NOTAS SOLTAS E RUÍDOS ESCRITOS

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Memórias de Ana Cristina César

Em torno da multifacetada e intensa vida da poeta Ana Cristina Cesar (l952-l983) não falta espaço para mistérios, angústias, sentimento de perda e, acima de tudo, encantamento – seja pelo primor de seus escritos quanto pela verve dramática de sua trajetória pessoal, interrompida aos 31 anos, ao se atirar do oitavo andar do apartamento de seus pais, em Copacabana. A julgar pelos traços da sua vida e obra, há tempos a literatura, o cinema, a TV e o teatro poderiam ter iluminado sua breve e impactante existência. Tributo que, sob o empenho de Paulo José e sua filha, a atriz Ana Kutner, chega aos palcos sob o título de Um navio no espaço ou Ana Cristina Cesar, que inaugura, nesta sexta, o novo Teatro Oi Futuro Ipanema.

– Sempre me perguntei por que tantas mulheres inteligentes acabam tirando a própria vida – diz Paulo José, que volta a atuar em teatro após nove anos. – Parece que não conseguem suportar esse terrível rótulo do feminino. Como se a mulher não tivesse o direito de ser inteligente. Desde que li seus primeiros poemas, em 1983, Ana me pareceu rebelde em relação a tudo isso.

Convivência pouco amigável

Para a montagem, Ana Kutner assume o papel-título, enquanto seu pai, o diretor Paulo José, vive a si próprio. Construída a partir de uma peça escrita por Maria Helena Kühner, em 1996, o texto, a princípio um monólogo, ganhou nova feição dramatúrgica sob as mãos de Walter Daguerre, que decidiu incluir a breve e pouco amigável convivência entre Paulo José e a escritora nos bastidores da TV Globo.

– Mudamos o rumo quando nos deparamos com o livro Antigos e soltos, publicado recentemente. Encontramos ali material para mais de 20 peças – conta Ana.

Com a maior parte da narrativa extraída de prosa e poesia, rascunhos, textos inacabados, bilhetes, cartas, diários e frases soltas da autora de Luvas de pelica (1980) e A teus pés (1982), o espetáculo não pretende responder às recorrentes indagações que remontam os motivos de um suicídio. Pelo contrário, urge em amplificar, a partir de sua palavra poética, as reticências, dúvidas e a complexidade de seu pensamento. Apresenta ao espectador suas buscas e angústias, a inquietação que impulsionou sua escrita – metade ficcional, metade biográfica.

Assim como a sua obra, o espetáculo expõe enigmas e lança no palco as peças para que o público se encarregue de montar o quebra-cabeças.

– Não há resposta para o que leva alguém à solidão e ao desejo de se matar. E é difícil resumir a vida de uma pessoa em pouco mais de uma hora, ainda mais de alguém tão intensa como ela – conta a atriz. – Ana era um vulcão, com diversas facetas e personagens. Mais do que fazer uma peça sobre uma suicida, queremos falar do caráter genial de sua obra. Sua escrita tinha o poder de fazer com que o leitor se sentisse parte do poema. Um comprometimento que aproximava o leitor.

Predestinada a traçar caminhos literários, aos 4 anos passou a ditar aos pais seus primeiros versos. E aos 20 e poucos tornara-se tradutora de nomes do porte de T. S. Eliot, Ezra Pound, Emily Dickinson, Mallarmé, Dylan Thomas, Walt Whitman e Sylvia Plath. A mesma precocidade, impulso e obstinação que a levou a riscar as primeira linhas, traduzir com esmero obsessivo outras obras e a retirar-se do mundo aos 31 anos e com apenas um livro publicado. Entre o início e o fim de sua curta e potente trajetória, de necessidade profunda do ato de escrever, Paulo José e Ana Kutner lançam mão de adjetivos que a sintetizam como uma combustão de lucidez, loucura, talento, senso crítico e, além de tudo, visceralidade.

– Sempre mantive uma relação muito próxima com a poesia. Acompanhei e li muitas gerações de poetas, inclusive a dela, dos mimeógrafos, que se distingue bastante das anteriores – conta o ator. – Ela circulava na academia e entre os poetas marginais, Chacal, Cacaso e Geraldo Carneiro. Mas o que me deixa encantado é que, a meu ver, ela não se enquadrava em nenhum movimento, grupo ou rótulo geracional. O que ela tinha com esse pessoal era uma coincidência de idade. Mas sempre foi diferente, uma figura rara, mulher.

“Aquela pedante, chata e pretensiosa era uma grande escritora”

À época em que travaram contato pela primeira vez, em 1982, Paulo José havia sido escalado pela Rede Globo para criar um novo programa. O produto deveria concorrer com o então líder de audiência O povo na TV, exibido pela extinta Tupi. Entre idas e vindas do projeto pelo Departamento de Análise de Textos, Caso verdade recebia críticas ferozes de um funcionário, assinadas com a abreviatura “A. C. César”, que irritavam o diretor. Recém-chegada da Inglaterra, onde concluíra o Master of Arts (M. A.) em Teoria e Prática de Tradução Literária, Ana Cristina integrava o tal departamento.

– Ela era implacável com os roteiros. Nos relatórios que circulava na direção, dizia que eram superficiais e simplórios – lembra o ator.

Em menos de um ano, ele e a analista de roteiros tornaram-se, na sua definição, “inimigos quase íntimos”.

– O fato é que ela estava no lugar errado. Eu tinha que fazer um programa popular que atraísse as senhoras, os aposentados e as empregadas domésticas...

Pouco tempo depois da estreia do programa, Paulo se deparou com o segundo livro de Ana Cristina Cesar, A teus pés. Já afastada dos quadros da Globo, a poeta deixou o
ex-companheiro pasmo com o trabalho. Amante da poesia, o diretor ficou impressionado com o misto de sofisticação e visceralidade.

– Comprei o livro e vi que aquela pedante, chata e pretensiosa era uma grande poeta. Não trabalhávamos juntos nessa época. Vi sua fotografia em jornal, e no dia 29 de outubro fiquei perplexo com a sua morte. A partir daí, me bateu um grande remorso, por ter vivido ao lado de uma pessoa incrível como ela e de ter perdido tanto tempo com besteiras.

A montagem marca a volta aos palcos do ator, após um hiato de nove anos. Além do reencontro com a atuação no palco, a peça serve ao primeiro encontro cênico com a
filha Ana Kutner:

– Grupo de teatro tem a ver com família. Agora concretizo dois desejos de uma só vez.

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