NOTAS SOLTAS E RUÍDOS ESCRITOS

domingo, 13 de setembro de 2009

Uma atriz entre o talento, o acaso e a perseverança

Escudada por uma assessora, ela desce calmamente os degraus curvos que dão acesso ao fundo do restaurante Garcia & Rodrigues, no Leblon. Vestindo um tailleur de linho branco sobre uma blusa listrada, calça e sapatos negros, cabelos devidamente aprumados e óculos de armação clássica que adornam seus vivos olhos, Fernanda Montenegro esbanja elegância. Não só pelo traje impecável, ou pela postura esguia, firme, ereta. De poucos gestos, fala cadenciada num ritmo preciso, sem pressa de atinar respostas à ponta da língua. Interpreta a todo o momento o que é novo em seu próprio pensamento. Age ao sabor do acaso. E é justo por isso que, 60 anos após se debruçar sobre O segundo sexo, de Simone de Beauvoir, teve a oportunidade de montar um texto baseado em sua autora predileta, Viver sem tempos mortos. Passados seis meses desde a primeira encenação do monólogo, no Sesc São Gonçalo, a atriz percorreu palcos da Baixada Fluminense, aterrissou em São Paulo e aportou na capital carioca, onde por dois meses colheu louros em sessões esgotadas no Oi Futuro, no Flamengo. A partir desta quinta-feira ela inaugura a Sala 2 do Fashion Mall. Com direção de Felipe Hirsch, empresta contorno dramatúrgico aos fragmentos de cartas e apontamentos autobiográficos que recheiam uma compilação pessoal de pensamentos da autora francesa. No palco, assim como na entrevista a seguir, ela trava uma despojada e modesta aproximação com a inesgotável obra da escritora, pensadora e ensaísta que revolucionou a visão do feminino. Discreta, após os cliques, poses e gestos comandados pelo fotógrafo, finalmente se deixa levar por suas paixões – e desabafa: “Não me acho fotogênica, mas vou vivendo. A gente nunca gosta da gente, essa que é a verdade, né? É tal a vaidade e a ambição sobre si mesmo que a gente nunca está feliz”.

Que impressão a literatura de Simone de Beauvoir lhe causou desde a primeira vez?

Eu devia ter 19 anos quando li O segundo sexo. Foi uma espécie de uma mão na qual você se agarra para te dar uma diretriz e uma consciência de que você é um ser humano, de que você deve construir a sua vida, de que é preciso ter liberdade para as suas opções. Não que até ali não tivéssemos mulheres libertárias, mas ela organizou sistematicamente uma visão do pensamento da mulher. A tônica era a liberdade. A mulher não era o outro. A igualdade compreendia a diferença. E isso foi muito forte para uma jovem que queria o teatro.

A senhora ainda não fazia teatro?

Era o fim da década de 40. Eu estava no rádio, tinha acabado de estrear no teatro, uma profissão sem futuro, envolta em preconceitos, sobretudo no ponto de vista comportamental. Era uma zona de libidinagem. Simone não criou uma revolução dentro de mim no sentido de pegar em armas, mas vi que eu tinha todo o direito, na calma e firmeza da minha vontade de abraçar a vida que eu queria e a vocação que que achava ter.

E por que, só agora, decidiu montar um texto baseado em seus escritos?

É interessante... 60 anos depois, quis o acaso e as circunstâncias que eu retomasse essa mulher, que teve sua imagem deturpada, foi chamada de fria, esquemática e assexuada. Quando, na verdade, era erotizada, se entregou às paixões, experimentou a vida e fez desta a prática da sua própria teoria. Agora, forma-se um arco a jovem que eu fui.

Além de Simone de Beauvoir, que outras autoras deixaram um legado para o comportamento da mulher moderna?

Clarice Lispector, Hilda Hilst e Marguerite Duras foram mulheres que pensaram grande com seus talentos e inspirações. Fizeram das suas vidas experimento para suas teorias e vontades. Formam uma galeria extraordinária de sensibilização. Um tipo de literatura ou de comportamento que nos ajudam a viver, como um ombro para encostar a cabeça.

Até que ponto, mesmo que inconscientemente, a relação de Sartre e Simone influenciou seu casamento?

A influência foi essa consciência de que você tem direito à sua liberdade. A existir como ser humano. Do ponto de vista comportamental, porém, não temos nada. A não ser, talvez, o sentido dessa cumplicidade de um par que se une durante 60 anos, independentemente do comportamento sexual. Existiu entre eles uma adesão acima de tudo, dos piores desencontros da vida. É há algo que nos fornece uma ponte a uma zona que é justamente o mistério do ser humano. E o Fernando Torres foi um companheiro e um mestre. Era muito direto, objetivo e, no teatro, sabia sempre quem estava ou não blefando em cima do palco.

O que significa viver sem tempos mortos?

É não se deixar morrer, não se deixar apagar. Mas também não fazer disso uma espécie de batalha contra um moinho de ventos, se bem que, às vezes é, preciso ir até contra os moinhos... É ir atrás das suas utopias. Como Simone, eu vivi isso desde a juventude. Uma hora vem o resultado, são 60 anos de palco.

Longe da juventude, prestes a completar 80 anos, como encara a vida, a finitude, a passagem do tempo e a morte?

Não é agradável. Não é barato. Não é consolador. Mas é. Então, a cada dia que eu acordo, pego a minha vida e a ponho em campo. Mas você sabe que você não vai mais viver os anos que passaram. É até engraçado notar certas coisas. No seguro saúde, quando o cônjuge vai embora, você tem direito a cinco anos de carência. Esse prazo existe porque o tempo de sobrevivência de quem fica não passa disso. Fizeram uma estatística e chegaram a essa conclusão. É humor negro, mas é verdade. Ainda ando, falo, sou independente, tenho amigos, saio de casa, estou dando conta da minha vocação, e o público ainda briga na porta dos teatros para assistir a um espetáculo nada cortejador, como se fosse uma deliciosa comediota.
Com a idade, o passado toma o lugar do futuro?

O meu futuro é hoje. E ele é alimentado pelo meu passado. Não o carrego como um fardo, como algo que foi ótimo e hoje não é.

E há planos para o futuro?

Em 2010, volto a fazer uma novela do Silvio de Abreu, com direção da Denise Saraceni. Vai ser muito prazeroso reencontrar velhos companheiros. Além disso, tenho um convite do Teatro Nacional do Porto para fazer A amante inglesa, de Marguerite Duras. E, lá no futuro, o novo filme do meu filho, Cláudio Torres, A sogra.

Qual o seu maior medo?

Perder a independência física, a memória e a locomoção. Hoje se vive mais do que em qualquer época. O mecanismo humano se gasta, mas continuamos vivos. Então é o desgaste dessa máquina que chega a um ponto de interferência total. Isso é duro demais. Mas eu não trabalho a morbidez desse pensamento, embora não o ignore. Não costuro essa camisa de força.

De que forma o teatro lhe ajuda? Qual é o maior desafio?

É minha análise. Está tudo lá. O desafio é dar conta de um vestibular diário. Mas é uma prova pública, não particular. O cinema e a TV não têm esse risco do salto mortal sem rede de segurança. Por razões eletrônicas e industriais, tem sempre uma salvação. Se você errou, faz de novo. No teatro, quem colabora com você fica do lado de fora. Quem vai à linha de frente da batalha, pega na baioneta, sai da trincheira para enfrentar a infantaria é o ator.

No início, foi difícil lidar com a exposição que a arte requer?

Você não faz teatro diante do espelho. Eu insisto há muitos anos. Se as pessoas não me conhecessem, seria uma tristeza.

Quando era nova, chegou a temer o fracasso? Ou de não poder viver da sua arte?

Dos 60 anos que vivi com o Fernando, nos viramos durante 20 numa economia paupérrima. Mesmo com nome na praça e trabalhando em diversas jornadas. Mas isso nunca foi problema. A partir de certa hora, veio o resultado, principalmente através da evolução da TV. Ela deixou de ser experimental e abriu campos de trabalho, aí começamos a respirar, mas continuamos fazendo teatro. Se hoje vivo bem, não foi porque caiu do céu. Às vezes trabalhávamos 20 horas por dia, a vida toda foi assim.

O que interessa é o que se ama, não o que se ganha...

Aqueles verdes tempos foram ótimos. Cinco anos em São Paulo abrigados em pensões modestas...

E já tinham filhos?

Ainda não. Eles vieram nos anos 60, ainda com a crise política, dentro do Golpe de 1964...

E como foi criá-los e viver de teatro em plena ditadura?

Os teatros eram invadidos. O povo com medo de sair às ruas. Sofremos a falta de liberdade de expressão, o que para o teatro é mortal. Havia duas censuras, a do texto e a do espetáculo. Às vezes, passávamos na do texto, mas tivemos uns cinco espetáculos cancelados que geraram uma agonia econômica e mental sufocantes. De um dia para o outro, todo mundo ficava a ver navios por causa da caneta de um censor.

O que a faz ser considerada a primeira-dama do teatro brasileiro?

É até constrangedor quando me destacam de uma geração ou grupo de trabalho. Isso é fantasia. Tenho uma vocação, acho que sou uma atriz dedicada. Agi, perseverei e persevero durante toda a vida.

2 comentários:

marcelo alves disse...

É uma artista fantástica. E "comediota" é um termo sensacional. Tinha que vir dela.
abs,
marcelo

Gardênia Vargas disse...

Maravilha!