NOTAS SOLTAS E RUÍDOS ESCRITOS

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Filmada por Lázaro Ramos, posse de Obama vira curta exibido no Odeon

Bastou virar o ano. Ele atulhou seus pertences em malas e mochilas e zarpou rumo a Nova York com o intuito de trocar de pele. Durante um mês inteiro, se dedicaria às aulas de inglês e workshops sobre cinema e teatro. Hotel reservado, roteiro assinado, tudo dentro do script. Até que um sentimento inexplicável pregou uma peça em Lázaro Ramos. Naquela terceira semana de 2009, o destino, ou o acaso atacado de mania de grandeza, como disse Mário Quintana, riscou novos planos para o ator. O presidente eleito dos EUA, Barack Hussein Obama, faria seu discurso de posse no Capitólio, em Washington – a algumas milhas de distância. E a vontade de ir até lá e ver o acontecimento de perto pulsava forte, até que o ator não se conteve: “Trem ou avião?”, pensou. Embarcou no primeiro vagão com intenções ainda bambas ventilando a cabeça. Num impulso, decidiu filmar o palavrório do novo governante. Não sabia da necessidade de autorização para as filmagens e muito menos se era necessário descolar um passe para desfrutar os disputadíssimos centímetros no solo em frente ao palanque. Uma coisa era certa: de um jeito ou de outro, era obrigação registrar tal momento. “Era algo histórico”, afirma. Transformado em curta-metragem e exibido como parte integrante do programa que comanda no Canal Brasil, Espelhos, o documentário de 23 minutos O dia da posse de Obama ganhou a tela do Cine Odeon no último dia 15, a bordo da 3ª edição do Encontro de Cinema Negro.

“Fiquei superentusiasmado com o convite. O canal está dentro do pacote mais caro da TV paga, então poucos espectadores puderam vê-lo na íntegra, enquanto outros assistiram a apenas alguns trechos no YouTube”, diz Ramos.

De mochilas nas costas, câmera nos ombros e Obama na cabeça, deixou-se levar pela vontade de ver e ouvir o que o novo presidente tinha a dizer. “Era janeiro, eu estava em Nova York, Obama faria o discurso de posse e eu tinha uma pequena câmera na mochila”, conta o ator. “Descobri no caminho que, para entrar, seria dificílimo. Não tinha nenhuma autorização oficial... E aí nasceu a ideia de registrar o que acontecia no meu trajeto e o comportamento das pessoas que se dirigiam ao lugar”.

No dia anterior, a imprensa nova-iorquina publicava a imagem de Obama ao lado de uma foto de Martin Luther King.

Na manchete, “O sonho se realiza”. Para o ator, um acontecimento comparável ao emblemático discurso do líder negro e às Diretas Já. “Era algo tão forte que, naquele momento, qualquer pessoa que estivesse com uma câmera na mão estava prestes a registrar algo imediatamente precioso”.

No dia 20 de janeiro, Lázaro captou quatro horas de imagens que ilustravam o sentimento do americano comum.

“Dei atenção especial ao modo como as pessoas ao redor agiam, o que deu um sabor inesperado e único ao filme”, conta. “É o que fez o curta ganhar força. Depois, descobri que não existiam relatos ou imagens parecidos com os que eu consegui. Pesquisei no YouTube e não tem igual. Foi algo totalmente despretensioso. Você vê o que é o acaso, justo numa época em que tudo se filma”, reflete.

Até lá, alguns perrengues não deixaram de cruzar seus ansiosos passos. Tomou safanões mis, por pouco ficou sem um bilhete de passagem e teve que se safar da truculência de seguranças que insistiam em meter a mão em sua câmera, proibindo-o de filmar.

“Não pude mostrar isso no filme, é claro, mas tomei empurrão até não aguentar mais. Era muita gente. Tudo foi complicado, desde achar a porta de entrada até descobrir que precisava de um ingresso. Mas captei depoimentos sensacionais”.

Registrou republicanos que se tornaram devotos ferrenhos da Obamania, além de homens e mulheres desejosos de expressar seus medos, incertezas, mas, principalmente, esperanças.

“Inicialmente, iria filmar o discurso, mas o que eu consegui é muito mais precioso. Não estou centrado no líder e no que ele tem a dizer, mas no sentimento das pessoas. Eu me concentro na ótica do povo, e não no mito”.

O frio, a preocupação em não errar com a câmera e a dor nas costas por passar horas de pé suportando todo o equipamento não lhe permitiram emoção.

Intimidade na cafeteria

“Só quando eu cheguei à ilha de edição e coloquei a fita para rodar que pude sentir na pele”, recorda. “Eu acabei assistindo ao discurso numa cafeteria, porque de onde eu estava não veria nada. E isso rendeu um clima de intimidade com os frequentadores do lugar, algo muito emocionante”.

Naquele dia, ao sair da tal cafeteria, o ator não se deu por satisfeito. Já era fim de tarde, caía a noite e a exaustão lhe subtraía o ânimo, mas decidiu voltar ao lugar para uma última rodada de depoimentos e uma tentativa, a princípio ilusória, de encontrar algum modo de chegar mais perto do presidente.

Ao percorrer o extenso gramado em frente ao Capitólio, observou um portão semiaberto que poderia lhe dar acesso a uma área totalmente isolada. Não titubeou e abusou do descuido alheio.

“Tomei coragem e entrei. Lá, tinha uma senhora escutando o discurso num radinho de pilha. Ela ficava repetindo para mim o que Obama dizia”, conta. “Chegou uma hora que eu estava acabado e queria ir embora, mas decidi ficar em pé por mais algumas horas, esperando alguma chance de vê-lo, uma surpresa qualquer, enquanto filmava quem estava ali comigo. E aí, do nada, Obama surgiu a menos de 30 metros de distância. Não acreditei naquilo. Se eu tivesse conseguido uma entrada, nunca conseguiria estar tão próximo”.

Apesar da perseguição à moda groupie, o ator deixa claro que a admiração que deposita não escorrega em idolatria desmesurada, ingenuidade eufórica e muito menos numa paixão alienada por Obama. Tem a exata noção de que o presidente “defende os interesses do seu país, como qualquer líder de governo”, diz. Mas não deixa de enaltecer o salto que sua assunção ao poder representa para um país que viveu sob a “ignorância e radicalidade do governo republicano de George Bush”.

“Ele é americano e tem seus valores, mas tenho uma identificação com a sua origem, sua postura e honestidade. Como ele mostrou numa recente entrevista ao David Letterman”, cita.
Nos primeiros 100 dias em que esteve no poder, o governo Obama registrou umas das mais expressivas percentagens de aprovação da história americana. Prestes a completar um ano de mandato, uma pesquisa divulgada no início desta semana revelou parcos 53% de análise positiva. Uma queda vertiginosa que, em alguns casos, já orbita entre 52% de reprovação, contra 46% de aprovação. As críticas ao desempenho de Obama, porém, pouco abalam as convicções do ator.

“O Betinho já dizia, 'quem tem fome, tem pressa'. Então, encaro como natural toda essa urgência. É um país em crise, que plantou o que está colhendo. Ele está no olho do furacão”, teoriza. “É claro que a euforia pela troca de governo não ia se sustentar até o fim. Ele sabe que não pode fazer tudo o que planeja de uma hora para a outra”.

Provocação e reflexão

O flerte com a política não flui à toa do discurso do ator baiano. Está vinculado às suas raízes, ao engajamento social como integrante do Bando de Teatro Olodum, grupo que o formou. Da arte à política, Lázaro se entrega à missão de explorar novas e diversas facetas. Fascínio que, na condição de ator, o faz vestir a capa de personagens diversos. Tanto os considerados alternativos, como o violento Madame Satã, no filme homônimo dirigido por Karim Aïnouz; e o jovem Deco, em Cidade Baixa, de Sérgio Machado, quanto os mais populares, como o cômico Foguinho, que pintou as telas em Cobras & lagartos, e o Roque, da nova temporada da série Ó paí, ó, que estreia na sexta-feira.

“Meu barato é a diversidade. Vou do alternativo ao popular, sem pudores. Gosto de caminhar entre opostos, porque as pessoas insistem em rotular e eu não quero me acomodar. Gosto de ser tudo e quero ser tudo, sempre buscando qualidade e respeito aos diálogos que marcam a minha trajetória”, explica. “Vejo que alguns produtos se posicionam apenas como um painel de intenção política e perdem a oportunidade de gerar pensamento. E não acho que seja uma obrigação vincular arte à política. No meu caso, tenho, sim, interesse por temáticas sociais e acho que a arte ainda tem grande poder como instrumento de provocação e reflexão”.


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