NOTAS SOLTAS E RUÍDOS ESCRITOS

sexta-feira, 24 de junho de 2011

O 'maluquinho que escreve letras'*

Ele havia deixado o estúdio na Pompeia, em São Paulo, mais do que satisfeito. Naquela noite, tinha finalizado duas novas canções, as primeiras de um total de 14 inéditas que serão embaladas no emblemático 11 de setembro sob o título de “Babylon by Gus — A lenda do santo beberrão”, seu segundo álbum de carreira. Até ali, 26 de março de 2010, tudo parecia correr bem — como há tempos não rolava. Afinal, eram seis anos desde que o début “Babylon by Gus volume 1 — O ano do macaco” havia assaltado a atenção de quem já curtia seus versos ao lado de Marcelo D2, no Planet Hemp. Desde 2004, Gustavo Ribeiro, vulgo Black Alien, não tinha nada a dizer...

— Falta de inspiração, cara. Como não tinha nada para falar, não falei nada. Briguei com a gravadora, rescindi meu contrato, saí sem barulho. Depois entrei em um monte de furada... Comecei tudo do zero.

E, de repente, duas faixas prontas. Mas uma ligação às 3h30m mudou o clima. O técnico de som havia acordado assustado (“Disse que sentia alguém puxando os pés dele”, conta). Na manhã seguinte, o choque: o rapper Speed havia sido assassinado. No momento em que a carreira parecia renascer, morria o parceiro que o enxergou como artista e que o fez acreditar que não era “só um maluquinho que escreve umas letras”, como dizia, mas um dos rappers mais inventivos e originais — na abordagem de temas e no flow — do país.

— Depois daquela noite aconteceu um monte de coisas estranhas naquela casa. O estúdio nem existe mais... Perdi as bases que tinha gravado. E só há uns meses consegui fazer a coisa andar — diz Black, que vai se mudar para a capital paulista no fim do mês.

No começo de tudo, Speed era o amigo e primeiro parceiro musical. Foi ele que sacou o talento para a rima de um moleque que rodava Niterói em cima de um skate sonhando competir profissionalmente. Entre as ruas e os sons, a fricção das rodas no asfalto fazia mais a cabeça que a agulha no toca-discos.

— Meu sonho era ser skatista profissional, esse negócio de música não existe.

E até hoje, surpreendentemente, é assim:

— Cara, gosto mais de cinema do que de música. Vejo muito mais filmes. Fiz uma participação em “Feliz Natal” e fiquei amarradão — diz, referindo-se ao longa de Selton Mello.

Se a música não era sonho, ao menos era realidade em casa. E ele não deixava de pirar com os vinis que o pai trazia de Nova York, e os que um amigo DJ mostrava. Foram as batidas de Afrika Bambaataa em “Planet Rock”, Run-D.M.C. em “Raising hell” e os Beastie Boys em “Licensed to ill” que o fizeram sacar. O ano era 1986, Gustavo foi fisgado e logo começou a mandar seus versos em cima de bases extraídas pelo DJ Rodrigues (Planet Hemp, Seletores de Frequência). Foi a brincadeira que fez do skate um hobby, e do rap, profissão.

— Um dia, um cara me interpelou dizendo que tinha ouvido a minha fita. Se apresentou como Speed. Disse que era sinistro, que eu tinha que seguir aquilo, para eu tocar na banda dele. Na real, me deu uma vontade de bater nele. Mas eu disse: “Não, eu não sou artista. Sou só um maluquinho que escreve letra”. Aí ele mandou: “Vai tomar...” Eu não acreditei, e falei: “O quê?”. Ele mandou de novo! Não acreditei. Eu tava com o skate na mão, uma arma branca, né? Aí ele mandou: “Beleza, Tom Jobim é só um maluquinho que toca piano.” Porra, Tom Jobim e eu na mesma frase, já achei maneiro.

Tanto que arremessou o emprego de comissário de bordo na Varig para o alto e duas semanas depois já lançava suas rimas no palco com o grupo Speedfreaks. Dois anos depois, com a morte de Skank, um dos criadores do Planet Hemp, Black Alien assumiu um dos microfones ao lado de Marcelo D2. Desde a estrondosa estreia com “Usuário” (1995), passando pelos hits de “Os cães ladram mas a caravana não para” (1997), como “Queimando tudo”, e até “A invasão do sagaz homem fumaça” (2000), foram muitas parcerias e percalços. Alguns que ele ainda não esquece.

— A gente escrevia junto, mas eu era contratado, não era da banda. Então não devia ter sido preso (o Planet foi detido em 1997 por apologia às drogas). Inclusive vou processar a União. Quero ressarcimento, dinheiro e desculpas — diz. — Eu não escrevia sobre maconha. Nem em “Queimando tudo” me refiro à erva. Esse não é e nunca será o meu jeito de abordar o assunto. E, cá para nós, eu achava meio tosco aquilo. E aí fui mandado embora porque pedi aumento. Não queria ser contratado como um músico normal. Não fui preso, não escrevo, não falo no Jô Soares?

E foi livre de amarras que ele desenvolveu um estilo único, que segue uma pegada própria e chega em forma de música, com o disco novo, e nos cinemas, com o lançamento do documentário “Mr. Niterói — A lírica bereta”, que vai contar sua trajetória. Dirigido por Ton Gadioli, o filme deve estrear no segundo semestre deste ano.

— Sempre me incomodou o jeito como os rappers falavam das mulheres e tantos palavrões. Meu disco não tem isso, falo de outra forma. Tem amor e política. Sarney, como sempre. Uma das paradas que mais me incomodam é o Sarney. Os Sarneys que o Brasil criou, um tipo de comportamento, e o povo brasileiro que, às vezes, é cuzão... Na Argentina, sobe o preço do pãozinho e já tem nego batendo panela na Casa Rosada. Aqui nego agradece ao patrão que tá te quebrando. Carnaval, cachaça e bunda... Tudo ótimo. Faz sentido, mas não é desculpa. E aí fico chateado com o povo. Porque no fundo você sempre sabe quem tá te fodendo. Sempre sabe.

*Publicada no Segundo Caderno do Jornal O Globo (23/6/2011)