NOTAS SOLTAS E RUÍDOS ESCRITOS

domingo, 7 de fevereiro de 2010

Lembranças cinematográficas de Luis Buñuel

“Precisamos começar a perder a memória, ainda que gradativamente, para nos darmos conta de que é essa memória que constitui a nossa vida. Uma vida sem memória não seria nada, assim como uma inteligência sem possibilidade de expressão não seria inteligência”. Com tal pensata, o cineasta Luis Buñuel (1900-1983) dá boas vindas ao leitor que se aventura a esmiuçar suas tortuosas lembranças na “semibiografia” Meu último suspiro, escrita em colaboração com o roteirista francês Jean-Claude Carrière. Invadida por uma profusão de armadilhas, invenções e devaneios, a memória de Buñuel, assim como a de todos nós, vacila e trapaceia contra a vigilância do diretor. Como num fluxo inconsciente, deixa escapar uma narrativa oral que valoriza e ergue à superfície suas reminiscências. Ao subsistirem à passagem do tempo, elevam-se à boca de forma inesperada e assumem condição de verdade histórica – ao menos pessoal, única e intransferível. Cineasta, e não historiador, deixa de lado as anotações. Desarmado, recorre ao escudeiro Carrière para traçar um painel de contornos surreais, uma composição de lapsos e luzes que deixa escorrer seus encantos: “O retrato que proponho é o meu, com minhas afirmações, hesitações, repetições e brancos, com minhas verdades e mentiras; para resumir: minha memória”.

Antes de tornar-se cineasta, Buñuel estudou música, engenharia agrícola e entomologia. Nascido na pequena Calanda, criou-se em Zaragoza, estudou em Madrid e foi um dos primeiros espanhóis a fixar residência na luminosa Paris dos anos 20. Desde que chegara, ia ao cinema até três vezes por dia. Arrebatava-se com filmes de Eisenstein, a quem viria a conhecer; entre eles, o Encouraçado Potemkin (1925) : “Ao saírmos estávamos dispostos a erguer barricadas, e a polícia teve que intervir”, recorda. Filmes de Pabst, Murnaus e, sobretudo, Fritz Lang o lançaram a um caminho sem volta: “Foi assistindo a A morte cansada (1921) que senti que queria fazer cinema. Alguma coisa me tocou profundamente, iluminando a minha vida”.

Fazer cinema? Espanhol, crítico bissexto e sem nada que representasse bons contatos, seu primeiro emprego foi como auxiliar de Jean Epstein, para Mauprat (1926), que o contratou para “varrer o chão, fazer compras, qualquer coisa”. Suas angústias como cineasta iniciante rendem detalhadas recriações de sonhos. Num deles, perde a memória ante o subir das cortinas num palco de teatro. Em outros, se aflige com um retorno ao serviço militar, em Madri; assombra-se com a aparição de fantasmas, revira-se em pesadelos com o pai morto, além de outros como o desespero pela falta de dinheiro para pagar contas: “Este é um dos que me perseguiram mais obstinadamente. Ainda me persegue”. E o mais perturbador e constante: ao chegar numa estação desconhecida, salta do trem para comprar algo, mas este não espera o seu retorno. O pavor de sentir-se sozinho na plataforma e sem os seus pertences fazia acordar aos berros quem estivesse próximo, como muitas vezes esteve Jean-Claude Carrière. “Como contar sua vida sem falar da parte subterrânea, imaginativa, irreal ?”, pergunta-se. Vivências, sonhos e devaneios são alimentos que enriquecem sua biografia e que, ao longo da vida, serviram de combustível a muitas cenas de longas como O discreto charme da burguesia, Viridiana, entre outros.

– Minha motivação era manter Buñuel trabalhando. Ele já estava muito velho para dirigir um filme, e estava completamente entediado com si próprio, no México.

Ao longo de 18 anos de convivência e muitas conversas, entre um trabalho e outro, Carrière colheu um vasto repertório de escritos.

– Eu o convenci a escrever um livro que poderia ser como um portrait, um “libro-retrato”. Para levar adiante, eu escrevi, sozinho, no México, um dos capítulos do livro, Os prazeres deste mundo. E, apesar de ele não gostar de falar sobre si mesmo, parece que ficou convencido. A partir daí, trabalhamos juntos, como num novo roteiro.

Antes de unir-se a Buñuel, Carrière havia trabalhado com Pierre Etaix, em filmes de comédia e documentários sobre a vida sexual de animais. Em 1963, Buñuel procurava por um roteirista francês em início de carreira para o seu próximo filme, O diário de uma camareira (1964). E foi em meio aos agitos do Festival de Cannes, que Carrière foi apresentado ao cineasta.

– Uma semana depois, o produtor do longa, Serge Silberman, me levou para a Espanha. Eu era um iniciante. Nós almoçamos juntos e conversamos sobre o projeto. Ele era um homem fisicamente impressionante, mas extremamente gentil e engraçado – recorda Carrière.

Ele conta que os primeiros contatos com o cineasta foram fáceis, apesar de, entre uma sai justa e outra, ter aprendido, de tempos em tempos, a dizer não ao chefe.

– O grande perigo era concordar com ele a toda hora e nunca propor nada, ser um “Mister Yes”. Levei algumas semanas para perceber isso – conta Carrière.

Excitado com o panorama desvelado por Buñuel, aproveitou a chance para sedimentar uma parceria que durou cerca de 20 anos, com nove roteiros escritos e seis transformados em filmes. Entre os quais, além de O diário..., A bela da tarde (1967), A Via Láctea (1969), O charme discreto da burguesia (1972), O fantasma da liberdade (1974), até o último, Esse obscuro objeto do desejo (1977).

– Não posso eleger um que sintetize o nosso trabalho, mas A Via Láctea é um filme que dividimos inteiramente. Já Esse obscuro objeto do desejo mexeu muito comigo. Provavelmente porque é o último que realizamos.

Mais que um roteirista, Carrière compartilhava e impulsionava a excêntrica imaginação de Buñuel. Jogava o seu jogo, e dava corda.

– De certa forma, era até fácil lidar com ele. Acho que a nossa relação foi se desenvolvendo até nos tornarmos realmente amigos. Eu era parte da família, mas o trabalho nunca deixou de ser bastante longo e, é claro, levado a sério – garante. – Uma vez, nós chegamos a trabalhar por duas semanas inteiras, mas sem achar nada que valesse à pena. Até que decidimos voltar para casa. Para se ter uma ideia, quando fizemos O charme discreto da burguesia, chegamos a escrever cinco diferentes versões para o roteiro. Sozinho, ou em conjunto, em algum lugar remoto, sempre no México ou na Espanha.

Carrière reconhece a profunda influência do cineasta, mas revela não dimensionar até que ponto seus roteiros exerceram poder semelhante.

– Eu realmente o encorajava a filmar, mas não faço ideia do que ele achava. Ele apenas dizia que gostava da minha imaginação e senso de humor. E até hoje, quando tenho que tomar uma decisão delicada, me pergunto: “O que Buñuel faria?”

Contradições do homem e a coerência do cineasta


Meu último suspiro narra as férteis experiências de um espanhol nascido na pequena Calanda, onde a velocidade dos acontecimentos remetia à Idade Média. Buñuel engendra o leitor numa travessia que percorre um século de grandes turbulências políticas e fervilhantes agitações artísticas. Do primeiro ao último suspiro, detalha um arco temporal que ganha tinta filosófica logo nas primeiras páginas e um arremate nas linhas finais: “Tive a sorte de passar a minha infância na Idade Média, época dolorosa e sofisticada... Dolorosa em sua vida material. Sofisticada em sua vida espiritual. Justamente o contrário de hoje”.

Diretor de obras-primas como Veridiana (1961, com o qual conquistou a Palma de Ouro em Cannes), Buñuel relembra, entre capítulos como “Os prazeres deste mundo”, “Sonhos e devaneios”, “O surrealismo (1929-1933)”, “A Guerra Civil Espanhola (1936-1939)”, “Ateu graças a Deus”, entre outros, detalhes de suas produções, a começar por Um cão andaluz (1928), primeiro filme surrealista feito em parceria com Salvador Dalí, entre outros como Os esquecidos (1950) e Nazarin (1958), rodados no longo período em que viveu no México. Dono de uma forte e complexa personalidade, o diretor presenteia Carrière com frases lapidares, agudas, sarcásticas e muito bem humoradas, acerca de sua vida boêmia, sua paixão pelo boxe e pelos prazeres da vida – incluindo passagens despudoradas e polêmicas, como o afastamento do amigo Garcia Lorca e as violentas brigas com Gala, mulher de Salvador Dalí.

Ateu graças a Deus

– Ele foi o primeiro espanhol a se instalar em Paris e a ingressar no grupo surrealista; por muitas razões, inclusive morais, é claro. A partir de então, convidou Dalí a entrar no grupo. Já Lorca nunca fez parte, mas Buñuel tinha por ele uma grande veneração, até o fim da vida.

Católico tornado ateu, considerado por muitos um iconoclasta, Buñuel era, ao mesmo tempo, realista, surrealista, marxista, anarquista, místico, anticlerical, sádico, moralista... Um emaranhado de paradoxos e contradições que regiam a mente de um homem inconformado com a decadência e a hipocrisia da sociedade. Educado sob a rigidez do catolicismo, cresceu desafiando tabus, pecados e desejos lascivos, questionando milagres e dogmas, reconhecendo suas primeiras obsessões, por armas ou sexuais. Muitas delas ampliadas na tela, captadas por Carrière e transformadas em literatura confessional de primeira.

– Ele tinha uma personalidade complexa e contraditória. E é por isso que foi Buñuel. Ateu numa atmosfera católica. Surrealista, mas sem nenhum gosto pela violência. Teoricamente anarquista, mas vivendo como um modesto burguês.

Nenhum comentário: