NOTAS SOLTAS E RUÍDOS ESCRITOS

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Medida por medida

Montada pela primeira vez por uma produção 100% brasileira, a encenação da comédia Medida por medida, de William Shakespeare, estréia da semana no Centro Cultural Banco do Brasil, marca também a primeira incursão do diretor e ator Gilberto Gawronski no comando de um texto do bardo inglês. Embora já tivesse atuado em Sonho de uma noite de verão (dirigido por Moacyr Góes, em 1984) e em Rei Lear (ao lado de Raul Cortez, em 2000), Gawronski concretiza agora um antigo desejo: lançar seu olhar sobre o texto que, junto a Tudo bem quando termina bem e Troilus e Créssida, compõe a trilogia de “peças sombrias” escritas pelo dramaturgo inglês, que navegam pelos meandros do debate moral e ético.

Comportamento, sexualidade, poder e hipocrisia são os temas que amarram o escrito, cuja primeira montagem foi levada aos palcos em 1604. Acostumado a dirigir espetáculos da sua lavra, assim como de autores contemporâneos, como Caio Fernando Abreu e Daniela Pereira de Carvalho, Gawronski se deu conta da afinidade entre o seu trabalho e essa obra.

– Falamos sobre hipocrisia, a falsa moral e o comportamento sexual dos seres humanos – define Gawronski. – São temas recorrentes no meu trabalho como diretor ou autor. Acho extremamente oportuna a montagem numa época de tolerância zero como a que vivemos. Nenhum ser humano é completamente puro ou incorruptível. Se fosse assim, seríamos todos heróis ou santos. Só existem leis e a religião porque o homem as infringe e peca. Como diz Brecht: “Infeliz a nação que precisa de heróis”. Devemos valorizar o ser humano.

Respeitando o rigor do teatro elisabetano da época em que a peça foi concebida, onde apenas homens podiam atuar, Gawronski reuniu 13 atores para representar personagens masculinos e femininos, entre eles Rodolfo Bottino (Japassada), Sergio Maciel (Isabela) e Rafael Leal (Mariana).

– A opção por um elenco composto só por homens não é uma apelação, e sim mais um elemento de comicidade no texto – destaca o diretor. A adaptação também reduziu o número de personagens do original (ao todo 19).– No teatro elisabetano, os personagens falam direto para o público. Por isso, suprimi algumas intervenções que serviam apenas como suporte – explica.

Apesar dos cortes, o diretor faz questão de entrar em cena. Interpreta o marginal Bernardino. Condenado a morte há mais de nove anos, ele perambula livremente pelo ducado se valendo de uma brecha da lei, que impede a execução de pessoas bêbadas.

– Ele permanece bêbado o tempo todo. Assim, não pode ser morto. É um artifício que ilustra a hipocrisia daquele tempo.

Passado em Viena, o texto de Shakespeare se inicia quando o Duque (Luís Salem) finge abandonar a capital austríaca rumo à Polônia e passa o governo às mãos de Ângelo (Ricardo Blat) e de Éscalo (Nildo Parente). Permanecendo em Viena, disfarçado como um frade, o Duque observa como agem seus substitutos. Principalmente Ângelo, que ressuscita a pena de morte por “atos de fornicação” para pôr limite à corrupção moral da população.

– Meu personagem começa como um puritano insensível, mas no decorrer da peça paga por sua postura. O Duque descobre a forma arbitrária como ele lidera o governo, e Ângelo acaba condenado por suas ações – conta o ator Ricardo Blat, que participou da encenação para Medida... dirigida pelo inglês Paul Heritage, em 2004.

O primeiro refém do autoritarismo é o jovem nobre Cláudio, condenado à morte por ter engravidado Julieta antes do casamento. Ao saber da notícia, sua irmã, a religiosa Isabela, é convencida por Lúcio, amigo de Cláudio, a pedir absolvição ao governador. O pedido serve aos desejos de Ângelo, que promete libertá-lo, desde que Isabela – cuja pureza chamava a atenção na corrupta Viena – aceitasse se deitar com ele.

– Não o encaro como perverso – explica Gawronski sobre o personagem de Blat. – Ele se achava completamente puro dentro da sua retidão política e da esfera das leis. Enquanto Isabela se limitava à pureza no campo da religiosidade. Mostramos que o desejo sexual deles está além da razão. O embate entre suas purezas os afasta e os une pelo desejo. Sentem atração.

Ao recusar a proposta, Isabela encaminha a ex-mulher de Ângelo em seu lugar. Após a consumação do ato sexual, mesmo sem perceber que fora enganado, Ângelo decide prosseguir com sua empreitada moralista e não cumpre o prometido. Manda cortar a cabeça de Cláudio. Seus planos são frustrados pela intervenção do Duque, que, após uma reviravolta, deixa de lado a camuflagem de frade e retoma o poder.

– Apesar de o traço cômico da peça se iniciar quando o Duque abandona seus dotes para se imiscuir nos porões do seu ducado como um frade, sua aparição surpreende a todos – conta Luís Salem.

O ator conta que não conhecia o texto de Shakespeare quando foi convidado por Gawronski, há um ano, para participar da peça. Ao contrário dos outros atores, que se revezaram durante alguns meses até que definissem seus papéis, Salem abraçou o seu personagem no primeiro dia de leitura.

– Foi algo imediato por causa da veia cômica que carrego – acredita. – O Gilberto me conhece bem. Acho que esperava que eu representasse o papel.

Centro Cultural Banco do Brasil – Rua Primeiro de Março, 66, Centro (3808-2020). Cap.: 172 pessoas. 4ª a 2ª, às 19h. R$ 10. Estudantes e idosos pagam meia. Duração: 1h20. Até 1 de março.

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