NOTAS SOLTAS E RUÍDOS ESCRITOS

terça-feira, 24 de novembro de 2009

No rastro de Godard

“Assisti Acossado aos 17 anos e um estalo se fez. Juntava dois dos meus maiores interesses à época, jazz e filosofia. Revelou algo desconhecido, até então, que o cinema era muito mais do que um programa de sábado à noite com os amigos. Era uma forma de arte. Mais que isso, a forma crucial da arte moderna”. A declaração acima poderia ser atribuída a um aficionado que tenha se deixado levar pelo encantos da sala escura a partir de uma projeção do longa inaugural da filmografia de Jean-Luc Godard. E é justo esse o caso do então jovem americano Richard Brody, hoje o renomado crítico de cinema da New Yorker.

– Aprendi sobre cinema assistindo aos filmes que ele discutia em suas críticas e acompanhando suas entrevistas – recorda Brody, em entrevista ao Jornal do Brasil.

A lembrança vem a calhar. Há exatos 50 anos, Godard dava corte final ao célebre À bout de souffle – em inglês, Breathless; e em português, Acossado. Sua estreia nos cinemas, em 1960, celebrada como um dos marcos da nouvelle vague, é também considerada um dos pilares dos filmes modernos. Prestes a completar 80 anos, em 2010, o cineasta não deixa de criar. Seu próximo longa-metragem, Socialismo, já dispõe de um trailer postado no Youtube e, em breve, ruma às telas. Admirador da cinematografia do mestre francês, desde o início da década Brody vasculha à fundo sua vida e obra. O resultado da imersão se desvela em Everything is cinema - The working life of Jean-Luc Godard. Em suas mais de 700 páginas, o prestigiado crítico dá forma e sentido ao manacial de conceitos e ideias colhidas em centenas de entrevistas e relatos do diretor. Organizados biograficamente e analisados de forma criteriosa, o livro tenciona desmistificar o indescritível e controverso cineasta, assim como a sua vasta e, muitas vezes, incompreendida obra vanguardistas e, sim, polêmica.

– Ele é o mais importante cineasta moderno, e, embora eu jamais esperasse escrever um livro sobre o seu trabalho, sabia que a ideia de fazê-lo seria uma empreitada muito valiosa – diz.

De Truffaut a relações amorosas

No calhamaço, o autor acompanha a trajetória de Godard desde as suas primeiras incursões no universo da crítica, a bordo de jornais parisienses e de revistas especializadas, como a La Gazette du Cinéma, criada pelo próprio, e, posteriormente, na Cahiers du Cinéma, de André Bazin. Lembra que a publicação lhe serviu de plataforma para esculpir as bases teóricas e estéticas que fomentaram a nouvelle vague, ao lado de nomes como François Truffaut, Eric Rohmer, Claude Chabrol, Jacques Rivette, entre outros. Brody investiga, em profundidade, suas experimentações na linguagem cinematográfica, catapultadas por Acossado e recebidas com efusão ao longo de oito anos de sucesso, até a chegada de A chinesa e Weekend. Daí então, trata das forças políticas que, a partir de 1968, conduziram suas lentes e o levaram a criar o grupo Dziga Vertov, batizado com o nome do diretor russo. E avalia suas produções até os dias de hoje. No viés pessoal, descreve, em detalhes, seus conflitos com o conservadorismo familiar (filho de um médico francês e de uma herdeira de banqueiros suíços) a evolução do seu pensamento político (atrelado ao maoísmo e tantas vezes atribuído ao comunismo) suas tempestuosas relações amorosas, com Anna Karina, e os conflitos em que se meteu mesmo com companheiros próximos, como Truffaut – romperam por questões financeiras e após uma severa crítica a A noite americana.

No prefácio de seu livro, Brody deixa claro que o artista, apesar de uma produção recente pouco avalizada pela crítica internacional, continua a trabalhar no mais alto patamar da criação artística. Para ele, não há dúvidas de que sua obra ainda é determinante para a evolução do cinema contemporâneo.

– Ele influenciou toda a cultura francesa daquele período. E é claro que isso se estendeu ao mundo. Nos EUA, é marcante o impacto de seus filmes em muitos cineastas. É muito maior do que muitos deles percebem. A nouvelle vague ainda é a referência principal do cinema produzido em todo mundo.

Cineasta da inquietação, Godard subverteu gêneros, fragmentou a narrativa, desestruturou a relação entre diálogos e imagens para talhar um cinema de ideias, a maioria delas retirada de um arsenal de referências literárias e fílmicas.

– Jean Cocteau e Jean Rouch foram especiais. O primeiro, por ser também um escritor. Já Rouch se tornou uma referência tardia, com a sua fusão entre documentário e ficção. Para Godard, a literatura fornece um modelo de como a arte pode representar o nosso mundo interno. E não foi copiando histórias de livros, mas pensando em como eles alcançam seus efeitos que ele intensificou o poder da emoção. Em Pierrot le fou, Ferdinand cita um trecho de James Joyce como um modelo, mas diz que o cinema pode ir mais longe. Foi o que Godard tentou, e com sucesso.

Cineasta dá bolo em escritor

Apesar da intensa pesquisa, Brody não chegou a construir uma relação pessoal com o recluso cineasta. O encontrou pela primeira vez em 2000, numa viagem à Suíça, em que teve a oportunidade de entrevistá-lo para um perfil que publicaria na New Yorker.

– Ele foi bastante generoso. Foram três horas de papo.

Godard mostrou ao jornalista alguns novos projetos e outros em andamento, filmes raros e outros nunca lançados. Além de ter o convidado para um jantar.

– Ficamos de nos encontrar no dia seguinte, mas ele não apareceu. Deixou apenas um pequeno recado. Fiquei chateado. Não pessoalmente, mas porque eu estava lá para trabalhar e ele interrompeu precocemente o que eu havia programado. Mas artistas são conhecidos por seus impulsos e caprichos, qualidades que definem sua arte.

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