– Sempre me perguntei por que tantas mulheres inteligentes acabam tirando a própria vida – diz Paulo José, que volta a atuar em teatro após nove anos. – Parece que não conseguem suportar esse terrível rótulo do feminino. Como se a mulher não tivesse o direito de ser inteligente. Desde que li seus primeiros poemas, em 1983, Ana me pareceu rebelde em relação a tudo isso.
Convivência pouco amigável
Para a montagem, Ana Kutner assume o papel-título, enquanto seu pai, o diretor Paulo José, vive a si próprio. Construída a partir de uma peça escrita por Maria Helena Kühner, em 1996, o texto, a princípio um monólogo, ganhou nova feição dramatúrgica sob as mãos de Walter Daguerre, que decidiu incluir a breve e pouco amigável convivência entre Paulo José e a escritora nos bastidores da TV Globo.
– Mudamos o rumo quando nos deparamos com o livro Antigos e soltos, publicado recentemente. Encontramos ali material para mais de 20 peças – conta Ana.
Com a maior parte da narrativa extraída de prosa e poesia, rascunhos, textos inacabados, bilhetes, cartas, diários e frases soltas da autora de Luvas de pelica (1980) e A teus pés (1982), o espetáculo não pretende responder às recorrentes indagações que remontam os motivos de um suicídio. Pelo contrário, urge em amplificar, a partir de sua palavra poética, as reticências, dúvidas e a complexidade de seu pensamento. Apresenta ao espectador suas buscas e angústias, a inquietação que impulsionou sua escrita – metade ficcional, metade biográfica.
Assim como a sua obra, o espetáculo expõe enigmas e lança no palco as peças para que o público se encarregue de montar o quebra-cabeças.
– Não há resposta para o que leva alguém à solidão e ao desejo de se matar. E é difícil resumir a vida de uma pessoa em pouco mais de uma hora, ainda mais de alguém tão intensa como ela – conta a atriz. – Ana era um vulcão, com diversas facetas e personagens. Mais do que fazer uma peça sobre uma suicida, queremos falar do caráter genial de sua obra. Sua escrita tinha o poder de fazer com que o leitor se sentisse parte do poema. Um comprometimento que aproximava o leitor.
Predestinada a traçar caminhos literários, aos 4 anos passou a ditar aos pais seus primeiros versos. E aos 20 e poucos tornara-se tradutora de nomes do porte de T. S. Eliot, Ezra Pound, Emily Dickinson, Mallarmé, Dylan Thomas, Walt Whitman e Sylvia Plath. A mesma precocidade, impulso e obstinação que a levou a riscar as primeira linhas, traduzir com esmero obsessivo outras obras e a retirar-se do mundo aos 31 anos e com apenas um livro publicado. Entre o início e o fim de sua curta e potente trajetória, de necessidade profunda do ato de escrever, Paulo José e Ana Kutner lançam mão de adjetivos que a sintetizam como uma combustão de lucidez, loucura, talento, senso crítico e, além de tudo, visceralidade.
– Sempre mantive uma relação muito próxima com a poesia. Acompanhei e li muitas gerações de poetas, inclusive a dela, dos mimeógrafos, que se distingue bastante das anteriores – conta o ator. – Ela circulava na academia e entre os poetas marginais, Chacal, Cacaso e Geraldo Carneiro. Mas o que me deixa encantado é que, a meu ver, ela não se enquadrava em nenhum movimento, grupo ou rótulo geracional. O que ela tinha com esse pessoal era uma coincidência de idade. Mas sempre foi diferente, uma figura rara, mulher.
“Aquela pedante, chata e pretensiosa era uma grande escritora”
À época em que travaram contato pela primeira vez, em 1982, Paulo José havia sido escalado pela Rede Globo para criar um novo programa. O produto deveria concorrer com o então líder de audiência O povo na TV, exibido pela extinta Tupi. Entre idas e vindas do projeto pelo Departamento de Análise de Textos, Caso verdade recebia críticas ferozes de um funcionário, assinadas com a abreviatura “A. C. César”, que irritavam o diretor. Recém-chegada da Inglaterra, onde concluíra o Master of Arts (M. A.) em Teoria e Prática de Tradução Literária, Ana Cristina integrava o tal departamento.
– Ela era implacável com os roteiros. Nos relatórios que circulava na direção, dizia que eram superficiais e simplórios – lembra o ator.
Em menos de um ano, ele e a analista de roteiros tornaram-se, na sua definição, “inimigos quase íntimos”.
– O fato é que ela estava no lugar errado. Eu tinha que fazer um programa popular que atraísse as senhoras, os aposentados e as empregadas domésticas...
Pouco tempo depois da estreia do programa, Paulo se deparou com o segundo livro de Ana Cristina Cesar, A teus pés. Já afastada dos quadros da Globo, a poeta deixou o
ex-companheiro pasmo com o trabalho. Amante da poesia, o diretor ficou impressionado com o misto de sofisticação e visceralidade.
– Comprei o livro e vi que aquela pedante, chata e pretensiosa era uma grande poeta. Não trabalhávamos juntos nessa época. Vi sua fotografia em jornal, e no dia 29 de outubro fiquei perplexo com a sua morte. A partir daí, me bateu um grande remorso, por ter vivido ao lado de uma pessoa incrível como ela e de ter perdido tanto tempo com besteiras.
A montagem marca a volta aos palcos do ator, após um hiato de nove anos. Além do reencontro com a atuação no palco, a peça serve ao primeiro encontro cênico com a
filha Ana Kutner:
– Grupo de teatro tem a ver com família. Agora concretizo dois desejos de uma só vez.
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