NOTAS SOLTAS E RUÍDOS ESCRITOS

terça-feira, 17 de março de 2009

Desconstrução de um sedutor

Um Don Juan infiel e imortal, que foge do seu perfil original numa completa desconstrução cênica. É o que propõem o produtor Allan Souza Lima e o diretor belga Thierry Trémouroux, que estreiam – e também atuam, ao lado de João Velho – nesta sexta, no Espaço Sesc, uma livre e nada fiel adaptação à célebre obra homônima de Molière. Brincando com a condição imortal do mito, eles fazem de tudo para fugir do texto clássico e de uma representação fidedigna do personagem. Um infiel por essência, que vive em constante fuga para se livrar da existência sedutora, mas vazia e solitária que criou para si desde a infância até a sua morte.

O produtor e ator Allan Souza Lima conta que passou o último ano atuando na novela Caminhos do coração (da Record) para levantar fundos e se dedicar à produção. Explica que a encenação se inicia com um debate sobre a infidelidade da peça para com o texto original; do diretor em relação aos atores; e destes em relação ao papel principal.


– São quatro atos que acompanham a trajetória de Don Juan desde o nascimento até o fim da sua vida, e também o surgimento de seus discípulos. Um deles sou eu – resume o produtor.

Atuando boa parte do tempo como o serviçal Leporello, no meio do espetáculo o ator João Velho encarna Juanito. E se aproveita da ambiguidade insinuada por seu próprio nome.

– Juanito representa sua fase infantil, quando começa a testar seus poderes de sedução e a exercitar suas primeiras safadezas. Faço um personagem imaginado, pensando como Don Juan seria na infância – descreve João, que é filho do ator Paulo César Peréio. O veterano participa do espetáculo numa imagem projetada em que dá uma lição de moral no conquistador.

O ator afirma que a infidelidade e as constantes fugas do protagonista aproximam a montagem de uma sociedade de realidades e sentimentos efêmeros como a nossa. Num mundo em pânico, frenético e caótico, Don Juan sentiria-se em casa.

– Essa balbúrdia alucinada pertence ao seu movimento vital. Por isso ele é tão contemporâneo.

Radicado no Rio desde 1992, Thierry Trémouroux volta a apostar, em seu novo espetáculo, em um mito como principal objeto de investigação e trabalho. Em 2001, além da montagem da peça Aqui jaz Marilyn Monroe 92-58-89 (da dramaturga alemã Gerlind Reinshagen), com sua companhia L’Acte, o belga promoveu leituras de Santo Elvis, do francês Serge Valletti.

– A desmitificação me interessa. Atiça minha curiosidade a idéia de descobrir o que se passa por trás desses grandes homens que não morrem nunca. Quando um mito fisga minha atenção, sei que tenho mais uma peça e uma personalidade para dissecar – conta o encenador.

A nova montagem repensa o mais famoso personagem cunhado por Molière. Lançando mão de diversas influências cinematográficas (Ingmar Bergman), literárias (o romancista Peter Handke) e até psicanalíticas (Lacan), os atores João Velho, Allan e o próprio Thierry dão vida ao célebre personagem, mas sem necessariamente encarná-lo. O diretor explica que Don Juan contamina e passa pela vida de cada um dos atores.

– Somos infiéis ao personagem e à peça de Molière, como o próprio protagonista é infiel. A maneira como Don Juan manipula as pessoas serviu de base para a encenação – afirma o diretor. – A peça se inicia com um clima circense, uma espécie de teatro dos horrores, onde o conquistador faz truques mágicos para seduzir as mulheres e a plateia, o que representa a grande encenação que foi toda a sua vida.

O diretor trata sua adaptação como um jogo de metalinguagem sutil em que discute a função do ator em cena. Ele afirma que a encenação estimula um olhar questionador sobre a condição dos atores, que ora atuam como o personagem e ora fora deste.

– Relaciono o nosso ofício ao hipócrita, que é a tradução em grego para o termo – explica Trémouroux. – Não podemos tratar da construção de um personagem sem a desconstrução do ator no palco. O Don Juan desconstruído que propomos é o nosso próprio espelho.

Em suas pesquisas, o ator passou a tratar o tubarão como uma espécie de símbolo para o espetáculo.

– É o maior predador dos mares. Está sempre nadando, porque se parar, ele morre. O Don Juan também está sempre em movimento atrás da sua presa – compara João. – No entanto, não o representamos como um personagem malandro, que se dá bem pegando todas as mulheres. Ele envelhece e cai num vazio existencial, mas sem maniqueísmo ou moralismo. Não passamos a mão na cabeça de ninguém, nem das mulheres que são seduzidas ou enganadas por ele. Ninguém é inocente.

Espaço Sesc – Sala Multiuso – Rua Domingos Ferreira, 160, Copacabana (2547-1088). Cap.: 70 pessoas. 6ª e sáb., às 20h; dom., às 19h. R$ 10. Estudantes e idosos pagam meia. Associados do Sesc pagam R$ 2,50. 14 anos. Até 5 de abril.

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