso e a adrenalina de ser uma total desconhecida e, nos últimos meses, se tornar uma das mais comentadas artistas em ascensão.

– Aqui é tudo muito duro. Mas sempre soube que eu não poderia fazer nada diferente. Eu nunca seria feliz fazendo qualquer outra coisa – explica. – Independentemente de ter um contrato ou atenção da mídia, estarei sempre compondo. Mas nem tudo é ruim, é claro que tem o lado bom de estar aqui e poder conhecer pessoas maravilhosas.


Dave Sitek, Kyp Malone e Jaleel Bunton são algumas delas.

Ouça essa: Every time I go to sleep



E mais aqui: http://www.myspace.com/hollymiranda

Um comentário:

Lele disse...

Quer morar no Brooklyn comigo?