NOTAS SOLTAS E RUÍDOS ESCRITOS

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Biografia revela a inquietação do dramaturgo Plínio Marcos

A epopeia de Plínio Marcos (1935-1999) foi intensa e plural, por mais que breve. Surgido num tempo em que o Brasil mergulhava em trevas pela opressão da ditadura militar – logo após os eufóricos anos JK, 50 anos em 5, cinema novo, bossa nova, imprensa livre – o dramaturgo santista escapou por pouco do exílio – apesar de ter conferido a carcaça quente do fundo de um camburão. Teve, sim, suas obras censuradas. Tolhidas do direito de expressar suas preocupações, angústias e, por que não, revoltas. A bordo de seu estilo verborrágico e enfático, armado pelo ímpeto combativo de suas ideias, impregnou-se da alcunha de autor maldito, inclinado a tratar de temas considerados proibitivos como homossexualismo, marginalidade, prostituição e violência. Se o país não tinha voz, o que dizer da do submundo da São Paulo sessentista que ele tanto insistia em investigar e lançar luz?

Figura difícil, até que peças como Navalha na carne (1967) e seus textos jornalísticos incomodassem militares, conservadores de plantão e moralistas de faro aguçado, foi tarólogo, camelô de seus próprios livros, técnico da extinta TV Tupi, jogador de futebol e palhaço. Ganhou reconhecimento e muitos amigos, mas foi pego pelo avesso da moeda, à beira da pobreza, perseguido, desempregado, sem casa própria e com um punhado de desafetos. Cada pormenor da breve introdução que inicia esta reportagem é contextualizado e detalhado em minúcias pelas 500 páginas que esculpem a biografia Bendito maldito, cunhado pelo jornalista Oswaldo Mendes. Com base numa apuração que reúne mais de 600 personagens, que tiveram, de uma forma ou outra, suas vidas impactadas pela obra de um dos mais importantes dramaturgos da história do teatro brasileiro, Mendes conduz o leitor por uma saga que traceja relatos, memórias e, principalmente, emoções à flor da pele.

– O dramaturgo já foi revelado e reconhecido através de inúmeras teses sobre a sua dramaturgia e montagens, que não param de correr o mundo – diz Mendes. – Meu livro deve revelar o homem capaz de gestos extraordinários, de uma generosidade que não urgia em ser exposta. A religiosidade de Plínio se manifesta pela paixão que le tinha pelos seres humanos.

Há 10 anos – mais precisamente em 19 de novembro, dia em que o amigo era enterrado – Mendes recebia um convite inesperado. O filho do diretor, Léo Lama, e o editor Quantim de Moraes lhe pediam que escrevesse sobre sua vida. Disse aos dois que não era hora para assumir tal compromisso.

– A cobrança se repetia, mas eu precisava de tempo. Não devia escrever sob a emoção da perda – lembra. – A escrita se processa por estranhos caminhos. Há um ano e meio comecei a extrair as histórias e deixá-las prontas na minha cabeça. Tinha longos depoimentos em que ele falava da sua vida, assim como outros que concedeu ao Quantim, mas que tive acesso.

Papos de redação e botequim

Ao topar o desafio, não fez de sua biografia um buraco da fechadura através do qual o leitor é convidado a invadir intimidades. Prefere documentar a contribuição histórica na área em que se destacou o biografado. Para isso, é claro, lança mão de histórias fascinantes, algumas inacreditáveis, que apagam em borrões a tênue linha entre realidade e ficção, mentira e verdade.
– Ele escreveu sua própria biografia enquanto esteve vivo. Seus artigos, crônicas e entrevistas revelam fatos e versões que se misturam. Fala sobre santos, coisas pessoais... O Plínio nunca contava uma história da mesma forma. Dependiam do humor, e ganhavam coloridos e contornos diferentes.

Conheceram-se em 1968, quando Dois perdidos numa noite suja era encenada na cidade de Marília, logo depois, se reencontraram na redação do Última Hora. Entre idas e vindas, trabalharam juntos por quase uma década. Em papos de redação e botequim traçavam assuntos diversos, não apenas teatro.

– Era um vulcão de ideias. Nunca monotemático.

Nos últimos 10 anos da vida de Plínio, tornaram-se ainda mais próximos. O companheiro havia saído da imprensa, atravessava dificuldades pelo desemprego e pela diabetes e vivia de biscates, vendendo seus livros em portas de teatro.

– Até o fim, defendeu com veemência suas ideias, com um entusiasmo que fazia os outros pensarem que ele estava brigando – conta. – Ele tinha vontade de dizer o que lhe vinha à mente, sempre numa linguagem muito peculiar. Ia para dar porrada e isso acabava contaminando a visão das pessoas. E ele ajudava a criar esses personagens de si. Acho que tem muito a ver com o palhaço que ele foi na juventude.

Ao contrário de seus textos publicados na imprensa, o autor defende a ideia de que sua obra dramatúrgica não contém traços biográficos. Define como aspecto fundamental da sua dramaturgia uma escrita desvinculada de um olhar umbilical. Não escrevia para extirpar dramas pessoais. A exceção fica por conta única e exclusiva do texto Balada de um palhaço. Na peça, dois palhaços, que na verdade representam um só, vivem sob dilemas.

– Se devem ou não agradar ao público com seu trabalho, se isso é se vender... Nesse embate, fica claro que é Plínio quem fala. Só podemos reconhecê-lo nesse texto. Fora isso, nunca usou seus personagens para se defender. Defendia, sim, o ponto de vista dos marginalizados, daqueles jogados para escanteio... Dava voz para o povo.

Escrevia sempre motivado por histórias que via ou ouvia, mas que, sobretudo, o emocionassem. Definia-se como um repórter do mal.

– Plínio tinha uma intuição e uma percepção profunda sobre a humanidade. Olhava o ser humano com paixão. Tentando entendê-lo e fazendo com que todos se manifestassem.

Para a crítica teatral e amiga íntima Ilka Maria Zanotto, que também assina o prefácio do livro, a biografia de Mendes se desvela como um espetáculo teatral dividido em atos e cenas, cortado por flashbacks e zooms, em vaivéns que, através de uma linha do tempo rigorosa e repleta de fatos, situam o leitor em meio ao turbilhão de histórias que o furacão Plínio protagonizou – ou, como era do seu feitio, provocou. Entre elas, a montagem de Dois perdidos numa noite suja, no Rio de Janeiro, em abril de 1967, com Fauzi Arap e Nelson Xavier – fato decisivo para o reconhecimento do dramaturgo pela crítica. Ainda em 1967, embalado pela repercussão de Dois perdidos..., Plínio concluiu em três noites uma nova peça, Navalha na carne, sumariamente proibida pouco antes de sua estreia. Para os militares, seu trabalho continha cenas “obscenas, termos torpes, anomalias e morbidez”. Sem meias palavras, direto e convincente, dava tratamento dramático à realidade de prostitutas, gigolôs e bandidos. Considerado subversivo, teve outras peças proibidas, como Abajur lilás (1970), um dia antes da estreia.

– Ele era perseguido. Perdeu todos os seus empregos. Era uma barbaridade o que fizeram – lamenta. – Mas o que ele dizia não era nada mais que a realidade. Ele incomodava a alma, mas não era algo ideologicamente engajado. Dava voz aos que não sabiam de sua miséria. Amava ao próximo com todas as suas contradições. Afinal, não era um anjo, mas um homem.


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